Líbano recebe cereais dois anos após explosão do porto de Beirute
O primeiro navio com um carregamento de cereais ucranianos, desde a invasão russa a 24 de Fevereiro, é aguardado hoje no porto de Tripoli, no Líbano. Numa altura em que este país assinala, também hoje, o segundo aniversário da explosão no porto de Beirute.
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A chegada do navio Razoni, de bandeira serra-leonesa, transportando a partir do porto ucraniano de Odessa 26 000 toneladas de milho a território libanês é vista com agrado pela população.
A ruptura de silos de cereais em Beirute no passado fim de semana causa, porém, alguma apreensão junto dos populares desagrados com o facto de ninguém ter sido responsabilizado pelo ocorrido em 2020.
O aumento da tensão com o vizinho Israel devido à fronteira marítima, em torno da exploração de hidrocarbonetos provoca, também, alguma apreensão junto da população, com registo de um êxodo significativo de jovens, e não só, rumo ao estrangeiro.
Faltam medicamentos, o acesso aos cuidados de saúde tornou-se muito difícil, a desvalorização da moeda local tornou a vida quase impossível.
Rita Dieb, cidadã radicada em Beirute, admite o desalento com que se debate a população do país sem que até ao momento ninguém tinha sido responsabilizado pelo que ocorreu no porto da capital há dois anos.
As pessoas estão muito a desalentadas porque dois anos para investigar um acontecimento desta envergadura parece-me que é demasiado tempo, não é ?
Ainda ninguém foi responsabilizado ?
Não. Aliás o nosso presidente na altura tinha dito que em cinco dias, no máximo uma semana, estariam os resultados fora para toda a gente saber o que é que tinha acontecido.
E então já passaram dois anos e continuamos, pelo menos por via oficial, não temos qualquer informação.
E o povo libanês é um povo muito lutador, e com um espírito muito guerreiro digamos assim. E Beirute está muito bonita, apesar das feridas que tem. E, apesar das marcas que tem: chamemos-lhe cicatrizes, mas que a tornam ainda mais bonita.
E houve uma grande reconstrução, as pessoas empenharam-se muito nisso. Também tivemos muita ajuda de fora, e que estamos agradecidos também. E, mesmo a nível nacional, houve muitas instituições e muitos particulares que ofereceram ajuda monetária e material. Estamos a tentar sarar feridas.
Rita Dieb sobre 2° ano após a explosão do porto de Beirute, 4/8/2022
Rita Dieb faz-nos o retrato do Líbano, e da sua capital, dois anos depois da explosão no porto. Uma efeméride que coincide com a chegada de um primeiro cargueiro com cereais ucranianos, facto com o qual se congratula a população, não obstante algum cepticismo em relação à situação global.
Sabemos que pelo menos que são cereais que estão a chegar, que nós estamos aqui pelo menos há duas semanas com imensa dificuldade em encontrar pão. Os fornos têm filas enormes de pessoas à espera para comprar pão precisamente porque temos falta de trigo, temos falta de cereais.
Chegarem a Tripoli ou a Beirute pelo menos não interessa: o que interessa é que cheguem e que sejam bem acondicionados e que não aconteça o que aconteceu da última vez, aquando das ajudas humanitárias, que segundo o que consta houve grande parte dos cereais enviados que ficaram estragados e que tiveram que ser deitados fora.
Por outro lado Beirute é Beirute e aqui é que estão os silos e repare na ironia do destino: os silos começaram a ruir, a derrocada dos silos foi há cerca dos dois dias, portanto muito próximo da data. Quase que voltar a abrir feridas, isto é quase que um grito da própria natureza a pedir também que haja explicações para o que aconteceu.
Daí a senhora pensar, imagino eu, hoje nos protestos agendados se calhar haja muita revolta, muito inconformismo por parte da população?
Sim, olhe eu peço a Deus que, efectivamente, que isto que fique apenas pelo inconformismo e a revolta interior que não haja nada de especial. Quando há este tipo de manifestações há sempre um terceiro elemento que entra e que normalmente tende a provocar alguma confusão. Vamos esperar que seja pacífico, que seja em memória dos que já partiram.
Vamos esperar que seja um grito de dor para que o nosso governo abra os olhos e veja o estado a que chegou o nosso país e o estado em que está o povo a viver.
A situação é muito complicada. Nós falámos dos cereais, mas podemos falar, se me permite, de medicamentos: da falta de medicamentos. Podemos falar da quase impossibilidade de acesso aos hospitais particulares porque os custos são enormes, são elevadíssimos.
Os hospitais públicos estão quase a abarrotar. E está muito… mesmo, há muita dificuldade mesmo.
O país sempre foi um país de fortíssimas diásporas, mas estas tão difíceis condições de vida têm provocado ainda mais um agravamento do êxodo de libaneses para o estrangeiro?
Sim têm porque repare. De facto o Líbano sempre, de há cerca de 40 anos que tem sido fustigado, mas desta vez demasiado. Demasiado ! Isto se vamos falar por exemplo da inflação que existe, do dólar relativamente à lira libanesa. Isto para quem é remunerado na moeda libanesa não consegue viver. Para quem é remunerado no dólar estamos a falar em 1 dólar estar a valer 30 000 liras libanesas.
Portanto não há condições de vida e as pessoas, principalmente a camada mais jovem, tem que refazer a vida e tem que continuar a andar de alguma forma e, lamentavelmente, a hipótese que estamos a ter é a de partir.
Ainda por cima há de novo um período de tensão grande com Israel não é ? A propósito da fronteira: há aqui um novo episódio, já não é a primeira vez. Mas há aqui de facto uma nova crise com Israel !
Tememos que aconteça alguma coisa. E, segundo vozes que se ouvem, efectivamente aguardamos (queira Deus que não !), mas um ataque de Israel. Isto é o que toda a gente por aqui vai comentando.
É a fronteira marítima entre os dois países !
Sim, sim e toda uma problemática existente entre os dois países desde há longa data. Vamos querer, que se Deus quiser, que não vai acontecer nada. Também agradecemos o facto de não se terem esquecido de nós, do povo libanês e, numa data tão, tão importante para nós também! É importante que tenhamos sido contactados e também lhe agradeço imenso.
Rita Dieb sobre a chegada de cereais, 4/8/2022
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