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Presidenciais na Argentina: "muitas pessoas estão a votar por temor a um futuro desconhecido"

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Na Argentina, milhões de eleitores foram ontem chamados às urnas para eleger o seu novo Presidente, este escrutínio tendo sido marcado por uma participação de mais de 74%, o que é relativamente baixo quando comparado com a taxa de participação de eleições anteriores.

O ministro da economia Sergio Massa (à esquerda) e o líder de extrema-direita Javier Milei (à direita) vão enfrentar-se na segunda volta das presidenciais argentinas no dia 19 de Novembro.
O ministro da economia Sergio Massa (à esquerda) e o líder de extrema-direita Javier Milei (à direita) vão enfrentar-se na segunda volta das presidenciais argentinas no dia 19 de Novembro. © Reuters
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Contra todas as expectativas dos observadores políticos do país, o actual ministro da economia, o centrista Sergio Massa chegou à frente com um pouco mais de 36% dos votos face ao seu mais directo adversário, o candidato de extrema-direita Javier Milei, com um pouco mais de 30% dos votos. Eles estarão frente-a-frente na segunda volta no dia 19 de Novembro, mas até lá, será necessário convencer os eleitores que não votaram neles na segunda volta.

Neste cenário, a conservadora Patricia Bullrich, candidata que chegou em terceira posição com cerca de 24% dos votos, poderá ter um papel a desempenhar.

Pela tonalidade dos seus discursos de campanha e apesar de até agora não ter dado nenhuma instrução de voto, Bullrich parece estar decidida a erradicar o que se chama de 'Kirchnerismo', ou seja o sistema do qual faz parte Sergio Massa, o candidato mais votado até agora.

Dulio Moreno, jornalista em Buenos Aires analisou connosco os resultados da primeira volta das presidenciais na Argentina.

RFI: O que traduz o resultado destas eleições?

Dulio Moreno: Eu acho que este resultado traduz diferentes coisas. Por um lado, se estamos a pensar na campanha do candidato 'oficialista' (Sergio Massa), estamos a pensar no medo de uma grande quantidade da população, se calhar dos seus eleitores, perante a perda de direitos e garantias básicas que são oferecidos aqui na Argentina e contra as quais Milei se expressou durante a campanha, por exemplo a saúde pública, a educação pública e muitos direitos que são oferecidos à população, que muitos consideram como direitos adquiridos e têm medo de perder. Massa, o candidato 'oficialista' reforçou muito esta ideia. No seu último discurso ontem à noite, ele falou principalmente de uma educação gratuita, de uma saúde pública para todas as pessoas. Isto pode ser o reflexo de uma campanha de medo. Milei, por outro lado, sozinho não pode conseguir a quantidade de votos que precisa para vencer o 'oficialismo'. Então, acho que Milei vai ter que moderar o seu discurso para poder conseguir os votos da terceira força política e, com a soma desses votos -os seus 30% mais os 24% da terceira candidata (mais votada), conseguir uma maioria de votos que possa vencer o 'oficialismo'. No seu discurso de ontem à noite, Javier Milei, pronunciou seis ou sete vezes a palavra "juntos". "Juntos" por isto, "juntos" pelo outro, "Juntos" por qualquer coisa. Acha-se que é uma clara alusão ao nome da outra força política de oposição que se chama "juntos pela mudança" (de Patricia Bullrich). A utilização daquela palavra não foi um acaso.

RFI: Lá está, a terceira candidata mais votada foi a conservadora Patricia Bullrich, com cerca de 24% dos votos. Até que ponto é que não se dará um cenário um pouco como aquele que houve no Brasil quando Bolsonaro chegou ao poder, em que os conservadores tradicionais não deram propriamente instrução de voto -como ela está a fazer- e isto acabou por favorecer o discurso extremo?

