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Revolução dos Cravos

Livro mostra 25 de Abril como “revolução social” e abana “visão idealizada” da História

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O livro “C'est le peuple qui commande - La Révolution des Oeillets 1974-1976”, do historiador Victor Pereira, mostra que o 25 de Abril não foi apenas o derrube da ditadura e de um império colonial, mas foi também “uma revolução social”. A obra abana uma certa “visão idealizada” da História e quebra tabus nas narrativas institucionalizadas sobre o 25 de Abril, alertando contra as ameaças da extrema-direita nas vésperas dos 50 anos da Revolução dos Cravos.

Victor Pereira, Autor de “C'est le peuple qui commande - La révolution des Oeillets 1974-1976”
Victor Pereira, Autor de “C'est le peuple qui commande - La révolution des Oeillets 1974-1976” © Carina Branco/RFI
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Neste programa, falámos com o historiador Victor Pereira sobre o seu livro, publicado em França, “C'est le peuple qui commande - La Révolution des Oeillets 1974-1976”. A obra desempoeira uma certa “visão idealizada do 25 de Abril” e mostra que “o 25 de Abril não falhou”, mas os cravos das “utopias revolucionárias” murcharam. O livro lembra como a violência do colonialismo e as lutas de libertação também levaram ao 25 de Abril, à queda da ditadura e de um império e recorda os meses e os anos que se seguiram à “Revolução dos Cravos” e que acabaram com “sonhos revolucionários”, para uns, e com ameaças de “ditaduras comunistas”, para outros. A obra recorda os bastidores, as dinâmicas e as lutas internas do processo revolucionário português, as preocupações diplomáticas internacionais e os diferentes movimentos sociais que acreditaram numa transformação radical da sociedade portuguesa.

Para o investigador, a revolução de 25 de Abril de 1974 não foi apenas o derrube da ditadura e de um império, mas foi também “uma revolução social” e até “a última revolução na Europa ocidental que que quis acabar com o capitalismo”. Porém, “o ímpeto revolucionário”, que chegou a ser comparado ao Maio de 68 em França, calou-se a 25 de Novembro de 1975, depois de um braço-de-ferro marcado por ameaças de guerra civil em Portugal.

Hoje, a extrema-direita ensombra as comemorações dos 50 anos da “Revolução dos Cravos” e Victor Pereira espera que este aniversário permita a divulgação de trabalhos que interroguem a “visão encantada que uma grande parte da população portuguesa conserva do seu passado colonial”. Em causa, a herança lusotropicalista que persiste em torno da ideia de uma “ditadura e colonialismo brandos” alimentada, em parte, pelo paradoxo que “os militares que fizeram a revolução e que libertaram o povo português e permitiram a descolonização, foram os mesmos que fizeram a guerra”.

 

RFI: O livro sobre o fim da ditadura em Portugal termina com uma parte intitulada “um 50° aniversario sob a ameaça da extrema-direita”. Até que ponto este alerta é premente hoje?

Victor Pereira, Autor de “C'est le peuple qui commande - La révolution des Oeillets 1974-1976”: Este livro foi escrito e publicado antes do anúncio da demissão do António Costa e das próximas eleições, em 10 de Março, mas mesmo apesar das eleições e o peso talvez mais importante que o partido da extrema-direita poderá ter na Assembleia, quando escrevi este livro, no verão, já tinha em mente que para o Chega, a extrema-direita, ia ser uma forma de ter alguma cobertura mediática.

Isto porque o Chega é um dos partidos que mais critica o 25 de Abril, nomeadamente uma das consequências do 25 de Abril que é a descolonização e o retorno de populações brancas que viviam em Angola e Moçambique principalmente, e que coloca em questão a democracia tal como ela existe desde 1976, falando de corrupção, falando de sistema e tudo.

É quase irónico que, algumas semanas antes do 25 de Abril, haja essas eleições e talvez - ainda não sabemos - onde o partido Chega talvez vá ser um partido essencial para garantir uma maioria à direita ou que pode até impedir que haja uma solução governativa clara logo depois das eleições.

Deixa um desejo que as comemorações dos 50 anos sirvam para a divulgação de trabalhos de investigadores que há anos interrogam o que chama de “visão encantada que uma grande parte da população portuguesa conserva do seu passado colonial”. O Víctor Pereira sublinha que há mesmo duas narrativas perigosas que persistem sobre o 25 de Abril. Quais são elas?

Sim, porque depois do 25 de Abril houve alguns estudos que tentaram descrever o que foi o colonialismo a partir do século XV, digamos, até ao fim da guerra colonial, nomeadamente os massacres que houve durante a guerra colonial. Conhecemos alguns, mas talvez alguns ainda não são bem conhecidos. Dos mais conhecidos talvez seja o do Wyriamu, em Moçambique, com 400 pessoas civis mortas por tropas portuguesas.

