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História e geopolítica dos Jogos Olímpicos

Moscovo 1980: O Boicote Ocidental

Os Jogos Olímpicos de 1980, realizados em Moscovo, na União Soviética, entre 19 de Julho e 3 de Agosto, foram boicotados por 65 países ocidentais a pedido do Presidente dos Estados Unidos da América. Na altura, Jimmy Carter invocou a invasão do Afeganistão pelas tropas soviéticas para justificar o  boicote.

O polaco Wladyslaw Kozakiewicz, acabava de quebrar o recorde mundial do salto com vara, dá ao público russo um braço de honra em resposta aos insultos e assobios durante seus saltos nas Olimpíadas de Moscovo, em 30 de julho de 1980.

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O polaco Wladyslaw Kozakiewicz, acabava de quebrar o recorde mundial do salto com vara, dá ao público russo um braço de honra em resposta aos insultos e assobios durante seus saltos nas Olimpíadas de Moscovo, em 30 de julho de 1980. Ícone Validada pela comunidade Abrir no Google Tradutor • © Jean-Claude Delmas / AFP
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Os filósofos gregos da Antiguidade teriam certamente apreciado a ironia: um político toma uma decisão, na esperança de evitar um cenário de politização.

Em 1980, o Presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, propôs a instalação permanente dos Jogos Olímpicos na Grécia para evitar que o evento se tornasse “refém” de uma administração em declínio.

Para além do país não possuir as infra-estruturas necessárias para organizar a versão moderna do antigo evento desportivo, o Comité Olímpico Internacional (COI), que se sentiu ameaçado pelo facto de estarem a tentar de diminuir os seus poderes, rejeitou a opção.

A decisão levou os Estados Unidos a liderar um boicote de 60 países aos Jogos Olímpicos de Verão de 1980, em Moscovo, em protesto contra a invasão do Afeganistão pela União Soviética.

Quatro anos depois, os Jogos de Los Angeles foram, igualmente, boicotados pela União Soviética e por 14 países do bloco do Leste. Na altura estes países evocaram problemas de segurança e denunciaram a histeria anti- soviética que se vivia nos Estados Unidos.

Visto através do prisma das sofisticadas moralidades modernas, tratou-se de uma verdadeira provocação de mau gosto. Nos dias de hoje, um caleidoscópio de nuances reina. Um pouco mais de um ano depois do Presidente Vladimir Putin ter ordenado que as forças russas invadissem a Ucrânia, via Bielorrússia, o COI declarou que os atletas russos e bielorrussos devem poder participar dos Jogos de Paris de 2024 sob uma bandeira neutra, apesar do conflito na Ucrânia continuar.

A declaração do Comité Olímpico Internacional foi fortemente criticada pelo líder ucraniano, Volodymr Zelensky, que falou na palavra "boicote". Sempre foi assim. A agressão militar soviética foi a razão ostensiva do boicote em 1980. Hoje, é a vez da Rússia mostrar beligerância. Mas a indignação de outrora foi um pouco mais premeditada. Na altura, Jimmy Carter estava ciente da crescente ameaça de um possível segundo mandato presidencial do ex-actor que se tornou governador da Califórnia, Ronald Reagan.

Carter também queria mostrar firmeza para compensar o impasse dos reféns americanos detidos desde 4 de Novembro de 1979, na embaixada dos Estados Unidos em Terão. A angústia crescente de Jimmy Carter e sua táctica desconcertam as grandes mentes do Kremlin.

A Rússia não viu a invasão do Afeganistão como um problema para JO

O especialista da Rússia e nas questões desportivas na Universidade da Califórnia, San Diego, Bob Edelman, afirma que “aquilo que nós sabemos e aquilo que nós podemos dizer é que os soviéticos não consideraram que a invasão do Afeganistão fosse um problema para os Jogos Olímpicos".

"Eram ex-alunos, que tinham estudado na Rússia e na União Soviética, e que agora estavam a fazer um mau trabalho na liderança do novo Afeganistão. Os soviéticos intervieram para acalmar a situação, não necessariamente para assumir o controlo do território afegão. Eles não esperavam que houvesse um problema", sublinhou.

Boicote dos JO de Montreal

Em 1976, 29 países, a maioria africanos boicotaram os Jogos Olímpicos de Montreal, no Canadá. O boicote ficou a dever-se à recusa do Comité Olímpico Internacional banir a Nova Zelândia, depois da equipa neozelandesa de rugby ter feito nesse ano uma tournée na África do Sul, desafiando os apelos das Nações Unidas a embargo desportivo contra a África do Sul durante o apartheid.

Bob Edelman sublinha que “o desporto não era a principal preocupação dos líderes soviéticos, apesar de terem investido muitos recursos e energia política no desporto olímpico. Talvez os líderes ainda estivessem deslumbrados com a preeminência soviética em Montreal, onde os atletas ganharam o maior número de medalhas de ouro e lideraram a contagem geral de medalhas. Uma nova performance em solo soviético seria uma maravilha para a propaganda”.

"Envio de Muhammad Ali para a África foi um fracasso"

No final, Jimmy Carter acabou em apuros e o seu governo teve que pressionar os aliados a retirarem-se, acabando por enfrentar recusas categóricas em seguir a linha americana. Carter envia o ex-pugilista Muhammad Ali para a África para convencer as nações africanas a boicotar o evento. O líder da Tanzânia, Julius Nyere, recusa encontrar Muhammad Ali e, durante sua visita de três dias, acaba por enviar os atletas tanzanianos para competir em Moscovo.

