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Presidente de Cabo Verde diz que “é preciso reduzir a vulnerabilidade dos artistas”

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Mindelo, em São Vicente, é berço de grandes nomes da música africana e um caldeirão de efervescência artística, literária e teatral. Cabo Verde foi fortemente afectado pela crise provocada pela pandemia e a cultura foi um dos sectores mais abalados. O Presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, defende que “é preciso reduzir a vulnerabilidade dos artistas”. 

José Maria Neves, Presidente de Cabo Verde. Mindelo, 21 de Março de 2022.
José Maria Neves, Presidente de Cabo Verde. Mindelo, 21 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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O chefe de Estado de Cabo Verde, José Maria Neves, recebeu a RFI no Palácio do Povo, esta segunda-feira, na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, onde promete estar uma semana por mês no âmbito da iniciativa “Presidência na Ilha”. Se a Praia, em Santiago, é a capital política do país, Mindelo é reconhecida como a capital cultural de Cabo Verde. Como está a cultura depois de dois anos de pandemia? O que explica a resiliência cultural cabo-verdiana? Como é que o Presidente pode mobilizar recursos para ajudar o sector? Para quando a oficialização plena do crioulo e como estão os projectos de candidaturas a Património da Humanidade? Eis as respostas de José Maria Neves.

14:46

José Maria Neves, Presidente de Cabo Verde

RFI: Estamos em São Vicente, diz-se que o Mindelo é a capital cultural de Cabo Verde. O senhor Presidente decidiu fazer uma descentralização das actividades presidenciais uma semana por mês nesta ilha. Porquê?

José Maria Neves, Presidente de Cabo Verde: A presidência é um factor de união dos cabo-verdianos nas ilhas e na diáspora e, então, o Presidente deve estar próximo, deve ser um factor de união, de protecção, de cuidados. Para se cuidar, é preciso estar muito próximo das pessoas.

Ou seja, poderá ir também ao estrangeiro? [no âmbito da descentralização da Presidência] 

Também haverá Presidência na Ilha e na Diáspora, mas também o Presidente é Presidente de todos os que não sendo cabo-verdianos vivem aqui e é nesta linha de proximidade e afectividade que nós estamos a fazer Presidência na Ilha, aqui em São Vicente e na Praia pelo facto de serem as duas cidades com palácios presidenciais. Então, estaremos mais vezes, poderemos fazer mais actos oficiais e é nessa linha que vamos continuar a fazer o nosso trabalho. 

Diz-se que Mindelo é a capital da cultura de Cabo Verde. Durante a campanha, prometeu que se fosse eleito seria um embaixador cultural de Cabo Verde. Como é que tem materializado isso? 

Dissemos que seríamos o primeiro embaixador da República em tudo e, no caso cultural, é promover a nossa cultura, levar a cultura cabo-verdiana ao mundo. Há várias formas, desde logo, a integração de agentes culturais, de músicos, de artistas plásticos, de escritores, personalidades ligadas às diferentes manifestações culturais, nas delegações presidenciais. Agora fomos a Angola, estávamos em plena pandemia e não pudemos levar nenhum escritor, mas a nossa intenção era levar um escritor cabo-verdiano e também não pudemos levar uma delegação cultural mais ampla, mas levámos uma representante do grupo Raiz Di Polon para estar presente. Recentemente também homenageámos o grupo Raiz Di Polon.

Raiz Di Polon que é um dos grupos de vanguarda da dança contemporânea de Cabo Verde... Também disse que se fosse Presidente iria mobilizar recursos para construir um Palácio de Exposições e Artes no Mindelo. Para quando? 

