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Artes

Filme lembra “invisíveis” que lutaram contra a guerra colonial

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O filme “As Mãos Invisíveis” conta algumas das histórias de portugueses que, a partir de Paris, ajudaram desertores e refractários da guerra colonial. O documentário parte de uma casa que foi um dos locais de acolhimento e de resistência à ditadura de Salazar e ao colonialismo. O realizador Hugo dos Santos quis tirar da clandestinidade a memória dessa resistência invisível e falou com a RFI sobre o filme que acaba de passar num festival de documentário português.

Imagem de "As Mãos Invisíveis" de Hugo dos Santos.
Imagem de "As Mãos Invisíveis" de Hugo dos Santos. © Hugo dos Santos
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RFI: Porque é que o filme se chama “As Mãos Invisíveis”?

Hugo dos Santos, Realizador de “As Mãos Invisíveis”: O filme chama-se “Les Mains Invisibles” porque, de uma certa forma, conta a história de um grupo de pessoas invisíveis que eram emigrantes clandestinos, desertores, dentro de uma emigração que em França é chamada de invisível. Por isso, falei de invisibilidade e o facto de remeter para as mãos é remeter para as pessoas que vão ter uma acção: não só trabalhar, mas também pode ser o punho levantado ou pode ser simplesmente muitas pequenas acções invisíveis que remetem para acções que têm impacto na história.

No filme ouvimos que 200.000 jovens portugueses fugiram para não irem à guerra colonial/das independências. A maioria foi para França, mas só uma parte era politizada e o filme centra-se mais nessas pessoas. Porque é que quis dar rostos a estas pessoas e porque é que fala, às vezes, de memória clandestina?

São muitas perguntas! Para já, eu achei que era uma história bonita simplesmente. Eu acho que era uma bela coisa de contar uma história pouco conhecida, que é um exemplo, porque houve muitas histórias em volta da emigração portuguesa e da recusa da guerra colonial. Como eu conhecia algumas personagens, achei que esta história valia a pena ser contada.

É também uma forma de reparar alguma injustiça histórica, digamos assim?

Sim e não. Eu acho que pensar a emigração portuguesa ou representar em filmes documentários ou ficções a emigração portuguesa sem falar da recusa da guerra colonial é incompleto porque há pessoas que recusaram a guerra colonial de forma estruturada politicamente - quer dizer num partido, por exemplo, já tinham decidido e sabiam o que fazer - e há pessoas que simplesmente foram-se embora porque não queriam ir à guerra, não queriam matar outras pessoas. Eu acho que isto vai muito além de um grupo mais ou menos politizado que aparece no filme. Eu também não faço esta diferença entre emigração política e emigração não política porque eu acho que a maior parte das pessoas que emigraram tinham uma percepção política das coisas. Ser uma percepção política não quer dizer uma percepção partidária, mas simplesmente pensar: “Neste país não dá, temos que sair, esta guerra não dá, temos que sair”.

E recusaram, justamente, a guerra…

Exactamente. Não são só os grupos politizados. Eu quis falar deste grupo porque era também um grupo que estava na acção. No filme, não me interessou falar verdadeiramente do partido político ou do micropartido ou dos grupos políticos que estavam mesmo envolvidos. Para mim, interessava simplesmente um grupo de pessoas, um grupo de jovens portugueses e franceses que pensaram que era injusto fazer uma guerra em Angola, Moçambique, Guiné, achavam que era uma coisa horrorosa, que não queriam matar africanos e pensaram simplesmente desertar e depois apoiar as pessoas que desertavam. Eu acho que partiu de uma sensação muito sincera, muito natural, muito além de uma estruturação política. Para dizer a verdade, mesmo uma parte da estruturação, da ideologia política daquela época, uma parte, eu acho que hoje em dia pode-se dizer que era justa e outra parte não tinha muito sentido, por isso, também não quis pôr o debate sobre o sexo dos anjos politicamente porque não fazia sentido.

