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O “sítio inventado” por Molière resiste “até ao fim dos tempos”

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Os clássicos não envelhecem e 400 anos depois do nascimento de Molière, o “sítio inventado” pelo dramaturgo francês continua de portas abertas e “é um edifício que se manterá até ao fim dos tempos”. As palavras são de Miguel Loureiro, actor e encenador português que levou a palco, em 2016, o “Impromptu de Versalhes”, “um improviso sobre a própria condição de estar em cena” num assumido jogo de espelhos.

Miguel Loureiro, actor e encenador português. Lisboa, 19 de Junho de 2022.
Miguel Loureiro, actor e encenador português. Lisboa, 19 de Junho de 2022. © Carina Branco/RFI
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Os 400 anos do nascimento de Molière continuam a levar-nos à descoberta das releituras em língua portuguesa do dramaturgo francês. Em Lisboa, fomos conversar com o actor, encenador e dramaturgo Miguel Loureiro.

Miguel Loureiro passeia com a poesia nos palcos e na esplanada de café que escolheu para nos falar sobre Molière: o jardim no alto de Santo Amaro, em Alcântara. Uma poesia que rima com os esboços de vozes e palavras no ar, com o sol a cruzar as guirlandas de uma Lisboa naturalmente alegre de um final de manhã de Junho.

De todo o repertório de Molière, Miguel Loureiro escolheu revisitar uma das peças menos conhecidas de Molière e que mais homenageia a criação teatral: “O Impromptu de Versalhes”.

Eu gosto muito de Molière, até me sinto, muitas vezes, mais atraído por Molière que por Shakespeare. Molière tem a questão do jogo teatral, é intrinsecamente teatral, enquanto Shakespeare é maior do que teatro, é um mundo, é uma coisa literária. Eu gosto muito mais desse jogo de espelhos em que através de Molière se reflecte o mundo e não ir ao mundo em si para chegar ao jogo teatral”, começa por explicar o encenador.

A ficção nas peças de Molière tem consciência de si própria enquanto jogo teatral e é isso que eu acho ultramoderno em Molière que é uma coisa que voltou a aflorar muito no final do século XX e que continua connosco hoje nas práticas performativas, que é denunciado por Brecht logo no início do século, ter consciência que estamos a fazer o jogo teatral, não querer impingir a ficção pela ficção porque não estamos para alienar. O espectador tem que perceber que temos de reflectir com ele, estamos a utilizar pensamento com ele - através da ficção, certo - mas estamos a utilizar pensamento com ele. Molière nisso é moderníssimo”, continua.

O "Impromptu de Versalhes" é apresentado por Molière a Luís XIV, em 1663. Em palco, Molière é dramaturgo e actor de si próprio e lança à sua trupe o desafio de escrever e encenar um espectáculo para o rei em apenas oito dias. A peça acaba por falar de um ensaio que nunca acontece, para uma peça que nunca foi escrita, para um espectáculo que nunca foi preparado, mas que mesmo assim pode ser apresentada ao Rei. Uma espécie de teatro dentro do teatro que pensa a própria disciplina teatral e que seduziu Miguel Loureiro mais de 350 anos depois.

O Impromptu, como o próprio nome diz, é um improviso sobre essa condição de estar em cena e sobre esse mundo dentro de outro mundo que é o mundo maior. É o mundo teatral dentro do outro mundo, um mundo que é de reflexos convexos, côncavos, deformadores, ampliadores. É muito engraçado porque é uma auto-reflexão, uma consciência de si que depois só temos no século XX em Pirandello, o teatro dentro do teatro - e vamos tendo, não só em Pirandello, mas não de uma forma sistemática. Isso é muito moderno porque hoje uma das temáticas dos criadores contemporâneos é sempre um bocadinho a questão do processo, fazer espectáculo do próprio processo”, descreve.

É uma coisa muito moderna e inaudita ter Molière a escrever sobre Molière, a escrever sobre a madame Molière e a escrever sobre os actores que o acompanharam sempre e a escrever sobre as próprias condições de encomenda aos artistas porque aquilo é uma diligência do rei que pede a peça para divertimento. Ficamos com uma perspectiva do que se passava no século XVII sobre essas questões que também são importantes, são as condições de produção”, acrescenta.

Além disso, Molière “dá-se em espelho contaminado com todos esses defeitos e essas virtudes que ele emprestava às personagens ficcionais nos outros textos”. Miguel Loureiro não teve medo de também se dar em espelho. Ao texto original, que usa como estrutura fundamental, Miguel Loureiro somou trechos de textos de outras peças de Molière e citações de Shakespeare, Gil Vicente, Ésquilo, Diderot, Racine.

Desafiando o “jogo de perigo” a que Molière se sujeitou, o encenador português apropriou-se da peça com liberdade e acrescentou ao texto comentários seus e apartes, por vezes cáusticos, sobre personalidades do meio teatral. “Era um jogo de espelhos”, explica. “Como se fosse uma caixa dentro de uma caixa dentro de uma caixa”, em suma, uma matriosca em palco.

As críticas eram dirigidas ao patético que existe em todas as profissões e, sim, usei nomes de pessoas do meio. Tinha que ter esse jogo de perigo. Molière também se expôs a esse jogo de perigo, criou muitos inimigos por causa disso. Mas eu não era para me comparar sequer a nada do sistema de Molière. O que gosto é do sistema em si que ele utiliza, do mecanismo que ele utiliza e escudado pelo humor superior dele, pelo alto humor, pela alta comédia”, continua. No fundo, “é uma peça que dá o teatro em espectáculo.”

Quanto ao texto, Miguel Loureiro explica que “é muito vivo no diálogo, sem grandes tiradas monologais, muito contracenado, com frases curtas e um ping pong intenso”. “As pessoas iam connosco ao texto de Molière sem grandes elaborações de tradução nem adaptações. Eu não gosto de actualizações forçadas. Eu acredito na inteligência do público e na capacidade para furar as metáforas temporais e o próprio jogo temporal”, sublinha o encenador, admitindo que “o clássico, por si, não envelhece”.

Ele [Molière] constrói quase um país, uma nação ligada àquela maneira própria de pôr poesia no mundo e é trágico também porque o humor dele é perigoso e deixa-nos desolados (…) Era de génio. O génio às vezes não se explica, mas é um sítio que está inventado e que está ali aberto para nós o visitarmos, profissionais de teatro e o público connosco. Nós abrimos as portas e o público entra para um edifício que se manterá até ao fim dos tempos como um sítio para visitas”, conclui.

E é por aqui que termina esta viagem ao “sítio inventado” por Molière, à boleia do encenador português Miguel Loureiro. Para ir mais longe, pode ouvir a entrevista completa neste podcast. 

20:12

Convidado: Encenador Miguel Loureiro

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