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"By Heart" encerra primeiro Avignon dirigido por Tiago Rodrigues

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O director do Festival de Avignon, Tiago Rodrigues, apresentou, esta quarta-feira, o cartaz da 77ª edição do festival que vai decorrer de 5 a 25 de Julho. O evento abre com G.R.O.O.V.E, da francesa Bintou Dembélé, e vai cruzar “grandes nomes das artes performativas” com “nomes menos conhecidos”. O inglês é a língua convidada, mas há artistas lusófonos e o festival vai fechar com "By Heart", a peça que revelou Tiago Rodrigues ao público francês há quase uma década. 

Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon. 15 de Setembro de 2022.
Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon. 15 de Setembro de 2022. AFP - JOEL SAGET
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RFI: Nesta sua primeira direcção artística do Festival de Avignon, que vai decorrer de 5 a 25 de Julho, o que está previsto em termos de programação portuguesa ou lusófona?

Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon: Em termos de artistas portugueses presentes na programação temos, ainda, uma presença muito modesta porque é o primeiro ano em que estou na direcção do Festival de Avignon e não quero de todo que haja equívocos de que agora há uma invasão portuguesa em Avignon. Mas também não sou provinciano ao ponto de achar que a criação portuguesa não tem lugar de mérito próprio num festival como o Festival de Avignon.

Então, teremos a participar num projecto colectivo - com vários outros artistas e que tem curadoria de Stefan Kaegi e Caroline Barneaud - Sofia Dias e Vítor Roriz, dupla bem conhecida já do público francês, com uma criação para o espaço natural. É uma criação para uma paisagem que será parte de um espectáculo que tem sete peças para campos e florestas e que convida o público durante um final de tarde e durante a noite a descobrir a paisagem ao pôr do sol na zona de Pujaut, a alguns minutos de Avignon.

Teremos, também, a presença de intérpretes portugueses, por exemplo, Isabel Abreu e Carolina Passos Sousa que são intérpretes da peça de um dos grandes nomes da dança contemporânea europeia e francesa, Mathilde Monnier.

Eu vou estar presente, também, mas não com uma criação porque este ano prefiro estar disponível para as inquietações dos artistas e do público e não ter inquietações individuais. No final do festival, apresentarei “By Heart”, um espectáculo que criei há 10 anos em Lisboa, mas que marca muito daquilo que é a minha relação também com a França porque é um espectáculo que circulou muito.

“By Heart” é, também, o espectáculo pelo qual passou a ser “conhecido” em França…

Digamos que apesar de já trabalhar em França antes, “By Heart” é o espectáculo que me revela ao público francês e que me afirma junto do público francês e que, de alguma forma, terá iniciado um caminho que me trouxe a Avignon e que me fez, no último ano, emigrar e passar a viver em Avignon.

Inicialmente, o Tiago Rodrigues tinha dito que não iria apresentar peças suas, mas vai acabar por apresentar “By Heart” [a 25 de Julho]. Porquê?

O que eu disse inicialmente foi que não iria fazer uma criação para o Festival de Avignon e cumpri exactamente aquilo que disse, que não iria, neste primeiro festival, fazer uma criação de um espectáculo porque isso significaria estar preocupado, inquieto com o espectáculo que iria apresentar, em vez de poder ser um agente de tranquilidade, de acompanhamento, de apoio de artistas que, eles e elas sim, têm todo o direito a estarem ligeiramente inquietos com a ideia de uma estreia no Festival de Avignon porque eu já vivi esta situação e pode ser, efectivamente, um momento crucial num percurso artístico e que cria algum nervosismo.

A minha escolha de não fazer uma criação nesta primeira edição do festival corresponde à minha vontade de estar disponível para as inquietações colectivas e de não estar demasiado ocupado com inquietações individuais.

No entanto, ao imaginar aquilo que poderia ser um fecho do festival com a equipa do festival, a ideia de que “By Heart” - um espectáculo que marcou e marca muito a minha relação com a França, que é um cartão de visita, que foi como eu me revelei junto do público francês - poderia ser uma forma de me encontrar em palco com o público que durante os 21 dias do festival foi cúmplice desta proposta de programação de artes performativas que nós queremos partilhar com o público. Pareceu-nos generoso, pareceu-nos um momento que também pode ser um momento de prazer, de encontro simbolicamente entre quem faz o festival, a equipa do festival, e o seu público, através da presença do director em palco face a um público.

Decidimos marcar, por um lado, os 10 anos de “By Heart” - o cumprir de um ciclo, de uma história, de um artista com um país e um público - e marcar, também, este momento como um momento de encontro entre o director do festival que representa toda a equipa e o público do festival.

O inglês é a língua convidada este ano. Se o teatro é o espaço de utopia e de resistência, porquê o inglês, a língua dominante, no primeiro Festival de Avignon dirigido por Tiago Rodrigues?