O meu filme fala de um grupo, mas não só, fala das mãos invisíveis que são todas aquelas pessoas que partiram daquele país para não fazerem a guerra ou que tiveram que partir para a guerra porque também se vê no filme imagens de pessoas que foram e, de uma certa forma, é outro lado da mesma moeda.

E houve quem fosse e desertasse, inclusivamente com armas, como se apelava a partir de Paris, nomeadamente… Mas vamos agora ver alguns dos principais rostos do filme, por exemplo, um testemunho marcante é o de Vasco Martins. Quer falar-nos da importância dele nesta rede de mãos invisíveis que acabou por funcionar a partir de uma casa parisiense?

O Vasco é, antes de tudo, um amigo, não é da mesma idade, mas é um amigo que eu conheci na Associação Memória Viva. Foi pouco a pouco que eu comecei a conhecer a história dele porque era uma pessoa discreta, pelo menos no início do processo memorial, e foi pouco a pouco que comecei a entender a importância das acções que tinha tido o Vasco, nomeadamente, na criação de redes de apoio aos desertores que passaram pela casa dele e como uma pessoa de contacto. O Vasco era e é uma pessoa que faz. Quer dizer, há uma coisa para fazer, estamos à espera que se faça, estamos a decidir, mas já está feito, o Vasco já fez. Há uma personagem que não se vê no filme que me disse que o Vasco é um activista “low profile”, quer dizer, que é uma pessoa que não dá nas vistas e, mesmo assim, é aquele que faz. Politicamente, de uma forma geral, além desta história de emigração e da recusa da guerra colonial, é uma coisa que tem importância para mim porque eu acho que o que tem impacto politicamente não são só as pessoas que gritam, não são só as pessoas que são estruturadas num partido, são as pessoas que fazem e que, às vezes, são invisíveis.

As tais “mãos invisíveis”.

Exactamente e no filme vê-se o Vasco Martins, mas também se vê a Thérèse Martinet, do lado francês, que é a pessoa que estruturou, como ele, esta rede de apoio aos desertores, uma rede informal. Hoje em dia, se não fosse o filme, seria uma pessoa completamente desconhecida. Ela teve uma importância essencial nesta história de forma global.

Era a proprietária da casa…

Era a proprietária da casa onde o Vasco criou a rede, mas era também a pessoa que vivia lá e que aceitou viver com um grupo de desertores e era uma pessoa que teve uma vida colectiva com estas pessoas, como também foi uma pessoa que foi além de acolher. Há uma parte das coisas que nem sei porque ela infelizmente começou a perder a memória depois de uma doença, mas ela fez idas e voltas para Portugal, meteu-se em perigo, também ajudava muito os portugueses a aprenderem francês, a encontrarem trabalhos. Mãos invisíveis é do lado português como do lado francês.

Ela chegou inclusivamente a levar material para Portugal. É o que se diz no filme. O filme também fala um pouco dos bastidores da luta desta rede de resistentes, das armas que foram encontradas, dos apelos à deserção com armas. A casa foi um epicentro dessa luta  invisível?

Não sei se o lado da luta armada, que é uma coisa que existiu nos anos 60, 70, um pouco nos anos 80, será propriamente uma acção invisível, de uma certa forma era quase uma acção de propaganda porque estas armas eram pouco usadas obviamente. Há um paradoxo do qual falo no filme: este grupo, que era profundamente pacifista, contra a guerra, contra todas as guerras, achava que naquele momento da ditadura, a única forma lógica de desertar era desertar com armas. Mas desertar com armas, o que é que queria dizer? Queria dizer que supostamente o desertor devia ir com armas ou enterrá-las num sítio qualquer para que no dia que fosse necessário, quando as massas estivessem organizadas ou uma coisa dessas, se pudessem usar aquelas armas. Mas a ideia não era sustentar uma luta armada frontal contra o regime, não era nada disso. Era simplesmente que dentro de um regime tão repressivo, acharam que desertar com armas era o caminho mais secreto, mas não quer dizer que usavam armas, que estavam na luta armada.

