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Kady: A voz pode ser “uma fogueira” e arma de empoderamento

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A cantora e compositora cabo-verdiana Kady usa “a voz como arma” em prol “da igualdade, da aceitação” e do empoderamento, sobretudo da mulher africana. Kady lançou um novo EP que chamou “Lumenara”, uma referência à fogueira da festa “Kola San Jon” e à força interior que diz existir em cada pessoa. A cantora rodeou-se de amigos músicos para compor o seu EP que descreve como tendo “uma identidade muito cabo-verdiana apesar da fusão com a pop”.

"Lumenara", de Kady, está disponível nas plataformas digitais.
"Lumenara", de Kady, está disponível nas plataformas digitais. © Kady
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RFI: A Kady lançou um novo EP intitulado “Lumenara” que já se encontra disponível nas plataformas digitais desde 11 de Novembro. O que significa “Lumenara”?

Kady, Cantora e compositora: Lumenara significa fogueira, diz-se isso muito na época das festas de São João que se fazem em São Vicente, em Santo Antão. A música Lumenara foi muito inspirada nessa festa, que é uma forma também de fincar as nossas raízes. Lá, eles saltam a Lumenara, a fogueira, nessa festa. Como, para mim, a fogueira também representa força, representa o renascimento, eu senti que esse nome faria muito sentido porque acredito que dentro de cada um de nós existe essa fogueira e que nós temos que alimentá-la.

A 16 de Novembro apresentou o novo single, "Tamina". Do que é que fala esta música?

A "Tamina" fala de uma mulher, uma mulher que eu vejo como uma mulher cabo-verdiana, que luta de forma honesta e que se levanta sempre, apesar dos obstáculos que a vida apresenta. Ela vem de um bairro precário, onde ela tinha tudo para não dar certo na vida, mas ela lutou de forma honesta e venceu e isso deixa toda a sua comunidade orgulhosa. Ela representa muitas mulheres que eu conheço e acho que muitas mulheres se identificaram também com a música.

No comunicado de lançamento do seu EP, podemos ler que neste trabalho, a Kady afirma “um espaço importante de representatividade como crioula africana, negra e mulher”. As suas canções são, de facto, um manifesto ao empoderamento da mulher africana?

Com certeza. Isso é um grande objectivo que eu tinha ao fazer esse álbum porque é necessário, porque eu senti essa necessidade de fazer, porque agora eu vivo em Portugal, não é? Eu nasci e cresci em Cabo Verde e lá não sentia tanto a necessidade dessa representatividade porque eu estava em África - apesar de, ainda assim, sentir o colorismo. Mas aqui, em Portugal, eu senti mais e pensei muito nas crianças negras que nascem cá. Onde é que elas encontrariam uma representatividade, ver alguém e se identificarem com essa pessoa, tanto a nível cultural como a nível físico. Então, eu fiz mesmo por necessidade de sentir a importância que isso teria na vida das pessoas.

A canção "Nha Kabelu" fala em cabelo, mas não estamos a falar só de cabelo... O cabelo pode ser político?

Exacto, pode ser político. Acho que é um símbolo de liberdade também. Passa muito por nós sabermos quem nós somos e de onde viemos e de nos aceitarmos. A mulher negra, durante muito tempo, ela esteve em negação porque a sociedade dizia que ela não era bonita e ela acreditou nisso. Nós acreditámos nisso por muito tempo e acho que já está na hora de nos vermos como nós somos e gostarmos e sentimos orgulho do que nós somos e de onde viemos.

Precisamente, vamos falar de onde vem a Kady. É herdeira de uma longa história que junta Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola numa família de activistas e de artistas. É filha de Terezinha Araújo, fundadora do grupo cabo-verdiano de recuperação da tradição, os Simentera, e é neta de Amélia Araújo, figura do PAIGC, que era conhecida na Guiné, onde difundia os ideais da Independência aos microfones da Rádio Libertação. Como é que toda esta história de mulheres fortes na sua família a influencia ainda hoje na música e na vida em geral?

