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Vida em França

Em França, dois manifestantes em coma depois de uma das primeiras "guerras da água"

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No sábado 25 de Março em França houve confrontos extremamente intensos em Sainte-Soline, perto de Poitiers. Milhares de pessoas - cerca de 25.000 segundo os colectivos ambientais e cerca de 6.000 segundo o ministério da Administração Interna - vindas de todo o país, convergiram em Sainte-Soline para protestar contra um projecto de mega bacias, contestado pelas associações ambientais e por científicos do clima e hidrólogos.  

Milhares de manifestantes participaram no protesto, organizado pelo movimento ecologista Soulèvements de la Terre e pela Confederação Camponesa, contra a construcção dos reservatórios de água em Sainte-Soline. (25/03/2023)
Milhares de manifestantes participaram no protesto, organizado pelo movimento ecologista Soulèvements de la Terre e pela Confederação Camponesa, contra a construcção dos reservatórios de água em Sainte-Soline. (25/03/2023) REUTERS - YVES HERMAN
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Depois de uma primeira mobilização em Sainte-Soline, em Outubro de 2022, as autoridades decidiram desta vez não autorizar a manifestação que, ainda assim, aconteceu. 

O balanço dos confrontos é terrível. Mais de 200 feridos ligeiros, 40 feridos graves com mutilações nos olhos, nas mãos e nas pernas, dois manifestantes estão ainda actualmente em coma e do lado da polícia contam-se 47 feridos. 

Em causa, um muito contestado projecto de mega bacias. Este sistema é controverso porque as bacias, de uma dezena de hectares - equivalente a 250 piscinas olímpicas - serão enchidas com água bombeada nos lençóis freáticos, que já atingiram níveis de seca nunca antes vistos, devido ao aquecimento global. 

O projecto é contestado também porque a água bombeada nos subsolos, depois armazenada nas mega bacias, será destinada à agricultura intensiva, um modelo que muitos afirmam ter os seus limites no contexto do aquecimento global. Apenas doze explorações agrícolas que empregam 20 agricultores vão beneficiar deste sistema em Sainte-Soline, o que levanta a questão da partilha de recursos naturais, cada vez mais limitados. 

Perguntámos a Carmen bessa Gomes, professora de ecologia na Agro Paris Tech, por que razão considera que estas mega bacias não são uma solução viável de adaptação ao aquecimento global. 

"Estamos face a um problema de alterações climáticas e à alteração da frequência dos períodos de seca. A ideia subjacente a este tipo de estrutura [as mega bacias] é a de que, nos períodos de chuva, em que os lençóis freáticos podem recuperar a água para ser armazenada em paralelo, noutras estructuras e, de certa forma isso aumentaria o accesso à água. 

Mas, na realidade, a chuva não é suficiente para encher os lençóis freáticos e portanto o único efeito que isto tem é entrar em competição com a necessidade de recuperar a água. E essa água que vai ser armazenada à superfície, uma parte vai ser perdida por evapotranspiração.

O inverno em França foi particularmente seco com um recorde de 32 dias sem chuva, o que não permitiu reconstituir os lençóis freáticos, 80% abaixo do normal a 1 de Março.

A professora de ecologia relembra que "a água que está nos lençóis freáticos é um bem comum" e que este projecto trata de "privatizar" a água: 

"O número de agricultores que vai ter accesso a este armazenamento da água é muito limitado. Estão a privatizar um recurso que se torna raro e a impedir que os lençóis freáticos recuperem." 

Outra questão que se levanta é a de saber quem irá beneficiar deste projecto. Fala-se então numa repartição injusta de um recurso natural e comum a todos. Para Carmen bessa Gomes, grande parte da revolta local é ligada a esse aspecto. E a professora de ecologia aponta ainda para outro factor de controvérsia:

"Os estudos que foram feitos, na altura, para a aprovação do projecto não integram de todos os cenários e os dados das alterações climáticas. São estudos que datam de 2011 e hoje em dia é claramente inconcebível fazer planos sobre a gestão dos recursos naturais sem integrar as alterações climáticas, que sabemos que vão fortemente aumentar a dinâmica desses recursos."

Um projecto contestado pela justiça 

Quase todos os recursos jurídicos foram utilizados pelas associações ambientais, antes de ser organizada esta manifestação, que acontece depois de uma primeira mobilização de activistas em Outubro 2022 no mesmo local. Desta vez, a prefeitura não autorizou a manifestação. 

"A justiça sempre sempre deu razão aos activistas. O projecto foi autorizado graças a uma derrogação da prefeitura. O projecto não corresponde aos critérios ambientais, mas a prefeitura considerou, dada a importância do projecto ao nível local, que se justificava ele ser aprovado. As associações de defesa do ambiente apresentaram queixa nos tribunais e isto arrasta-se desde 2011 com processos sucessivos, apelos, e a cada etapa as associações ambientais têm ganho sempre os processos. Até que se esgotaram todas as vias possíveis. Penso que isso é também uma fonte de tensão porque, apesar destas associações ambientais terem tido razão perante a justiça, nada mudou no terreno e os projectos continuaram", recorda Carmen Bessa Gomes. 

