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Reportagem

Moçambique: "O medo deste país é que ele se divida"

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O escritor moçambicano Mia Couto elogia a ironia de José Craveirinha, a virtude da língua portuguesa e lembra que em 2004 já havias sinais de conflitos no norte de Moçambique.

Escritor Moçambicano, Mia Couto, na Fundação Fernando Leite Couto.
Escritor Moçambicano, Mia Couto, na Fundação Fernando Leite Couto. © RFI/Lígia Anjos
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RFI: Moçambique celebra o centenário do nascimento de José Craveirinha, escritor que conheceu bem. O que inspira hoje a obra deste grande escritor moçambicano?

Mia Couto: O Craveirinha acabou por ser não uma voz, mas a voz do Moçambique daquele momento e isso é notável porque há vários factores circunstanciais que se juntam para que ele pudesse ser a expressão, numa só pessoa, partindo dessa grande diversidade que o país tem. Moçambique tem uma combinação de culturas, de raças diferentes. Ele tinha um pai algarvio e uma uma mãe que é ronga, do sul. Ele vivia num bairro que ficava numa espécie de fronteira entre a zona negra e branca da cidade. Há uma combinação de coisas que faz com que ele pudesse, pela sua própria vivência, ser esta amálgama de culturas, que conseguiu trazer para a sua poesia.

Craveirinha cria um universo irónico para falar das coisas mais duras.

A poesia dele está cheia de coisas que são muito, muito nossas. Por exemplo a ironia que ele usa, mesmo nos momentos mais trágicos. Ele está a falar do amigo que foi assassinado e diz "no dia tal, o fulano foi barbeado". Mataram o amigo dele e ele usa o termo barbear. Quando ele fala da prisão de Nelson Mandela ele diz "no dia em que o meu amigo Nelson Mandela foi viver para Robben Island". Este país teve e tem uma existência muito dura com guerras, com a miséria, com as doenças. Basta ver os nomes que se dão, em Maputo, aos transportes. Tchovae são essas carroças de extracção humana e quer dizer "empurra que vai pegar", como se tivesse um motor. As carrinhas de caixa aberta, que são um insulto à dignidade humana, porque estão ali pessoas transportadas como gado, mas as pessoas chamaram a esse transporte "my love" - porque as pessoas vão agarradas umas às outras.

Foi jornalista, docente. É biólogo e é sobretudo conhecido por escritor, traduzido em 30 línguas. É um impulsionador da literatura moçambicana e da língua portuguesa. Num dos seus contos descreve a diversidade da língua portuguesa que pode ser cantada, que pode ser dançada..

A língua portuguesa tem esta grande habilidade que é de poder deixar de ser portuguesa. Esta é a maior virtude desta língua. Não por ser um língua mais do que qualquer outra, mas esta língua, pela sua história e pelos seus lugares diversos em que teve de existir, teve de casar ou namorar com outras. Por uma certa atitude que não é esta coisa da luso tropicalidade do Gilberto Freire, mas enquanto os ingleses defendiam mundos completamente separados, o apartheid vem daí ou a ideia da abominação do mulato, mo mestiço, o mesmo não existia nos territórios que Portugal procurava administrar. Não sei se chegou a administrar tanto assim, mas tinha essa intenção. Era uma colonização, ela própria frágil. Portugal não tinha essa capacidade, tinha territórios imensos como o Brasil, como os países africanos e havia uma condição minoritária que obrigava a aceitar que o outro existisse, e existisse na condição de poder ser um parceiro. A língua beneficiou dessa fragilidade.

Na sua obra percorre a história do país e acompanha a evolução de Moçambique através de uma narrativa que lhe é muito própria. Um país com fragilidades, cujas populações viveram conflitos de libertação, guerras com países vizinhos, uma guerra de 16 anos e um reacender de um conflito no norte do país. A literatura pode ser um veículo para trazer alguma acalmia no caminho da paz?

