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Argentina/Acidente

Terceiro acidente ferroviário mais grave na história argentina choca o país

Número de mortos sobe para 50; o de feridos a 676. Cerca de 200 pessoas continuam internadas em 13 hospitais. A presidente argentina, Cristina Kirchner, decreta dois dias de luto. Governo e concessionária de trens dizem não saber por que a locomotiva não freou enquanto sindicalistas e usuários denunciam a “crônica de uma tragédia anunciada” perante um sistema ferroviário sucateado.

Policiais argentinos carregam corpo retirado do local onde ocorreu o acidente de trem que matou 50 pessoas, em Buenos Aires.
Policiais argentinos carregam corpo retirado do local onde ocorreu o acidente de trem que matou 50 pessoas, em Buenos Aires. REUTERS/Marcos Brindicci
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires.

Dezenas de famílias ainda procuram pelos parentes desaparecidos, depois da terceira pior tragédia ferroviária da história argentina. São parentes angustiados como Maria Luján que ainda procura pelo filho Lucas de 19 anos, um dos passageiros do trem.

“Nós o procuramos por todos os hospitais. Ele não está em nenhuma lista. Resisti a ir ao necrotério, mas já vimos fotos dos mortos. Ele não está e não aparece”, desespera-se a mãe de Lucas Menguini Rey.

Dos 676 feridos, 200 continuam internados em 13 hospitais. A maior parte ia ao trabalho ou à escola, quando o trem colidiu contra a barreira de amortecimento do fim dos trilhos na estação. Feridos graves, cortes profundos, amputados, mortos. Dor, gritos, medo e lágrimas. O drama do resgate, daqueles que saíram com vida e das vítimas fatais entre ferros retorcidos. Os gritos desesperados de socorro ecoaram pela estação transformada em sala de emergência improvisada.

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Maria Luján ainda procura pelo filho Lucas, de 19 anos

É um momento de comoção na Argentina. Quem sobreviveu, relata cenas dramáticas. Gustavo, com uma fratura na mão direita, conta que pisou em feridos e mortos à procura da sua irmã que se salvou.

“Eu estava no terceiro vagão e queria chegar ao primeiro à procura da minhã irmã. Pisei em gente morta, vi gente mutilada, sangue em pessoas nas quais os vidros (das janelas) tinham-lhes estourado no rosto e ouvi muitos gritos. Foi quando vi a minha irmã já do lado de fora. Saí do trem pisando em gente e pela janela”, relata Gustavo.

Exatamente às 8:32 da manhã em Buenos Aires (9:32 em Brasília), o trem da linha ferroviária Sarmiento que vinha da periferia oeste de Buenos Aires com oito vagões não freou na estação final de Once na capital argentina. Nos últimos 40 metros, o trem estava a 20 Km por hora até colidir com a plataforma da estação lotada. Não se sabe ainda por que o maquinista de 28 anos que está em terapia intensiva não conseguiu frear. Tudo indica que a causa tenha sido uma falha mecânica nos freios dos sucateados trens argentinos. O segundo vagão entrou sete metros dentro do primeiro vagão. Esse foi o impacto que provocou 50 mortes até agora, um dos quais um menor de idade.

O terceiro pior acidente da história argentina está muito próximo de superar o segundo pior. Em 1978, 55 pessoas morreram e 56 ficaram feridas como consequência da colisão entre um caminhão e uma composição. Antes disso, em 1970, na periferia Norte de Buenos Aires, 142 pessoas morreram e 368 ficaram feridas depois que dois trens chocaram-se. Todos os acidentes aconteceram em fevereiro.

“Se tivesse sido um dia antes, teria sido muito menor”

Nenhum membro do governo argentino deu explicações ou falou com a imprensa. Apenas o secretário de Transporte, Juan Pablo Schiavi, fez uma leitura curiosa dos fatos, mas sem aceitar perguntas dos jornalistas.

O secretário preferiu explicar a dimensão de tragédia devido “ao costume que os argentinos têm de viajar nos dois primeiros vagões, para poder descer mais rápido quando o trem chega na estação". Segundo o secretário de Transportes, "o trem estava freando, mas não sabemos o que ocorreu nos últimos 40 metros" já que "o maquinista tem um histórico de trabalho fantástico e estava descansado.

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Gustavo conta que pisou em feridos e mortos à procura da sua irmã

O secretário atribuiu a gravidade do acidente a um dia de semana “Se tivesse sido ontem, teria sido algo muito menor”, concluiu Schiavi em referência ao dia anterior, feriado de Carnaval com pouco movimento nos trens e nas estações.

Cristina Kirchner decretou dois dias de luto e suspendeu as celebrações de Carnaval em todo o país.

Uma tragédia anunciada

Há 20 anos, a Argentina tinha a maior rede ferroviária da América Latina. Eram 780 locomotivas e 40 mil vagões em bom estado. Hoje, são 250 locomotivas e 10 mil vagões em péssimo estado. Com as tarifas congeladas, o lucro das concessionárias não provém das passagens, mas dos milionários subsídios estatais ao transporte. Em troca da fonte milionária de renda, os empresários do setor devem “apoiar” o governo. Nos últimos anos, nenhum investimento foi feito no setor. As concessionárias limitaram-se a administrar subsídios.

O empresário Claudio Cirigliano, quem controla a TBA, empresa concessionária da linha ferroviária Sarmiento, está implicado em processo de suborno ao ex-secretário dos Transportes, Ricardo Jaime, braço direito do então presidente Néstor Kirchner, marido falecido da presidente Cristina Kirchner. Cirigliano é acusado de dar “dádivas” milionárias em troca de subsídios ainda mais altos. Entre 2004 e 2009, o Estado argentino importou locomotivas e vagões usados de Portugal e Espanha. O material ferroviário era dos anos 70. Por trás dos contratos, foi descoberto um esquema de desvio de dinheiro público. Cerca de 70% do material apodrece sem ter nunca circulado ou sem ter peças de reposição.

Apenas em 2011, cinco acidentes envolveram os sucateados trens argentinos. No total, 23 mortos e 400 feridos. Em setembro do ano passado, por exemplo, 11 pessoas morreram e mais de 200 ficaram feridas num acidente entre um ônibus e um trem da mesma linha Sarmiento, da mesma TBA. O processo está parado.

O líder sindical dos ferroviários, Rubén Sobrero, critica com regularidade o governo e as concessionárias pelo risco diário de uma tragédia. Material ferroviário sucateado, vagões que viajam com as portas abertas, passageiros tratados como gado.

Os vagões do trem que colidiu são Toshiba da década de 60. Os passageiros relatam que durante o trajeto a composição tinha dificuldade para frear nas estações. Passava alguns metros e “dava marcha ré”. Em uma estação, passou direto sem parar.

O sindicato União Ferroviária afirmou que outras três composições tiveram problemas nos freios. “O trem não estava em condições de sair”, disse o representante sindical Edgardo Reynoso. “Estamos perante um regime perverso que administra o sistema ferroviário argentino”, denunciou.

Reynoso explicou que o trem da tragédia ficou dois meses parado por “problemas nos freios”. “Para um sistema de freios funcionar da melhor maneira possível, são necessários oito compressores. Esse saiu com cinco compressores”, revelou. “Quando um maquinista se nega a subir numa locomotiva sem garantias de segurança, recebe sansões disciplinárias por escrito por parte da empresa”, contou.

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