Precisamente por causa dessa presença dominante do inglês a nível global que é uma forma de empobrecimento da língua. O inglês dominante não é a riqueza histórica do inglês, nem é a riqueza da diversidade e da inovação do inglês que se fala hoje em muitos pontos do planeta.

A escrita de, por exemplo, uma escritora como Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana, que escreve em inglês e que estará presente no Festival de Avignon, é muito diferente da escrita, por exemplo, de Tim Crouch, grande referência do teatro britânico que virá, pela primeira vez, a França com dois espectáculos e pela primeira vez, também, ao Festival de Avignon, ou dos nova-iorquinos Elevator Repair Service, bem conhecidos do público português, mas que virão também eles, pela primeira vez, ao Festival de Avignon.

Todas estas línguas inglesas, em toda a sua diversidade, são apagadas pela preponderância deste inglês empobrecido e global que se fala por questões utilitárias, por questões económicas.

Achámos que era muito importante, num período pós-brexit, responder, também, a erros políticos que criam clivagens por questões de populismos, nacionalismos e extremismos inaceitáveis em democracia. Responder, do ponto de vista da cultura e das artes performativas, criando pontes onde elas estão em risco de ser destruídas, para continuar a ter um entendimento, por exemplo, do que é o continente europeu, um continente poliglota, aberto a outras línguas, interessado na tradução e na confusão feliz da tradução e a pensar no encontro de culturas, no encontro de línguas e no encontro com o outro.

Já nos anunciou três nomes presentes na programação deste ano. Que outros nomes quer destacar? E há linhas de força, tendências ou grandes temas nesta sua primeira edição enquanto director do Festival de Avignon, tendo em conta que habituou o público a pensar, ao levar a palco temas sociais e até urgências intemporais do repertório clássico?

Eu diria que há um equilíbrio muito interessante entre grandes nomes já conhecidos do grande público - como sejam Anne Teresa De Keersmaeker, Krystian Lupa, grande mestre do teatro europeu, Milo Rau, Philippe Quesne, Mathilde Monnier - com nomes menos conhecidos e, muitos deles, pela primeira vez em Avignon. Nós temos 75% da programação composta por artistas que vêm pela primeira vez a Avignon e que serão descobertas para o público de Avignon. Falo, por exemplo, de artistas como Pauline Bayle, Susanne Kennedy, Trajal Harrell, Alexander Zeldin, artistas que, ao estarem pela primeira vez em Avignon, são artistas que propõem essa ideia de trampolim para a descoberta, para o futuro, que é também uma das coisas importantes.

O público que se desloca a Avignon e o público que está em Avignon e que vive o festival espera, por um lado, encontrar os grandes nomes das artes performativas de hoje, mas também quer ser surpreendido, estar numa espécie de instituto internacional do inesperado. E é esse equilíbrio entre artistas muito conhecidos e artistas a descobrir que nós queremos propor.

Fazemo-lo desde a primeira hora com uma artista que vem, pela primeira vez, a Avignon, Bintou Dembélé, que não é muito conhecida ao nível internacional, mas que na cena francesa é uma artista que tem feito um percurso absolutamente extraordinário, partindo do hip hop. É uma figura lendária dos anos 2000 do hip hop francês e que foi trabalhando na mistura do hip hop com a dança contemporânea. Hoje, propõe uma linguagem coreográfica que me parece absolutamente singular ao nível europeu e que merece ser descoberta e, ao mesmo tempo, uma mistura de públicos que permite que trabalhe, por exemplo, com o espectáculo G.R.O.O.V.E que vai abrir o festival no espaço público e depois entre na ópera e nos faça visitar a ópera por outro ponto de vista.

Com a Bintou Dembélé misturamos dois mundos: o mundo da criação artística que já conhecemos e o mundo do inesperado. É talvez um dos exemplos marcantes desta edição e também da vontade que o Festival de Avignon seja um espaço de reencontro com o público fiel e de abertura permanente a novos públicos.

O Tiago Rodrigues disse, várias vezes desde que assumiu a direcção do festival, que o vê como uma partitura de música. Vai-se limitar a interpretar o que está escrito, vai escrever nas entrelinhas ou vai acrescentar algumas notas ao festival e criar o tal “instituto internacional do inesperado”?

Acompanhado por uma equipa extraordinária, acho que vou tentar fazer todas as coisas que acabou de enumerar. Vou tentar interpretar aquilo que é a partitura do Festival de Avignon, esse projecto de utopia de teatro popular, com propostas de grande qualidade, de grande exigência, às vezes de complexidade, mas com um acesso fácil, o mais democrático e diverso possível do grande público.

