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Morte de Bernardo Catchura "expõe um sistema que está podre”

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A morte de Bernardo Catchura por negligência médica, na semana passada, na Guiné-Bissau, continua a suscitar várias reações no país. Ontem, a Associação de Escritores da Guiné-Bissau e o Centro de Poetas, Ensaístas e Novelistas emitiram um comunicado conjunto onde lamentam a morte do activista e exigem a abertura de um inquérito para se determinarem as causas e os responsáveis deste incidente. 

A morte na semana passada do activista Bernardo Catchura causou muita emoção e revolta no seio da sociedade guineense.
A morte na semana passada do activista Bernardo Catchura causou muita emoção e revolta no seio da sociedade guineense. © Facebook
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Em entrevista à RFI, o escritor guineense Abdulai Sila refere que a morte de Bernardo Catchura evidencia as fragilidades que existem, nomeadamente, no sector da saúde e expõe um sistema que diz “estar podre”. 

RFI: A morte de Bernardo Catchura expõe as fragilidades sociais da Guiné Bissau, nomeadamente no sector da saúde?

Abdulai Sila: Essa morte expõe essas fragilidades no sector da saúde, mas expõe também outras fragilidades noutros sectores. Ou seja, a morte do Bernardo é simplesmente um episódio entre outros que têm acontecido e, que na maior parte dos casos, tem passado despercebido.

Nós temos problemas sérios, este país está doente! Nós temos o colapso do sector da educação e ninguém fala disso. Nós temos um sector de justiça totalmente desacreditado. Nós temos vários problemas sérios que incluem até a essência do Estado.   

De acordo com as Nações Unidas, a Guiné-Bissau tem o segundo sistema de saúde mais frágil do mundo, logo a seguir à Somália. As pessoas que têm meios tratam-se no estrangeiro e os outros têm de recorrer a um sistema de saúde que há muito não é capaz de dar resposta ao utente. Como mudar essa realidade? 

Isso é verdade. Quem tem problemas nesse país, primeiro, procura tratamento lá fora. Quantos ministros, quantos deputados, quanta gente morre no estrangeiro? Uns aqui pertinho mesmo, Ziguinchor. Porquê? Porque não encontram no país o tratamento, a atenção que julgam merecer. 

As pessoas que não têm dinheiro para ir tratar-se lá fora, a alternativa que têm, não é o hospital, eles vão procurar os curandeiros e aí é que está um outro problema. Porque há questões que os curandeiros podem tratar, mas há outras que não. É mais fácil tratá-las numa instituição hospitalar normal, só que não há crédito quando as pessoas lá vão. Até as análises clínicas, análises de paludismo, os resultados são todos falsificados. 

Há uns tempos houve uma denúncia do sindicato dos laboratórios a dizer que todos os reagentes estavam fora do prazo e ninguém fez nada. No entanto, há uma autoridade que se chama Inspecção Geral da Saúde.

Não é o Estado que tem de providenciar um sistema de saúde para a população? 

Pois, mas onde está o Estado?

Considera que já deveria ter sido feito um pronunciamento oficial a reagir a esta morte?

Sim, mas a questão de fundo é: Onde está o Estado? Quem é que se preocupa com o país? Andam todos preocupados com outras questões. Essas guerras “intestinas”, que acontecem, não deixam espaço para outras coisas mais importantes.

Este país é um caso sério e não é de hoje. Há uns anos um chefe de Estado, em pleno exercício do seu mandato, foi assassinado e até hoje não há um único processo, um único acusado. Ninguém foi culpado, ninguém foi julgado, ninguém foi acusado. 

Há deputados que são espancados, presos e ninguém diz nada. Quando invadiram a Rádio Capital prometeram fazer inquéritos, quantos meses se passaram, ouviu falar de alguma coisa, algum inquérito?Ninguém. Ou seja, o Estado também é cúmplice.  

A Procuradoria-Geral da República da Guiné-Bissau instaurou um inquérito para apurar responsabilidades sobre a morte do ativista Bernardo Catchura por alegada negligência médica. Acredita que este inquérito vai permitir conhecer as verdadeiras razões que levaram à morte de Bernardo Catchura?

Se a própria Procuradoria-Geral da República não foi capaz de instaurar um processo sobre o assassinato do Presidente da República e do chefe de Estado Maior, por exemplo, o que é que se pode esperar dessa instituição. Neste momento há pressão, as pessoas sentem que não podem ficar de braços cruzados, mas deixe passar alguns dias. 

Gostaria muito que se tentasse fazer alguma coisa para travar esta onda de negligência, mas eu tenho dúvidas.   

Dois médicos foram detidos “para mais averiguações”. Responsabilizar estes médicos não é permitir ao Estado lavar as mãos deste problema?

Esses dois médicos poderão eventualmente ser “bodes expiatórios”, mas eu não acredito. Porque o sistema está podre e não é só o sistema de saúde. É o sistema de justiça. É a inexistência de autoridade, isso é que está aqui em causa. 

Como o Bernardo, morre muita gente neste país, sobretudo mulheres e crianças que são abandonadas por pessoas que juraram salvar vidas. 

No comunicado que publicaram ontem pedem a demissão do ministro da Saúde da Guiné-Bissau. O Ministro já devia ter colocado o lugar à disposição?

Sim em condições normais. Repare, mais uma vez, que nós não estamos num país normal, estamos num país que anda à deriva e nada mais importa. Onde acontecem actos ignóbeis, todos os dias, e não acontece nada. Espere para ver se vai haver demissão do ministro, ou de qualquer outra pessoa. Porque se começar há muitas cabeças que vão rolar.

Mas é um facto que nós não nos podemos mais calar. Chegamos a um ponto em que as coisas têm de ser chamadas pelo verdadeiro nome.

A repressão policial, durante a vigília em frente ao ministério da Saúde, pode travar este movimento? 

Não, isso não vai acontecer. Não é a polícia que vai calar as pessoas, porque as pessoas já estão fartas! E o problema vai ser quando as pessoas não tiverem mais nada a perder. Esta juventude, está a crescer, está a ver tanta desgraça a acontecer. Não tem trabalho, não tem esperança de encontrar trabalho, não tem escola, não tem formação profissional. Não tem nenhum futuro.

Essa juventude vai chegar a um ponto onde não tem nada a perder e não vai vacilar. Essa repressão policial só vai servir para maltratar algumas pessoas, mas fazendo-a vai reforçar ainda mais o espírito de revolta.

Num texto que publicou nas redes sociais, mostra-se desiludido com algumas das reacções que foram feitas a propósito da morte de Bernado Catchura e diz que “o que mais dói e preocupa é a certeza de que nada vai mudar”. Isto é angustiante...

É totalmente, mas não é gratuito. A impunidade chegou a um ponto, aqui neste país, é incrível. Isto não é um país normal e é preciso dizer isso alto e em bom tom!

Porque se houver uma verdadeira vontade de pôr “os pontos nos is”, como se costuma dizer, há trabalho suficiente para se fazer. 

Mais uma vez, o assassinato de um chefe de Estado, que é simplesmente ignorado. Há deputados que são espancados. Se tudo isso não levou a nada, como é que se pode fazer crer que alguma coisa vai mudar?

Eu acho que se vai fazer barulho, vai-se protestar, mas no fundo nada vai acontecer, nada!

Mas há um dia em que a roda gira...

É justamente para que essa roda vire, o mais depressa possível, que tem de haver acção. Que tem de haver protesto, que tem de haver denúncia... Porque se não essa roda vai ficar encravada e por muito tempo para a desgraça de todos nós.  

 

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