Se bem que durante a guerra colonial, no exílio, por exemplo, em França havia alguns partidos e movimentos que tentavam alertar a opinião pública internacional sobre a guerra e os massacres que aconteciam, depois do 25 de Abril, um dos paradoxos da revolução é que são os militares que fazem a revolução e que libertam o povo português que permitem a descolonização, mas são os mesmos militares que fizeram a guerra e que depois do 25 de Abril não tiveram propriamente vontade que fossem expostos os crimes que foram cometidos - não por eles pessoalmente muitas vezes, mas por outras pessoas com as quais trabalhavam e com alguma ligação de confraternidade dentro das Forças Armadas.

Isso é uma coisa que fez com que depois do 25 de Abril não se falou muito dos massacres. Ou se houve alguns estudos nem sempre tiveram acesso às fontes úteis para isto e foi difícil para eles divulgarem esses trabalhos.

O outro ponto é a ideia de uma “ditadura branda”?

Exactamente e, sobretudo, do colonialismo brando. Isto é, uma das coisas também que ficou depois do 25 de Abril - e que é um enigma para os historiadores - é que antes do 25 de Abril, nos anos 50, e sobretudo 60 e 70, a ditadura de Salazar retomou os trabalhos do antropólogo-sociólogo brasileiro, Gilberto Freire, que tinha desenvolvido o lusotropicalismo, essa ideia que os portugueses eram diferentes dos outros povos colonizadores, no sentido em que eles não eram racistas. Segundo o Gilberto Freire e o lusotropicalismo, os portugueses não são racistas e não houve violência colonial, houve encontros coloniais feitos de mestiçagens, de trocas. Isso tudo foi uma narrativa que branqueou a violência do colonialismo. Os portugueses conseguiram impor-se pela força, não por outros meios.

E o Victor fala também da narrativa de um PREC violento que tentou impor um regime totalitário…

Sim. Por um lado, uma ditadura em que não foram assim tão duros, não eram repressivos em comparação, por exemplo, com outro regimes como a Alemanha nazi, etc. Por outro lado, colocando a ênfase sobre a violência, sobre a eventual deriva para uma ditadura de esquerda, e sobretudo comunista ou de extrema-esquerda e os abusos por parte de alguns militares, como Otelo Saraiva Carvalho, com o COPCON. Então, houve um discurso de banalização da ditadura e do colonialismo e de colocar a revolução, apresentá-la como um momento perigoso, onde as liberdades e a democracia foram colocadas em risco.

Diz que o 25 de Abril não foi só a queda de 48 anos de ditadura e o fim de um império de cinco séculos. O que é que foi para si o 25 de Abril?

Foi a libertação de todo um povo, de todos uns povos. Foi a libertação do povo português da ditadura que durou 48 anos. O que se vê logo no 25 de Abril – e que foi uma surpresa para os próprios militares - é que o povo sai à rua para apoiar, incentivá-los e ninguém sai à rua para defender a ditadura. E eu disse ‘todos os povos’ porque depois é a libertação de Angola, Moçambique e da Guiné-Bissau e Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Mais tarde, de Timor e de Macau. Por um lado, é uma libertação, por outro, sabemos bem que, por exemplo, em Angola houve uma guerra civil, em Moçambique também houve conflitos e na Guiné houve várias dificuldades, isto é, houve a libertação, mas que não foi vivida logo e com todos os benefícios para as populações civis em certos países.

Há uma grande mobilização social, há um sopro de liberdade a seguir ao 25 de Abril, com os comitês de moradores, as comissões de trabalhadores, as greves de trabalhadores e ocupações de terras, de casas, de fábricas, há lutas estudantis... No livro, cita o caricaturista francês Cabu, que no Charlie Hebdo, em Maio de 1975, escreve “os portugueses vivem o seu Maio de 68 e um tempo em que tudo parece possível e imaginável”. Porquê?

Portugal ficou nas bocas do mundo no sentido em que muitos jornalistas, intelectuais, estudantes, homens políticos seguiram a revolução de perto e até foram ver a revolução e alguns foram viver a revolução. Alguns estudantes foram a algumas cooperativas do sul do país ajudar os trabalhadores ou vieram para Lisboa, para o Porto ver essa revolução.