Vou tentar escrever nas entrelinhas, inaugurar linhas de trabalho em Avignon como, por exemplo, este ano, o facto de haver vários espectáculos que vão acontecer no espaço natural. Aos monumentos já habituais e muito singulares de Avignon - o público vê espectáculos em claustros, capelas, em monumentos da UNESCO, como o Palácio dos Papas – acrescentamos o espaço natural para permitir aos espectadores descobrirem também este território e as paisagens deste território de outra forma.

E vou tentar, também, acrescentar, eventualmente, algumas notas com surpresas como, por exemplo, esta ideia de ter a cada edição uma língua convidada mas, também, a ideia, por exemplo, de recuperar todos os anos um espectáculo que foi marcante na história de Avignon.

Este ano temos “En Atendant”, de Anne Teresa De Keersmaeker, que é um espectáculo que foi criado há 13 anos, em 2010, no Festival de Avignon, que acontece ao pôr do sol, sem luz eléctrica, sem projectores, que está em contacto com a natureza, no Cloître des Célestins – um claustro belíssimo da cidade de Avignon – e nós vamos repô-lo à mesma hora, no mesmo lugar, exactamente nas mesmas condições, para que gerações mais jovens que nunca tiveram acesso a viver esse momento, em 2010, possam agora descobrir esse espectáculo que marcou a memória do público.

Falou várias vezes em encontro, reencontro, utopia. O facto de ser o primeiro artista estrangeiro director do Festival de Avignon vai mudar alguma coisa e o que é que representa?

Eu julgo que o facto de ser o primeiro artista estrangeiro a dirigir o Festival de Avignon fala mais sobre a sociedade francesa, ou de uma parte da sociedade francesa, que deseja uma democracia aberta, hospitaleira, solidária, diversa, um país de encontro de culturas, de linguagens. E é essa sociedade e esses valores democráticos a que eu me associo também quando aceito dirigir o Festival de Avignon.

É por essa ideia de utopia de teatro popular, mas também de festival internacional, poliglota, de pluralidades estéticas, de pluralidade de visões do mundo a partilhar com o público, que me ponho ao serviço. É por essas ideias que decidi vir viver para Avignon, emigrar, coisa que nunca tinha imaginado fazer porque tinha uma vida também muito feliz em Portugal ao nível profissional e pessoal, mas a paixão por este festival e a paixão pela sua história e pelos seus valores mobilizou-me para abraçar este desafio.

O facto de ser estrangeiro fala mais das portas abertas à minha presença do que daquilo que será efectivamente o meu trabalho à frente do festival, embora espere -até com alguma ansiedade - as interpretações que poderão ser feitas de diferenças ou evoluções que se encontrem no festival pelo facto de eu ser, não só estrangeiro, mas também português.

A língua portuguesa vai ser a convidada de uma das próximas três edições?

A língua portuguesa tem todo o mérito e legitimidade para ser uma das línguas convidadas do Festival de Avignon, embora, como bom português, eu chegue com a modéstia e a doçura de não o fazer numa primeira edição.

Para terminar, agora que está à frente de um dos principais festivais de teatro do mundo, o que deve representar o teatro em 2023?

O teatro e as artes do palco existem, fazem parte da aventura humana, da experiência humana. Cabe à sociedade, cabe-nos a nós colectivamente, encontrar uma função para o teatro, mas não devemos limitar a liberdade artística, o gesto artístico para que ele corresponda a uma função que nós achamos, num determinado momento da história, que ele deve cumprir.

O teatro, no meu entender, é, do verbo ser. O teatro É e cumpre-nos a nós, sociedade, criar os mecanismos para que ele possa - e aí é essa a minha convicção com o Festival de Avignon – ser um factor de coesão social, um lugar de encontro, sensível, à volta da experiência artística. Para que pessoas diferentes, numa situação de igualdade, pessoas com experiência de vida, capacidade económica e educação diversas, estejam numa mesma fila, em lugares semelhantes, a olhar para um mesmo espectáculo e, no final, possam conversar entre elas, debater - para não se baterem - debater sobre o mundo, sobre aquele espectáculo, encontrarem-se de outra forma através da criação artística.

E, portanto, acredito que o teatro pode ser hoje – sobretudo numa sociedade que valoriza o conforto, o ficar em casa, o acesso tecnológico, a facilidade de tudo vir ter connosco – pode ser essa bolsa de resistência utópica, onde ainda nos deslocamos para nos encontrarmos com desconhecidos, face ao mistério de qualquer coisa que não sabemos ainda se nos vai agradar ou não. Para que possamos estar juntos pela razão de amor da arte e a importância que a arte pode ter para nós olharmos para o mundo de outra maneira.

Se há uma função que eu acredito que as artes podem ter, hoje, é essa função de reunir pessoas diferentes, numa condição igual, para que as diferenças possam ser uma razão de encontro, de diálogo e de transformação da sociedade numa sociedade mais igual e mais justa.

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