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França

“La Domestication'', Francine e os seus dois maridos domesticados

Acaba de ser publicado em França, o livro “La Domestication'', a tradução francesa de “O Homem Domesticado” de Nuno Gomes Garcia. A história de uma sociedade de absoluta submissão do homem à mulher, aqui retratados pela vida de Francine e os seus dois maridos domesticados. 

"La Domestication", tradução francesa do livro “O Homem Domesticado” de Nuno Gomes Garcia.
"La Domestication", tradução francesa do livro “O Homem Domesticado” de Nuno Gomes Garcia. © DR
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A tradução francesa da obra acaba por ser mais ousada que a original. Na versão francesa a linguagem foi ‘feminizada’. 

Neste magazine “Vida em França” viajamos até à cidade francesa de Andrésy, e na companhia do autor de “La Domestication'', Nuno Gomes Garcia, mergulhamos neste mundo distópico de Francine, Pierre e Jean.

O homem domesticado é uma distopia que se passa numa França, que o leitor pode escolher ou do passado ou do presente ou de uma realidade alternativa, que representa o mundo pós-pandémico, de uma pandemia que matou metade da humanidade sendo que a metade que mais sofreu foram os homens. É uma doença, que não existe, que inventei, que ataca os homens e, portanto, o mundo ficou muito desequilibrado do ponto de vista do género. Muitas mulheres e poucos homens ao ponto de, no início da história, os homens chegaram a ser traficados como quase objectos de luxo ou animais de luxo.

Nesta sociedade extraordinariamente normativa, por exemplo, não existe sexo. O sexo é proibido. As mulheres não dão à luz como agora, existem úteros artificiais. Os homens são todos iguais como se fossem clones. 

Os maridos são escolhidos. Há um instituto que se chama Instituto dos Maridos onde as mulheres, de uma certa idade, vão lá escolher o marido. Há uma fila de maridos, atrás de um vidro, e ela escolhe o seu preferido, como se fosse um animal.

A história passa-se numa cidade das Yvelines, que se chama Andrésy, onde uma mulher [Francine] escolheu o marido, mas que é estéril. Logo, não poderia ter as duas filhas que a lei obriga. Então, ela teve que escolher um segundo marido. Mas, ela quis ficar com o primeiro [marido] porque já estava bem domesticado, já lhe lia os pensamentos e adivinhava os seus desejos. Portanto, ela optou por ficar com os dois maridos. Só que segundo marido é o que foge à norma. E isso é o detonador de toda a história.

Este novo marido que foge à norma vai revolucionar toda a sociedade, ao ponto de pôr o Estado, políticos e polícia a tentar resolver este problema, esta anomalia naquela sociedade que se quer perfeita, igual quase composta por colono. 

O meu livro não procura diabolizar a mulher, obviamente, o contrário. O que eu procuro fazer é criar uma espécie de um espelho que deforma a realidade que nós temos hoje. E a realidade que temos hoje é uma sociedade sexista, em que a mulher, mesmo nos nossos países democráticos e ocidentais, é constantemente discriminada. Portanto, quis com este livro fazer com que um homem que leia o livro, através da empatia que só a literatura consegue criar, consiga sentir na pele aquilo que sente a mulher dos nossos dias, o que é ser discriminado. É usar a literatura para fazer com que o homem sinta aquilo que uma mulher dos nossos dias sente".

Por isso é que o homem também é caracterizado como aquele que foi criado para ser a fada do lar e a única coisa para que serve é, precisamente, para tratar da casa e para a questão da reprodução, não no sentido sexual, mas para alimentar os bancos de sémen.

"Exactamente. Sou arqueólogo e estudei muito a pré-história e a época em que a mulher sofria menos discriminação, era exactamente a pré-história. Na época das cavernas, na idade das cavernas. Ou seja, a partir do momento em que a humanidade se sedentarizou e inventou a agricultura, a mulher passou a ser discriminada. Há sociedades, se calhar no presente não tanto, mas no passado, onde as mulheres não passavam de máquinas de parir filhos. 

No fundo, nesta sátira, nesta distopia que é o “La Domestication”, quis deformar a realidade e transformar os homens naquilo que as mulheres foram ao longo de centenas de anos, desde o início da humanidade: máquinas de parir, fadas do lar.

Neste livro, os homens são mais pequenos que as mulheres. Têm uma característica muito especial, as orelhas são caídas como as dos animais domesticados. Os lobos têm as orelhas em pé e os cães têm as orelhas caídas. Isto é um dos sinais de domesticação. E portanto, é usar tudo isto para mostrar aos homens como é que é ser mulher ou como é que foi ser mulher ao longo da história da humanidade.