O filme também mostra que a música, nomeadamente o Tino Flores, e o teatro foram fundamentais nesta luta contra a guerra. Quer contar-nos como?

Eu acho que os anos 60, 70, em Portugal e também em França, havia uma percepção que as artes – cinema, música, teatro - deviam ter um empenho político. Obviamente que na luta contra a ditadura de Salazar, contra o colonialismo, estas artes foram usadas. O que não se sabe tanto é que os emigrantes portugueses em França produziram muitíssimas coisas, organizaram muitíssimos concertos, grupos de teatro, peças que foram apresentadas em associações, conversas, palestras e festas simplesmente. É isso que eu mostro um pouco no filme que é uma coisa que não se sabe tanto. Sabe-se que houve o Zeca Afonso, o Sérgio Godinho ou o Tino Flores, que é um pouco menos conhecido, mas sabe-se pouco que aquilo maturou na emigração porque tanto o Sérgio Godinho como o José Mário Branco, como o Tino Flores, estiveram na emigração em França e é ali nestas conversas de cafés, nestas organizações políticas, nas associações também, que conseguiram criar uma nova onda musical. Tanto que o Zeca Afonso grava o “Cantigas do Maio” em França - não é a única razão, mas é uma das razões. Há, em França, uma onda de artistas políticos. No filme vê-se o Tino Flores que é um cantor e também se vê o Hélder Costa que escreve peças de teatro, escrevia e ainda escreve, e que organizou muitos grupos de teatro nas associações de emigrantes.

O filme recorre a imagens de arquivo, como documentários nos bairros de lata. Como é que foi este trabalho para chegar a imagens que são tão pouco conhecidas do público, excepto as fotografias…

Não sei se há muito poucas imagens. O problema é saber olhar para as imagens que temos. Por exemplo, nos arquivos do INA, da televisão francesa, existem muitíssimas imagens da emigração portuguesa dos bairros de lata e outras coisas. Às vezes, o problema é saber o que estamos a ver, pensamos que estamos a ver um bairro de lata e estamos a ver um filme militante, ou estamos a ver um processo de expulsão do bairro de lata. Não entendemos, às vezes, o que estamos a ver e eu acho que no filme tento sempre dar o contexto das imagens porque eu acho que é ali que as imagens se tornam autónomas, quase como personagens, e também se tornam mais políticas.

Ali estás a ver, por exemplo, quer o olhar de um militante francês, quer  o olhar de um militante português, quer o olhar da televisão francesa ou holandesa e isto é bastante importante para saber o que estamos a ver. No filme, eu não quis usar imagens para ilustrar. Nunca estou a ilustrar. Sempre dou a importância completa às imagens.

Relativamente à pesquisa, foi uma pesquisa extensa em toda a Europa à procura das personagens, a ver se conseguia encontrar tal ou tal personagem em tal ou tal filme. Para fazer este filme não havia uma matéria extensa no início porque são memórias, não havia uma matéria extensa: a casa foi destruída nos anos 90, já não existe; vários personagens também perderam um pouco a memória ou algumas lembranças porque foi há muito tempo e é também uma memória traumática. Eu tive que reflectir na forma de contar aquela história e, para mim, a forma certa de contar aquela história não era contar a grande história ou encher todos os buracos. Era deixar aparecer os espaços vazios. Com as imagens de arquivo ou com algumas conversas com as personagens ou também com a minha voz, com o meu raciocínio, consigo dar mais ou menos o fio da história para se poder entender o que se passou. Mas não se sabe tudo porque eu acho que é também uma forma de encarar a história que é específica. Quando se faz um documentário histórico, a ideia de não é contar exactamente como é que foi, a ideia é deixar entender às pessoas como talvez foi. Então, uso os arquivos desta forma, os arquivos permitem entender como talvez foi. Não estão ali para dar uma prova.

 

O filme “Les Mains Invisibles” [“As Mãos Invisíveis”] estreou no DOClisboa em Outubro do ano passado, esteve, a 1 de Agosto, no Festival Internacional do Documentário de Melgaço, em Portugal e chega a França no próximo ano.

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