Eu disse que, se fosse eleito, trabalharia com o governo e com a câmara - porque são áreas da competência do governo e da câmara e não do Presidente da República - mas estaria disponível para, em concertação e em articulação com essas autoridades, mobilizar parcerias, mobilizar recursos para isso. Portanto, é um trabalho comum, é um trabalho também que tem que ser do interesse da câmara e do governo. Havendo esse interesse e o Presidente da República tendo mostrado vontade de ajudar, estarei disponível para continuar a ajudar, continuar a trazer manifestações culturais aqui para a cidade do Mindelo, trazer manifestações culturais para o Palácio que é uma forma também de ajudar a promover a nossa música, a nossa cultura. 

Recentemente, o Palácio recebeu uma exposição da olaria de Trás-os-Montes. Aqui podemos receber exposições de artistas plásticos, podemos receber manifestações culturais, lançamento de livros - como temos feito também na cidade da Praia - conferências, palestras, ou seja, há muitas formas e mecanismos de o Presidente promover a cultura cabo-verdiana enquanto embaixador. 

Em conversa com artistas locais, as principais queixas estão relacionadas com a falta de uma escola de artes, por exemplo, e também com a falta de um estatuto para o artista. O que é que tem a dizer em relação a isso?

Escola de artes há uma escola privada, espero que que haja mais acção governativa nesse sentido. Temos enormes talentos, temos enormes possibilidades que é preciso articular, integrar e apoiar. Aqui estaria de acordo com essas reivindicações. Acho que - e tenho insistido nesta ideia - não devemos ter uma perspectiva muito oficial, muito governamentalizada, muito estatizada de afirmações no desenvolvimento da cultura. 

Já há a Sociedade Cabo-verdiana de Autores, a Sociedade Cabo-verdiana de Músicos que já estão a trabalhar toda a questão dos direitos autorais. Temos de trabalhar toda a questão da protecção social dos artistas, os artistas têm de estar inscritos na previdência social para poderem ter alguma segurança na velhice, mas também durante a vida útil, para poderem ter assistência médica e medicamentosa e outras prestações. Mas tem que haver também uma iniciativa individual dos artistas relativamente a esta matéria e é claro que lá onde for necessário e possível, o governo também tem de apoiar para que, pelo menos a curto prazo, haja condições para o crescimento das indústrias criativas, para a sua afirmação e a sua sustentabilidade. 

É Presidente de um país que se exportou graças à cultura, nomeadamente graças à música. Este sector foi altamente abalado com a crise do Covid-19 nomeadamente no turismo. Como é que a economia, o turismo e a cultura cabo-verdiana têm resistido a este choque e como é que os artistas têm sobrevivido? Tem havido apoios?

Tem havido algum apoio mas a devastação foi muito grande e é claro que todos nós sofremos enormemente com esta pandemia. Uns sectores mais do que outros. Eu pude viver o drama dos artistas cabo-verdianos. Vários meses sem qualquer rendimento. Felizmente, já há sinais de abertura. Espero que a situação não se agrave e que possamos ter a retoma do turismo, de outras actividades económicas e a retoma do programa cultural a nível do país e que essa retoma venha compensar as enormes perdas que todos nós tivemos, particularmente os artistas cabo-verdianos.  

Mas deve servir-nos também de referência que temos de trabalhar rapidamente para reduzir a vulnerabilidade dos agentes culturais e dos artistas cabo-verdianos em todos os domínios, designadamente trabalhando melhor a questão dos direitos autorais, a questão da segurança social, os apoios que devem ser concedidos a vários sectores da cultura cabo-verdiana, sobretudo na perspectiva da busca de uma maior sustentabilidade. A vulnerabilidade do país exige de nós a busca permanente de sustentabilidade. Somos resilientes, já demos prova disso em vários momentos. Agora é continuar a trabalhar para que possamos sustentar essa dinâmica de desenvolvimento e crescimento do país. 

Prometeu a oficialização plena do crioulo. Mas a simples introdução do crioulo nas escolas, como disciplina opcional, está a dar muita polémica...

O que não tem polémica não serve para nada. A polémica é o sal da construção de soluções sustentáveis para o país. O importante é debater e não estarmos enclausurados em posições...