Acho que é importante que um homem tenha noção disso, porque o nosso mundo precisa de uma revolução feminista, no verdadeiro sentido de feminismo. Se formos ao dicionário, feminismo quer dizer absoluta igualdade de direitos entre homem e mulher e é isto que é preciso ninguém ser discriminado.

É, por isso, que eu falo muito em revolução feminina e revolução feminista que também deve ser vista na própria linguagem, numa linguagem mais paritária".

Este livro foi agora traduzido para francês, chama-se “La Domestication” e há aqui uma diferença na versão francesa. A linguagem foi feminizada? 

"Foi. Já tinha tido esta ideia em Portugal, mas não sei porquê não tive coragem de fazer isto em português, mas agora optámos por fazer em francês.

No fundo, neste livro toda a linguagem é feminizada. Se tivermos 50 homens e uma mulher, em português como em francês utilizamos o masculino, dizemos ‘olá a todos’. Neste livro, fizemos exactamente o contrário, acentuar ainda mais esse jogo de espelho. Se tivesse cinquenta homens e uma mulher nós dizemos ‘olá a todas’. Ou então, ‘o João e a Anabela são bonitas’. Portanto, há aqui um transformar absoluto da linguagem, porque faz todo o sentido e bate certo com todo o universo que é tratado no romance. Se o romance trata o universo totalmente dominado pelas mulheres, não faz sentido que a linguagem continue masculinizada".

Esse processo obrigou a um maior trabalho da sua parte e também por parte da tradutora?

"Foi essencialmente um trabalho da tradutora. Um trabalho magnífico que a Clara Domingues realizou neste livro. Porque o nosso cérebro não está preparado para este tipo de coisas. É estranho. Eu próprio já li este livro várias vezes durante a revisão e é estranho. Estou tão acostumado à masculinização da linguagem, que o cérebro não capta imediatamente a feminização da linguagem. 

Há uma palavra, por exemplo, homenagem que é ‘hommage’ em francês. Esta palavra foi varrida daquele universo e foi substituída pelo ‘femmage’. O nosso cérebro, às vezes, entra ali em colapso, porque é difícil captar estas subtilezas da linguagem".

Há também alguma preocupação com o planeta. Os períodos deste livro são dois extremos: o frio extremo e o calor extremo.

"Há muitas prioridades neste mundo. O nosso mundo está doente. Tanto a sociedade como o planeta em si. A mim não me interessa muito que haja mais justiça social, que as mulheres deixem de ser discriminadas, que estas conquistas forem alcançadas e depois não temos planeta. 

Existem uma série de revoluções que devem acontecer no mundo, mas a mais importante, porque sem isto nada faz sentido, é a revolução ecológica. Nós temos de uma vez por todas que tomar consciência de que o planeta está doente e que nós não podemos continuar a viver assim. Não podemos continuar a poluir com poluímos. Não podemos continuar a explorar o planeta como exploramos. Alguma coisa tem que mudar.

Qualquer pessoa percebe que as canículas são mais poderosas. Já não há água. Qualquer dia entramos com mais vigor na guerra por causa da água. Nós vimos tempestades, furacões… Quer dizer, está tudo a aumentar de intensidade. Temos de perceber que sem o planeta, tudo o resto que consigamos de positivo não faz sentido".

A tradução do livro ficou a cargo de Clara Domingues, que ao microfone da RFI explicou o processo de 'feminização' da língua.

O que eu fiz para ‘feminizar’ o texto, foi em primeiro lugar procurar o feminino de palavras em francês que já não existem, como por exemplo para a palavra médico. Actualmente, em francês, o vocábulo médico não tem feminino. Mas esta palavra existia no feminino no século XVI. 

Na verdade, em França, a Academia Francesa de Letras procedeu a um tipo de masculinização da língua em palavras ou profissões de prestígio, como autor ou médico. O feminino das palavras foi simplesmente banido do dicionário. Portanto tive de fazer um primeiro trabalho de pesquisa para encontrar estas palavras no feminino que já não usamos. E isto foi relativamente fácil, o que foi mais difícil foi o de não utilizar o “il”, este pronome pessoal na sua forma neutra ou impessoal. Isso obrigou-me a várias revisões do romance para apagar todos estes “il” neutro, que em francês tem conotação masculina. Foi este o aspecto mais complicado, mesmo sendo o objectivo desde o início, está tão enraizado na linguagem, que me obrigou a múltiplas revisões para que isso fosse tudo suprimido”. 

O livro “La Domestication'' é a tradução francesa de “O Homem Domesticado” de Nuno Gomes Garcia, escritor português radicado em França. Finalista do Prémio LeYa em 2014, com o seu segundo romance “O dia em que o sol se apagou”, o escritor vai representar Portugal no Festival de Literaturas Europeias de Cognac, que se realiza de 17 a 22 de Novembro.

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