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Artes

Português “revolucionário” e “perfeitamente desconhecido” é herói de BD francesa

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A nova banda desenhada do francês Mathieu Sapin, “Edgar - De Lisbonne à Paris, dans les pas de mon beau-père révolutionnaire”, conta a história de um português que esteve na resistência e que foi exilado político em França durante a ditadura de Salazar. O relato ecoa com o de muitos portugueses que foram para França “a salto” e que ficaram no anonimato, sendo também uma reflexão sobre a memória e a transmissão.

"Edgar", de Mathieu Sapin.
"Edgar", de Mathieu Sapin. © Mathieu Sapin
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O que é um herói? Quem nunca quis ser um herói e deixar um rasto na história? A banda desenhada “Edgar - De Lisbonne à Paris, dans les pas de mon beau-père révolutionnaire”, do francês Mathieu Sapin, é o retrato de um português “perfeitamente desconhecido” cuja vida pacata de hoje esconde um passado palpitante que ele tem sede de contar. Mathieu Sapin ouviu-o e esboçou essas memórias numa BD em que veste o papel de jornalista e vai investigar sobretudo pelas ruas de Lisboa. A dada altura, ele é acompanhado simbolicamente pela canção “Heroes” de David Bowie.

 “Gosto muito desta música de David Bowie porque toda a gente quer uma vida sonhada, uma vida heróica. Hoje, o Edgar está em casa dele, totalmente anónimo, a trabalhar no quintal... E eu acho que ele tem – como muita gente – vontade de ter uma vida mais rica, palpitante, heróica que aquela que ele parece ter. É algo que nos toca a todos. Penso que ele conta comigo para, através desta banda desenhada, lhe fazer alguma justiça”, conta Mathieu Sapin que recebeu a RFI no seu atelier junto ao Canal Saint-Martin, em Paris.

No livro, “Edgar” conta a Mathieu a sua vida de aventuras, desde a resistência à ditadura de Salazar, passando pela deserção à tropa e à fuga para França onde continuou a lutar na rede de opositores ao Estado Novo. O percurso é comum a centenas de exilados políticos portugueses daquela altura, a diferença é que Edgar é o sogro de Mathieu Sapin que, há anos, queria desenhar Lisboa e Portugal. Depois de ter criado BDs com figuras francesas conhecidas como, por exemplo, Gérard Depardieu, François Hollande ou Emmanuel Macron, desta vez o desenhador quis dar voz a quem não costuma ter voz.

 

Quis mudar. Desta vez quis falar de alguém desconhecido. Há mil histórias interessantes de pessoas desconhecidas e como ouvi tantas vezes as histórias do meu sogro, pensei que era uma boa ideia. Também tinha muita vontade de fazer uma BD sobre Portugal porque há 20 anos que lá vou regularmente e estava à procura de um tema sobre Portugal. Foi o Edgar que me disse: “Deverias fazer uma banda desenhada sobre mim! Vais ganhar muito dinheiro!”. Ele está convencido que a sua história é apaixonante. E é.

Quando ele me fez esta proposta, em 2020, depois da pandemia, decidi contar a sua história e comecei a ouvir e a tomar notas. Depois, fomos aos locais, por exemplo, às ruas de Lisboa ver os sítios onde ele vivia quando estava na resistência e inspirar-me dos locais para imaginar as situações que ele contava.

 

Mathieu Sapin deixou-se levar pelas histórias de “Edgar”, algumas mais verosímeis que outras... Tanto é que o narrador apresenta Edgar como um “Dom Quixote moderno”...

 

O Dom Quixote é cativante porque ele é muito sincero. Ele acredita mesmo nas histórias que conta, está pronto para lutar por elas, mesmo se muita gente lhe diz que são falsas. Ele faz-me pensar no Dom Quixote porque ele tem esta convicção total, o que o pode levar, por vezes, a interpretar a realidade. Isso interessava-me porque um dos temas desta banda desenhada é a nossa relação com a verdade. Como e quem detém a verdade? Qual é o valor dessa verdade? As histórias dele são a verdade dele, ele não me quer enganar. 

A dada altura, ele fala-me da expressão portuguesa “Com a verdade me enganas”. E era uma boa indicação para esta história porque é uma história totalmente subjectiva. Ele conta-me a versão dele da ditadura, da Revolução, mesmo que haja mil outras versões. Como eu também me represento nesta banda desenhada e os leitores vêem-me a falar com o meu sogro, compreende-se que é algo totalmente subjectivo.

Mas levanta muitas questões. Encontro leitores que ficam muito curiosos. Além disso, também desoriento o leitor porque, às vezes, temos impressão que o Edgar conta coisas inverosímeis, mas depois temos elementos de verdade, como fotos, filmes...Também fui aos arquivos da Torre do Tombo e pude confirmar as histórias de Edgar. Por isso, é normal que o leitor se questione se é verdade ou não, mas eu sei que ele é sincero no que conta.

 

“Edgar” está, por exemplo, convencido que é descendente do Duque de Wellington e que é um dos arquitectos da Revolução dos Cravos. Embora ele avise Mathieu que na sua terra se diz “Com a verdade me enganas”, as páginas vão passando com muito humor e, a dada altura, não se sabe quem engana quem.

 

Ele está convencido que é um descendente do Duque de Wellington porque Wellington foi o comandante da frota inglesa que veio ajudar o exército português a resistir ao invasor napoleónico. Historicamente houve esta batalha, com as linhas de Wellington que se situam a norte de Lisboa, perto de Torres Vedras.

Segundo o Edgar, o Wellington e a sua frota estavam perto da aldeia de onde ele é. E ele encontrou textos que o levam a pensar que o Wellington teve uma relação com a tetra-tetra-tetra-tetra avó. Além disso, fisicamente ele tem algo do Norte, com os olhos claros e a pele mais clara. Para ele, é evidente que ele é descendente de Wellington. Claro que não o posso provar, mas gosto desta história e mostro-o a contar esta história. Mas não digo que é a verdade, digo que é a verdade dele.

 

Além do retrato de “Edgar”, o autor desenha Lisboa, a sua gentrificação, a chegada em massa do turismo e a construção desenfreada num país que ficou na moda nos últimos anos. Esta é também uma história que invoca a facilidade de se falar em revolução quando se vive em democracia, alertando que tudo pode mudar de um momento para o outro...

 

Vivemos numa altura em que há ameaças à democracia na Europa. Para muitos, a ditadura parece longínqua e parece que a democracia não corre riscos, mas temos de estar atentos. 

Também há pontes a fazer em relação ao ser-se revolucionário porque, pelo menos em França, há muita gente que me diz que é revolucionária. Mas não é a mesma coisa dizer isto quando estamos em democracia em que, mesmo que haja coisas que não estão bem, podemos falar, há liberdade de imprensa, podemos exprimir opiniões. É fácil dizer: “Sou revolucionário”. É muito mais difícil quando, como o Edgar, se vivia em ditadura, em que corremos riscos em ser revolucionários. Quis mostrar isto também.

 

A versão francesa de “Edgar - De Lisbonne à Paris, dans les pas de mon beau-père révolutionnaire” foi publicada a 6 de Outubro em França e a versão portuguesa vai sair em Abril, no ano em que se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos. Mathieu Sapin também vai estar com o livro no Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora em 2024.

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