Dulio Moreno: Eu acho que sim, porque Javier Milei chegou à conclusão de que as fracturas da oposição e as fracturas da própria direita acabaram por favorecer o candidato do 'oficialismo' que obteve uma maioria de votos, mas uma maioria que não é suficiente para poder ganhar na primeira volta. Então ele está a apelar à união. Ele moderou o discurso, ele falou de fazer uma 'ponte', acabar com certas brigas e começar a falar novamente para fazer um trabalho de união. Eu acho que nestes dias pode haver certas novidades. Ainda não há declarações de Patricia Bullrich em relação a isso, mas ela, no seu discurso de campanha, falou de 'uma luta contra o populismo' e, se calhar, ela está a tentar apelar aos seus eleitores para irem juntos contra o 'oficialismo'. No princípio, parte do seu discurso, foi "vou acabar com o kirchnerismo". É provável que daqui a alguns dias exista algum tipo de reunião, de encontro, ou aproximação entre Javier Milei e Patricia Bullrich para levar os eleitores de Patricia ao Javier.

RFI: Acha que há hipótese de Milei vencer a segunda volta?

Dulio Moreno: Sim, claro, totalmente. Há condições. Ele vai ter que fazer acordos e vai ter que moderar o seu discurso porque desde as eleições internas abertas que tivemos há um mês, Milei endureceu e ele perdeu uma certa percentagem de votos que foram para Patricia Bullrich ou para outras forças políticas e Patricia Bullrich nem ganhou tantos votos. Então, ele precisa moderar e fazer acordos para poder ganhar. Também é preciso mencionar certas coisas que Massa pode instrumentalizar, como ministro da economia, certas medidas que ele tomou e que -acho- ajudaram a que as pessoas o escolhessem nesta eleição. Adoptou muitas medidas económicas que se calhar não são medidas muito boas fundamentalmente se pensarmos no futuro, porque depois tudo o que é oferecido actualmente em termos de políticas públicas, tem de ser pago em algum momento. Se não é pago agora, as contas vão ter de ser pagas no futuro.

RFI: O país vive com uma inflação record de 138% no espaço de um ano e também tem uma dívida colossal para pagar ao Fundo Monetário Internacional. Apesar disso, Massa diz que o pior da crise está a chegar ao fim e que as coisas vão melhorar. Há algum indicador que efectivamente confirma isso?

Dulio Moreno: A verdade é que certamente não há. É difícil pensar como é que uma pessoa que não pode mostrar bons resultados na sua gestão como dirigente da economia, pode seduzir eleitores que pensam que vai oferecer como Presidente uma coisa distinta do que está a oferecer como ministro da economia. Isto é o que os analistas políticos aqui não podem compreender, mas volto a reforçar esta ideia: acontece que muitas pessoas estão a votar por temor a um futuro desconhecido. Para eles, pode ser pior um futuro desconhecido do que o terrível presente que estão a viver.

RFI: Entre as possibilidades encaradas em termos económicos, uma das portas de saída é, por exemplo, as reservas importantes que a Argentina tem em lítio e que ainda estão por explorar. Como é que está este dossier?

Dulio Moreno: Todos os candidatos dizem que isto pode ser uma fonte importante de riquezas. Mas acontece que o que é terrível, o que está verdadeiramente difícil e o que é mais importante é a questão do clima social. O actual governo tem acordos com os diferentes sectores sindicais que fazem com que apesar dos altos valores da inflação, apesar do nível extremo de pobreza, não existe nas ruas um clima social difícil.

RFI: E por exemplo a alavanca de uma negociação com o FMI é possível?

Dulio Moreno: Pois. Isto é um dos pontos que utiliza o 'oficialismo' para apresentar aos seus eleitores de que já está a negociar com o FMI e estão a falar de um acordo aos quais o 'oficialismo' coloca certos limites, como por exemplo não desvalorizar a moeda, levar a actualização dos serviços com uma certa calma para que a actualização dos preços não tenha impacto nas pessoas. Então, eles utilizam aquela negociação como sendo uma das suas "capacidades". Por isso é que acho que há uma agenda do medo, com o argumento de que "nós no poder, podemos dar continuidade àquilo que estamos a fazer e se ganhar alguém da oposição, como por exemplo Javier Milei, nós não podemos garantir que aquela tranquilidade que estamos a ter nesta negociação com o FMI possa continuar com a gestão de outra força política".

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