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"História da reparação [do período colonial] é um debate absolutamente inadiável"

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O Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, declarou que Portugal deve liderar o processo de assumir e reparar as consequências do período do colonialismo e sugeriu como exemplo o perdão de dívidas, cooperação e financiamento. "A história da reparação do período colonial é inadiável", acredita António Pinto Ribeiro, programador cultural e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

O artista Kiluanji Kia Henda venceu o concurso para a construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas com o projecto Plantação — Prosperidade e Pesadelo, a instalar no Campo das Cebolas.
O artista Kiluanji Kia Henda venceu o concurso para a construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas com o projecto Plantação — Prosperidade e Pesadelo, a instalar no Campo das Cebolas. © https://www.memorialescravatura.com
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RFI: Na semana passada, o presidente português defendeu que Portugal assume total responsabilidade pelos erros do passado e disse que esses crimes, incluindo massacres coloniais, tiveram custos e que há que pagá-los. Marcelo Rebelo de Sousa declarou que Portugal deve liderar o processo de assumir e reparar as consequências do período do colonialismo e sugeriu como exemplo o perdão de dívidas, cooperação e financiamento. De onde e por que motivo surgem estas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa?

António Pinto Ribeiro: Bom... a razão por que o senhor Presidente fez estas afirmações neste momento não sei dizer. Elas podem ter acontecido num formato, porventura, menos esperado. Podem ter sido feitas num contexto menos adequado. O que é facto é que as questões que o senhor Presidente põe são absolutamente pertinentes. Só não entendo... enfim entendo porque é que há um conjunto de comentadores e de pessoas que não querem que este tema tenha sido abordado. E isso tem a ver com a ausência do debate que tem acontecido nos últimos anos em Portugal, com uma relação completamente e difícil de entender, que tem a ver com a nossa relação com o passado colonial. O tema em si é absolutamente fulcral para quem quer adiar o tema é como, novamente se quisesse colocar numa situação do orgulhosamente sós. A questão tem neste momento um amplo debate em termos globais e tem inclusivamente já acções que estão a ser praticadas e actividades que estão a ser praticadas e situações que são decorrentes desse debate à escala à escala mundial.

Acho absolutamente necessário que esse debate se faça em Portugal. Acho necessário que se apetrechem as instituições mais directamente relacionadas com a questão de meios e recursos para que a investigação seja feita, para que os levantamentos necessários de tudo o que têm a ver com repatriamento de obras ou com questões que têm a ver com a reparação sejam de imediato postas a funcionar.

É um debate absolutamente inadiável. É uma questão de fundo da sociedade portuguesa, da sociedade europeia, da relação de Portugal com as suas antigas colónias e não só. Esta ideia de não querermos continuar ou sobretudo, não querermos que o debate se faça por parte de alguns, só tem a ver com aquilo que se designa como melancolia colonial, ou seja, a vontade de viver num tempo passado, de viver num tempo que não tem nenhum sentido, que foi ultrapassado. De alguma forma é como se essas pessoas não quisessem que a independência cultural se fizesse nesses países.

Em comunicado, o executivo português liderado por Luís Montenegro neste fim-de-semana, afirmou que "não esteve nem está em causa nenhum processo ou programa de acções específicas com esse propósito", em relação às declarações afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa. Portanto, o Governo português a demarcar se destas afirmações proferidas pelo Presidente da República. Portanto questões pertinentes como falava um debate inadiável, como dizia há instantes, mas que é um debate adiável para o executivo português?

Não é oportuno para o executivo português. Eu acho mal que tomem como tal, mas evidentemente que aqui há razões de cálculo e de tácticas políticas que, de facto têm muito pouco a ver com a questão histórica. Têm muito pouco a ver com a necessidade de estabelecer relações civilizacionais, relações de entendimento, relações de procura, de esclarecer o que foi o nosso colonialismo. E também tem necessariamente a ver também com aquilo que é ir na onda de algumas de muitas posições que vêm essencialmente de nostálgicos do passado relativamente à história colonial. Desse ponto de vista, acho mal que o governo queira adiar esse debate.

O chefe de Estado moçambicano, Filipe Nyusi, defendeu que "tais actos são indesculpáveis". Ainda é possível abrir, a seu ver, discussões sobre a responsabilidade e sobre reparações no período colonial ou é tarde demais?