Mas este debate acontece há tanto tempo. As pessoas precisam da língua materna nas escolas...

É precisamente isso. Não podemos continuar indefinidamente a debater. Temos que tomar posições, temos que acelerar o passo e não ficar indefinidamente a debater. Desde Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, etc, estamos a discutir e eles deram um enorme contributo, no final do século XIX, inícios do século XX para a promoção da língua cabo-verdiana. Depois, houve outros estudos, Dulce Duarte, Baltasar Lopes da Silva, há agora os linguistas formados que estão interessados em desenvolver todas as variantes, em fazer propostas, em acelerar o passo. Aproveitemos esta dinâmica. Nunca vamos ter consenso, nunca vamos ter unanimidade, o importante é começar. Os chineses, que têm uma experiência secular nessas coisas, dizem que um caminho de muitos quilómetros começa por um primeiro passo. 

O senhor Presidente apadrinhou a candidatura da crioulização e das culturas crioulas a Património Mundial da Humanidade da UNESCO. Qual o sentido de reconhecer esta crioulização como Património Mundial quando os cabo-verdianos ainda não  aprendem o crioulo nas escolas?

Uma das grandes riquezas de Cabo Verde é a nossa língua que nós criámos aqui em Cabo Verde e que depois se espalhou pelo mundo. Temos que valorizar esse património e os especialistas na matéria mostram que se a aprendizagem for feita a partir da língua cabo-verdiana, será mais fácil aprender o português - que é também língua oficial, que é também nosso património - e aprender outras línguas. 

Então, aceleremos o passo e valorizemos o que é nosso, trazendo para o espaço da discussão todas as variantes. Não há nenhuma variante mais importante que a outra. Pelo que me dizem os especialistas, o futuro da língua cabo-verdiana é a confluência da contribuição de todas as variantes e é isso que está a acontecer. Já há uma grande interpenetração entre as variantes. As variantes existiam antes de forma muito mais acentuada por causa do isolamento das ilhas. Com a abertura e a mobilidade das pessoas entre as ilhas, isto vai evoluir rapidamente. Não tenhamos dúvidas sobre isso. E se as coisas acontecerem, as pessoas vão esclarecer as dúvidas que têm neste momento. 

Ainda sobre o Património Mundial, depois de a morna ter sido reconhecida na Unesco, o governo anunciou que vai assumir a candidatura dos escritos de Amílcar Cabral ao programa "Memória do Mundo" da UNESCO. Também está em processo a candidatura da cimboa e estariam a ser ultimadas as candidaturas da tabanca e do campo de concentração do Tarrafal a Património da Humanidade. Que perspectivas para estas candidaturas e o que pode trazer para Cabo Verde?

Desde logo o reconhecimento da importância cultural e também são importantes instrumentos de promoção de Cabo Verde no mundo. Devemos procurar que essas manifestações – já temos a Cidade Velha como Património da Humanidade, já temos a morna – e é importante trazer esses outros elementos da cultura cabo-verdiana, como cimboa, os escritos de Amílcar Cabral, o Campo de Concentração do Tarrafal que faz parte da memória não só de Cabo Verde mas também de todos os países de língua portuguesa e da luta pela liberdade. 

Então, vale a pena mostrar os ganhos que nós já temos, sobretudo para servir de referência para o futuro, de modo a não regressarmos, em nenhuma circunstância, à vida que tivemos aqui em Cabo Verde de forte opressão e de forte cerceamento da liberdade. É o caminho para mais dignidade. 

Quando cimboa se tornar património da Humanidade, mostra que também neste domínio podemos viver com muito mais liberdade de espírito e muito mais dignidade. Quando os escritos de Amílcar Cabral forem conhecidos no mundo e forem património no mundo, estamos a promover Cabo Verde e estamos a promover toda uma luta pela liberdade e pela dignidade das cabo-verdianas e dos cabo-verdianos.

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