Acho que este EP mostra muito a influência que eu tive da dessas grandes mulheres que eu tenho o privilégio de ter na minha vida. Quando diz que o grupo Simentera é um grupo que vai buscar as raízes da música de Cabo Verde, foi precisamente o que eu fiz neste EP. Falando da minha avó, que usava a voz dela como arma na luta, é exactamente o objectivo que eu tenho: usar a minha voz como uma arma, de uma forma muito amorosamente falando, como uma arma para espalhar mensagens que eu acho importantes.

Então, há uma influência muito grande dessas duas mulheres a nível pessoal, a nível de como eu estou na vida. Mostraram-me, desde cedo, que eu não tinha limites por ser mulher, que nós vivemos numa sociedade muito machista, que limita muito as mulheres, mas eu tive o privilégio de nunca ter essa limitação dentro da minha cabeça por ter sido criada por essas mulheres.

Diz que quer usar a sua voz como uma arma. A cantiga é então uma arma, mas uma arma contra quê? Contra esta sociedade patriarcal e racista em que vivemos?

Uma arma não contra, mas pró amor, pró igualdade, pró paz e pró aceitação, principalmente da mulher negra, que como eu disse, esteve muito tempo a não gostar de si própria.

Ao mesmo tempo, em “Djuntu”, no mesmo EP, fala na necessidade de união. É também essa mensagem que quer passar, uma mensagem que acaba por chocar com muito do que vemos nos dias de hoje?

Sim, porque eu acho que é importante nós sermos diferentes, sim. Se formos a ver, muitos conflitos que acontecem, acontecem porque nós não aceitamos o outro como sendo diferente de nós e com uma ideologia diferente. Somos diferentes e isso é bom. Ainda bem que não somos todos iguais, mas podemos estar todos unidos nas nossas diferenças e isso nos torna, com certeza, mais fortes.

Como é que foi a criação de “Lumenara" e que histórias conta?

O processo de criação foi lindo. Em 2020, fizemos um campo criativo, eu e muitos artistas e produtores que eu admiro muito, nomeadamente o Djodje, o Dino de Santiago, o Gerson Marta, o Toty Sa'Med e muitos outros artistas que ajudaram a compor este EP. Aconteceu de forma muito natural, as músicas, porque eu estava mesmo à procura de uma nova identidade musical porque já não me identificava muito com o que fazia antes. Houve uma mudança artística, em mim e como pessoa também, o que é normal com o passar dos anos. Aconteceu de forma muito natural, como já tinha dito, e foi um processo longo até lançarmos o álbum.

As músicas ficaram concluídas em 2020. Em 2021, gravámos os vídeos e agora, em 2022, no final de 2022, lancei o EP muito também porque nós queríamos lançar o EP ao mesmo tempo que sairia o vídeo do Tamina no Colors. Então, o processo do Colors também foi um processo longo, mas até que enfim que já está tudo fora e as pessoas já podem ter acesso a todas as músicas.

A plataforma "A Colors Show", de que falava, é uma plataforma de descoberta de novos artistas disponibilizada no YouTube. Que força é que esta plataforma pode dar à sua carreira?

Nós fizemos uma candidatura, enviámos as músicas do EP todo e eles é que escolheram o Tamina para eu ir cantar. Foi por aí seis ou sete meses neste processo, gravámos em Junho e agora saiu no dia 14 [de Novembro]. É um grande sonho realizado. Eu acho que o Colors é uma plataforma mundialmente conhecida. Tens subscritores do mundo inteiro e tenho sentido isso nas mensagens que eu recebo. Desde o lançamento do "Tamina", mensagens de pessoas de países diferentes que nunca tinham tido acesso à minha música e graças a essa plataforma, estou a chegar a esses países.

O EP “Lumenara” tem uma musicalidade contemporânea que não esquece, como você disse, a tradição cabo-verdiana, mas há uma fusão, de certa forma, da música cabo-verdiana com a pop e diferentes ritmos africanos. Que identidade quis dar a este trabalho?