Não, é possível e é necessário, enquanto esses debates não se fizerem há uma parte substantiva da nossa história e da história, nesse caso de Moçambique, de Angola, da ex-colónias que fica no limbo e que um dia mais tarde tem consequências. O que acontece de alguma forma é semelhante à história das independências: elas demoraram tempo, mas acabaram por se fazer. A história do repatriamento, a história da reparação nos moldes mais difíceis e mais complexos que possam acontecer são inevitáveis, vão acontecer mais tarde ou mais cedo. É uma questão só dos termos contemporâneos no nosso tempo e sermos, sobretudo contemporâneos das gerações que esperam que essas questões sejam abordadas e que o debate seja abordado dos dois lados: dos antigos impérios e daqueles que foram os antigos colonizados e escravizados. E isso, quanto mais urgente, melhor.

O debate já começou a abrir se na arte, na cultura, na investigação académica. O que é que falta para abrir este debate a todos os meios?

Falta haver um trabalho de investigação sólido e permanente. O debate tem sido feito em grupos bastante minoritários, nalguns casos, tem sido muito bem feito. Mas falta que este debate se alastre à universidade, de uma forma geral, ao ensino preparatório e secundário, aos meios de comunicação que estão, na maior parte de casos muito mal preparados quando não estão instrumento de recusa deste mesmo debate e nisso têm a sua grande responsabilidade e também, de alguma forma, que esse debate se faça em termos internacionais. Ou seja, nós não somos um caso isolado no diz respeito aos processos de colonização e de escravatura e, portanto, temos a possibilidade de aprender com outros países e outros governos e outras instituições internacionais que já o fizeram há muito tempo, que têm encontrado modos e formas de diálogo e de debate entre os parceiros que estão implicados neste processo. É uma forma também nós olharmos para o que se faz lá fora e, de alguma forma, encontrarmos exemplos possíveis para o debate a ser feito entre nós.

É preciso reparar, há reparação possível?

Há uma forma de reparação que é absolutamente impossível: Como é que se repara a morte de vários milhões de pessoas que foram escravizadas mesmo ainda que fosse só uma pessoa, já era grave. Foram milhões que foram escravizados, muitas delas mortas, comunidades que foram completamente destruídas, gerações e gerações que foram condenadas ao exílio e à morte. Isso é muito difícil de reparar. Há, contudo, formas de reparação que têm a ver com algum tipo de cooperação que se faça face a descendentes ou face a países que são descendentes ou herdeiros dessas situações de barbaridade que aconteceram. Há também outras formas hoje e eventualmente até mais, tão importante quanto essas, que é uma reparação feita no presente. O que quer dizer, de alguma forma, ter uma política que condena o racismo, ter uma política de imigração que seja uma política que, de alguma forma repare aquilo que foram atrocidades por nós cometidas e isso seja feito no presente, seja uma política de combate à discriminação pela cor da pele das pessoas ou pela sua situação social. E isto são reparações possíveis de se fazer na actualidade e urgentes para que também encontremos um caminho para a paz e um caminho maior de algo maior pacificação com o passado.

As questões que têm a ver com a restituição, apesar de tudo, são menos complicadas. Nessa medida, há inclusive, já todo um conjunto de protocolos, de formas de restituição que cada uma delas tem sua particularidade. Há forma já encontrada em países como a França, os Países Baixos, os Estados Unidos, o Japão que têm encontrado soluções entre os parceiros implicados e que, de alguma forma é um processo que está a andar e que vai continuar e disso tenho a certeza absoluta. Creio que também aí Portugal tem um imperativo a cumprir que é de restituir as obras que foram apropriadas, que foram roubadas, que foram espoliadas e que de alguma forma destruíram comunidades, destruíram imaginários: Ao roubar, ao fazer negócios de usurpação de algumas dessas obras que estão, estiveram nos museus, colecções privadas, destruições, identidade de povos. O que seria dos portugueses, como é que os portugueses sentiriam se o painel de Nuno Gonçalves ou uma estátua de Nossa Senhora de Fátima fossem roubados por um exército ou por missionários? Com certeza que tudo faríamos para os readquirir. É isso que as pessoas, as comunidades que são herdeiras de outras comunidades a quem foram expropriados estes símbolos e estes objectos identitários, reclamam com toda a justiça.

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