Acho que sim. Essa missão encontro-a na literatura. É preciso que as histórias diferentes deste país se possam sentar na mesma mesa e conversarem. O que aconteceu foi que aquilo que era a ideologia colonial anulou aquilo que eram as diferentes identidades. Quando se falava de identidades era no sentido exótico. No discurso pós independência, quando a Frente de Libertação de Moçambique assume o poder, ela substitui essa narrativa por uma outra. Como se houve um país feito de uma só coisa. A história para trás era uma coisa que se podia resumir simplesmente: ‘fomos vítimas, fomos colonizados, mas não havia a co-preocupação de encontrar as histórias diversas e nações diversas dentro deste espaço moçambicano, e isso transformou-se, muitas vezes, em conflitos internos severos.

Como em todos os lugares do mundo, este país teve a sua história e a história foi muito marcada por guerras e conflitos internos e isso nunca se apaga. Não é uma coisa que se faça pela via política ou administrativa. Algumas das razões de conflitos antigos separaram e antagonizaram diferentes regiões, povos e culturas do país e nunca foram encarados de frente, nunca se falou deste assunto.

A literatura pode fazer isso, pode ajudar porque temos medo. O grande medo deste país é que ele se parta, que ele se divida e por isso o assunto da unidade nacional é sagrado, não se fala, não se toca. Talvez o caminho para que alguma coisa se torne sagrada é sacralizar, no sentido de falar e tranquilizar. Os romances que estão a ser feitos em Moçambique têm oferecido esta ponte de falarmos uns com outros e partilhar histórias comuns. Não há um apontar de dedos quanto à culpa. A literatura não pretende isso, somos todos humanos e o país está a fazer-se assim com estas trocas.

Para preservar essa unidade de que fala é preciso que os actores se sentem à mesa para que sejam feitas essas trocas, estou a referir-me ao conflito no norte do país. Desconhecendo-se o rosto do adversário é difícil sentarem-se à mesma mesa.

Sim é difícil porque ao contrário do que acontecia durante a guerra civil com a Renamo, sabia-se quem estava do outro lado. Havia cabeças, rostos, gente visível. Neste caso, este governo aprendeu que é preciso negociar logo e não esperar que a guerra cresça. Samora tinha esta expressão ‘é preciso tratar do crocodilo enquanto ele está no ovo’, depois já é tarde. Eu acho que existe esse desejo de falar com alguém por parte do governo moçambicano. Eu próprio se quiser ajudar não sei identificar quem é esse alguém.

O que pode está a acontecer é que esta guerra seja um conjunto de várias guerras, de várias causas e haja aqui componentes que são identificáveis naquilo que é a manifestação dessa violência, mas não quem é que a provoca. Eu conheço muito bem esta região do norte porque trabalhei em Palma durante muitos anos, no início mais visível desta violência. Posso dizer-lhe que naquela altura já via aparecer os pequenos sinais de alguma coisa, que nunca imaginei que pudesse vir a ter esta intensidade.

Chegou mesmo a ser ameaçado no decorrer de uma reunião com o Bispo Lisboa, em Pemba.

O Bispo estava presente, mas a reunião foi numa mesquita a convite do chefe dessa mesquita. Era uma espécie de evento ecuménico e estava ali toda a gente. De repente vimos chegar uns jovens, vestidos de uma certa maneira, com estas calças cortadas ao meio, barbas compridas, que começaram a gritar em macua e não percebia o que era. Depois começaram a apedrejar a mesa e tivemos que fugir. A polícia desapareceu, quando precisávamos de protecção policial. No dia seguinte, a comunidade muçulmana veio pedir-nos desculpa, dizendo que esse incidente aconteceu, mas ninguém podia falar nele porque era uma coisa que não representava, e de facto não representa, a atitude dos muçulmanos em Pemba.

Contaram-nos que estavam a surgir jovens moçambicanos e jovens de fora, que os  moçambicanos tinham sido enviados para a Arábia Saudita e vinham com a ideia de que o tipo de islamismo que estava a ser praticado era uma traição e uma ofensa ao Corão. Já havia uma tendência de radicalizar, estamos a falar de 2004.

O escritor moçambicano, Mia Couto, foi galardoado com prémio de literatura José Craveirinha 2022.

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