Uma identidade muito, muito, muito cabo-verdiana, apesar de ter essa fusão com pop e trazer a música cabo-verdiana para os tempos em que estamos vivendo agora, como eu sinto. Queria muito trazer Cabo Verde neste álbum, que alguém que ouvisse - apesar de eu estar a cantar em crioulo - ouvisse também os ritmos, os instrumentos, a sonoridade muito cabo-verdiana. Isso também se reflectiu muito na forma como eu compus as letras, palavras que hoje em dia nem se usam muito em Cabo Verde. Fui buscar as raízes, ao trazer as palavras que se usavam, por exemplo, no interior de Santiago e é trazer a nossa cultura para a contemporaneidade, para o mundo que estamos hoje.

Depois do seu primeiro álbum a solo, em 2015, Kaminho, chamaram-lhe “a cantora da soul crioula”. O disco crioulizava a soul, o jazz, o funk, o hip hop. Este caminho convergiu para este novo EP ou foi só um caminho para encontrar o caminho actual e a nova identidade?

É como se diz, o caminho faz-se andando. Com certeza, foi um pontapé de saída para eu chegar hoje a essa sonoridade. Eu acho que a forma de cantar vai ser sempre muito soul porque está em mim, acho que tem uma influência grande do soul na forma de cantar, mas eu já não me identificava tanto, apesar de ouvir ainda muito e acho que tudo faz parte do caminho. Tudo faz parte do caminho para evolução.

De onde vem a paixão pela soul? Você estudou música nos Estados Unidos, na Weslyan University e no Berklee College of Music. Foi essa bagagem americana que ainda hoje a influencia?

Na verdade, foi antes disso. Desde pequena que eu ouvia de tudo lá em casa, mas, por exemplo, a minha mãe tinha um CD da Mariah Carey, da Céline Dion, da Whitney Houston, que é uma cantora que ainda adoro e, depois, com o tempo, eu fui pesquisando mais e como gostava muito do estilo, fui à Internet também e fui à procura de mais cantores. Mas foi antes de ir para os Estados Unidos. Na verdade, nessas escolas nos Estados Unidos, eu fiz mais jazz e canto lírico.

O jazz também é uma das suas paixões…

Sim, adoro, adoro. Eu gosto igualmente de muitos estilos de música, como o hip hop. Tanto estou a ouvir uma Cesária Évora como estou a ouvir um 2Pac.

Está a viver em Lisboa, ainda que tenha nascido e crescido na ilha de Santiago. Porquê Lisboa e em Lisboa encontrou essas misturas que lhe deram a sua sonoridade, essa panafricanidade moderna?

Eu acho que sim. Vim para Lisboa para estudar e depois acabei por trilhar aqui no caminho da música, mas eu tive acesso a muitos músicos e conheci muita gente. Aqui em Lisboa, a “Lisboa crioula” como diz o Dino de Santiago, tens toda essa mistura. Tens angolanos, moçambicanos, tens tudo isso à disposição e que talvez em Cabo Verde não teria. Então, acho que isso influenciou muito, sim, para chegar nesse porto, nessa sonoridade musical. Foi uma grande inspiração.

Ao mesmo tempo que tem essa Lisboa crioula a nível musical, foi aí que, pela primeira vez, sentiu a necessidade de afirmar-se mais do que nunca como mulher africana, porque, como disse há pouco, sentiu algumas diferenças de tratamento...

Na verdade, eu tive um despertar um bocadinho tardio, digamos assim. Eu não tinha consciência do racismo, por exemplo, porque eu achava que se uma pessoa me estivesse a tratar mal era porque não gostava de mim e não porque não gostava da minha cor. Eu não ligava uma coisa à outra e essa consciência veio mais tarde. É mais para dar a voz àqueles que não tiveram oportunidade de falar porque eu assisti a alguns momentos que me trouxeram angústia, mas que não aconteciam comigo directamente. Por isso é que eu senti a necessidade de haver essa representatividade para que essas pessoas que nós não ouvimos falar na rádio ou não estão nas televisões se sentirem confortadas e sentirem que têm voz.

Para terminar: projectos para os próximos tempos. Há concertos em agenda, nomeadamente no estrangeiro?

Ainda não. Estamos a preparar a agenda para o próximo ano mas, por agora, vou estar no Super Bock em Stock no dia 26 de Novembro para fazer a apresentação do álbum, aqui em Lisboa, no cinema de São Jorge, e vamos começar a preparar a agenda para o próximo ano. Por agora, estamos a trabalhar neste concerto.

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