O especialista da Rússia e nas questões desportivas na Universidade da Califórnia, São Diego, Bob Edelman, reconhece que o envio de ex-pugilista Muhammad Ali para a África foi um fracasso.

"Ali não estava preparado para isso. E claro, a pretensão e os pressupostos fundamentais também estavam errados. Em 1980, os países africanos disseram aos americanos: Onde vocês estavam em 1976 quando precisávamos de vocês? E claro, naquela época, os Estados Unidos não foram suficientemente críticos com o regime do apartheid na África do Sul", recorda Bob Edelman.

"A decisão de participar não foi difícil"

Enquanto, a Tanzânia tinha permissão para participar nos Jogos Olímpicos, a Grã-Bretanha, sob a liderança de Margaret Thatcher, recém-instalada no governo conservador, estava determinada a apoiar os Estados Unidos. Um voto na Câmara dos Comuns apoiou o boicote por 315 votos contra 147. Mas a Associação Olímpica Britânica desafiou o governo e ofereceu aos atletas a opção de competir ou ficar em casa. Wilbert Greaves, um dos cerca de 200 britânicos que foram a Moscovo, lembra que a decisão de participar não foi difícil.

"Era a minha primeira participação nos JO. Tinha passado o último ano um ano a recuperar de uma mononucleose. Então queria provar que podia voltar ao meu nível. Uma vez que me qualifiquei para os Jogos, foi isso. A equipa foi nomeada e eu estava indo. Eu não estava pensando em mais nada", explicou.

Wilbert Greaves, actualmente com 66 anos, recorda que chegou às semifinais dos 110 metros com barreiras e obteve a mesma classificação nos Jogos Olímpicos de 1984, em Los Angeles.

"Os atletas que escolheram ir aos Jogos e ganharam medalhas, obtiveram-nas por mérito próprio. Todos aqueles que não estavam lá perderam algo. É assim que eu vejo as coisas. Vivi experiências na pista em Moscovo e Los Angeles, e nos bastidores dos Jogos Olímpicos de Londres, Rio e Tóquio. E espero, com os dedos cruzados, estar em Paris em 2024", concluiu.

Governo de Macron pode negar a entrada aos atletas

A incerteza continua a corroer os preparativos para saber quem estará na capital francesa, no dia 28 de Julho de 2024, na cerimónia de abertura que terá o rio Sena como palco principal e no encerramento dos Jogos, a 11 de Agosto. Apesar da decisão do Comité Olímpico Internacional de que russos e bielorrussos podem participar como neutros, a ministra francesa do Desporto, Amélie Oudéa-Castéra, declarou, no passado mês de Março, que o governo de Emmanuel Macron poderia negar a entrada destes atletas.

"É o Comité Olímpico Internacional que determina as condições de participação dos atletas. Por outro lado, é claro que o chefe de Estado do país anfitrião terá uma posição que será tida em conta nas deliberações do COI", reconheceu Amélie Oudéa-Castéra.

A World Athletics, liderada por Sebastian Coe, colega britânico de Wilbert Greaves, impôs uma proibição aos atletas russos e bielorrussos logo após o início da invasão russa e mesmo depois do COI ter mostrado sinais de flexibilização nesta questão.  

"A morte e destruição que testemunhamos na Ucrânia no último ano, incluindo a morte de cerca de 185 atletas, fortaleceram minha determinação nesse sentido", disse Sebastian Coe.

O ministro russo do desporto, Oleg Matytsin, mostrou-se indignado com a postura da World Athletics. "Consideramos essas restrições politizadas e inaceitáveis. Os Jogos Olímpicos devem permanecer neutros e as federações internacionais devem dar o direito a todos os atletas de poder competir", referiu.

Aqui estão, as eternas linhas de fractura. Há 43 anos, os administradores desportivos travaram uma batalha com os políticos pela supremacia dos Jogos de Moscovo.

Thomas Bach, chefe do COI, no Fórum Político do Ruhr em Essen, na Alemanha, afirmou que se são os políticos que decidem quem participa ou não nos Jogos Olímpicos, há uma foret ameaça dos atletas se tornarem em ferramentas políticas.

"Torna-se então impossível para o desporto exercer o poder de união. Estamos diante de um dilema, ao mesmo tempo que, sentimos, sofremos e entendemos o povo e os atletas ucranianos”, sublinhou.

Thomas Bach defendeu ainda que, como organização mundial, existe uma responsabilidade para com os direitos humanos e com a Carta Olímpica.

“Estes dois textos são contra o isolamento total de pessoas com um passaporte específico”, notou.

É provável que algumas nações escrevam ao COI a dizer que Rússia e Bielorrússia podem voltar ao cenário internacional se acabar as hostilidades na Ucrânia. Os soviéticos permaneceram no Afeganistão, os Jogos Olímpicos de 1980 aconteceram, e o mesmo vai acontecer com os Jogos de 2024, apesar da polémica que os acompanha.

O especialista da Rússia e nas questões desportivas na Universidade da Califórnia, San Diego, Bob Edelman, admite que "os Jogos são um alvo preferido para as intervenções políticas. É preciso não esquecer que o mundo inteiro está de olhos postos nestas competições e os políticos querem chamar a atenção. É uma boa maneira para o fazerem. Para eles será apenas mais um dia no escritório”, concluiu.

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