O modelo agrícola face aos seus limites 

Outras alternativas existem, mas o mais urgente deveria ser "repensar o modelo da agricultura intensiva":

"Todo o modelo agrícola vai ter que ser repensado em função das alterações climáticas. A temperatura e a disponibilidade da água não são as mesmas e portanto não vamos poder continuar a produzir como se produzia no passado. O que se discute é sair do modelo actual da agricultura intensiva para passar para modos de produção mais complexos, nomeadamente a policultura."

Segundo Carmen Bessa Gomes, será também necessário produzir "outros tipos de produtos":

"Produtos que sejam mais adaptados aos constrangimentos climáticos. Na região de Sainte-Soline já reduziram a produção do milho. Actualmente a produção de milho foi reduzida a um terço do que era no passado, simplesmente porque a água já não existe e que é uma cultura que exige muita rega. Hoje em dia já não existem as condições para a assegurar."

Estaremos perante uma das primeiras "guerras da água" em França? "Seguramente isto cai na categoria de uma guerra da água", responde sem hesitar a professora de ecologia. "Tudo vai depender de como forem geridos estes conflictos, mas seguramente as tensões sobre a gestão dos recursos vão aumentar." 

Procurámos também saber como é que estes debates são encarados na Agro Paris Tech, uma escola de agroeconomia e das indústrias agrícolas, onde Carmen Bessa Gomes é docente.

"Os debates são imensos. Neste momento estamos a fazer reuniões internas para repensar aquilo que ensinamos aos alunos. Procuramos dar-lhes os elementos para que eles possam ser motores da transformação. Mas é uma transformação que não é só da agricultura, mas de toda a sociedade."

A questão dos modelos agrícolas é transversal e não se limita apenas ao domínio da ciência: 

"Enquanto professora de ecologia numa escola de agronomia, tenho frequentemente discussões com os alunos e é evidente que eles se sentem muito frustrados, com um sentimento de impotência. Recebem toda a informação que indica que é preciso agir e que é urgente agir, mas estão face a uma sociedade que não parece ser capaz de reagir à urgência da situação."

Com estas mega bacias, Cristina Semblano, ex-deputada municipal na região de Paris denuncia o "agro-business, um sistema intensamente consumidor de água": 

"Estas retenções de água são defendidas pelo governo mas a água é um bem raro da humanidade. A água não pode ser capturada e privatizada e desviada para os interesses do agro-business. E é isso que contestam os militantes, para além do facto de que a retenção da água pode vir a criar problemas, nomeadamente a água estagnante pode vir a dar origem ao surgimento de bactérias. Neste caso específico a água é sobretudo destinada à irrigação do milho, uma cultura exótica que necessita muita água." 

O milho em questão sereve principalmente de alimento para o gado e não é destinado à alimentação humana. "O gado que, por sua vez, é altamente consumidor de água", recorda Cristina Semblano, adiantando ainda que "o que é necessário é haver mudanças no sistema de produção para reduzir as necessidades de irrigação e encontrar um melhor equilíbrio com o clima tal como ele está a evoluir." 

Manifestação duramente reprimida

Muitos testemunhos e jornalistas falam em "cenas de guerra" nesta mobilização pela causa ambiental. Cristina Semblano considera que será cada vez mais difícil ser activista, em França. 

"O que se passou em Sainte-Soline é o recrudescimento daquilo que se tem passado em França. Ou seja, o Estado Francês cada vez mais assimila os militantes e manifestantes a delinquentes e cada vez os transforma mais em inimgos. Há uma deriva autoritária do governo francês. A própria proibição da manifestação em Sainte-Soline... As manifestações podem não ser autorizadas, mas não ilegais. Estamos perante algo de mais grave ainda. Foi revelado pelo jornal Le Monde, com base em gravações sonoras, que a assistência a feridos graves foi impedida pelas forças de segurança, nomeadamente a uma pessoa que se encontrava em perigo de vida e que ainda está em coma. A polícia proibiu os socorros de avançar e a pessoa que ainda está em coma esteve três horas sem receber assistência."

As famílias dos dois manifestantes em coma anunciaram que vão apresentar queixa por "tentativa de homicídio e entrave aos socorros". Para além disso, há ainda outra polémica quanto ao material utilizado para reprimir a manifestação.

As forças de segurança recorreram a granadas lacrimogéneas do tipo GM2L e lançadores de balas de defesa, armas consideradas como "materiais de guerra" pelo Código de Segurança Interna.

Gerald Darmanin, ministro da Administração Interna começou por negar os factos, antes de reconhecer, em plena polémica, que estas armas foram utilizadas em Sainte-Soline, de forma ilegal.

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