Muitas vezes, uma revolução é uma sucessão de eventos que não se compreende e, em períodos instáveis, a História é usada para tentar compreender o que é que se passa e muitos fizeram essa analogia – muitos franceses nomeadamente – com o Maio de 68, mostrando que havia uma libertação da palavra. As pessoas falavam, havia comícios, havia manifestações, as pessoas depois de 48 anos sem poder falar, há uma libertação e as pessoas querem debater, querem falar política, querem falar de tudo o que podem falar e por isso é que é muitas vezes ligada ao Maio de 68, em que houve grandes debates, grandes comícios, na Sorbonne, no Odéon, etc.

Mas alguns fazem outras analogias. Por exemplo, com 1917, com a ideia de uma revolução que pode impor um poder comunista e o fim do capitalismo e o fim da propriedade privada. Outros fazem uma ligação com 1945 em França, depois da guerra, onde é preciso sanear o Estado das pessoas que colaboraram com a Alemanha e com Vichy e criar um pacto entre as forças democráticas para reconstruir o país. E havia muito essa ideia em Portugal, depois de 74, que é preciso reconstruir o país a bem do povo português.

Hoje também fazem uma analogia com 1962 porque Portugal também conhece uma descolonização, como a França conheceu em 62, com a vinda de milhares de franceses que estavam na Argélia, Portugal também tem que lidar com o regresso ou a vinda de populações, 700 mil mais ou menos, que viviam em Angola e Moçambique e que querem voltar para Portugal e sair desses países que vão entrando em guerra.

No livro começou por falar da fachada imaculada do Convento do Carmo, que não guarda qualquer impacto de balas do 25 de Abril. Diz que esta é uma revolução mundialmente conhecida como “uma revolução pacífica”. Esta é uma narrativa que ainda hoje se ensina nas escolas. O 25 de Abril foi uma revolução sem mortos e pacífica?

Houve cinco mortos, quatro deles foram pessoas mortas pela PIDE, pela polícia política, que na altura chamava-se DGS, que vendo uma multidão juntar-se em frente da sede na rua António Maria Cardoso, atirou sobre a população ferindo varias pessoas e matando quatro. Também nesse dia há um quinto morto, que é um agente da polícia política que tenta fugir e que é morto pelos militares do MFA, que é a única pessoa que foi morta pelo MFA.

Então, são 5 mortos, mas a ideia que vingou logo é que foi uma revolução pacífica porque não houve muitos mortos. E a ideia que, às vezes, é repetida é que os próprios militares, quando saíram à rua na manhã do 25 de Abril, que eles queriam fazer uma revolução pacífica. Obviamente que não era o caso: eles tinham armas e sabiam que talvez deviam usá-las se fosse preciso.

O plano do Otelo Saraiva de Carvalho, que fez o plano das operações, tentou implicar o máximo de forças com o MFA, conseguindo neutralizar os oficiais que não acompanhariam o golpe. Tentou neutralizar as forças que não queriam participar por vários motivos, a Força Aérea, a Marinha e ele conseguiu ver mais ou menos quais eram as forças que iam ser fiéis ao regime e tentar limitar a força de resposta destas entidades. O que funcionou mais ou menos bem.

O Otelo tenta ao máximo reduzir os conflitos, mas quando saem à rua, eles acham que vão ter que usar as armas. Então, ela tornou-se pacífica porque o povo saiu à rua, o que fez com que as forças que ainda eram fiéis ao regime, muitos soldados desertaram porque não querem usar as armas contra o Salgueiro Maia, por exemplo, perto do Terreiro do Paço, porque vêm que a revolução é apoiada pelo povo e eles não querem combater com outros portugueses. Isso foi um dos principais motivos.

Há esse célebre caso onde um navio de guerra chega em frente do Terreiro do Paço, tem ordens para atirar sobre as forças do Salgueiro Maia e acaba por não o fazer. Se ele tivesse cumprido as ordens, parte da Baixa teria sido destruída e podia haver centenas de mortos porque da parte das forças ainda fiéis ao regime, alguns indivíduos recusaram obedecer às ordens que lhes eram dadas. E isso tudo fez que não houve mais que cinco mortos e que houve pouca troca de balas no dia 25 de Abril.

Depois, também houve muita violência durante o colonialismo, durante as guerras de libertação que também levaram ao 25 de Abril...

Sim, sim, esses militares que saem à rua e que querem organizar o golpe de Estado, um dos motivos principais é que eles querem pôr fim à guerra, sabendo que o regime não vai aceitar qualquer negociação com os movimentos de libertação. O [António de] Spínola, que era governador até 73 na Guiné-Bissau, tinha proposto ao [Marcello] Caetano uma negociação com o Senghor, presidente da República do Senegal, e com o Amílcar Cabral, coisas que o Caetano recusou radicalmente, dizendo que as Forças Armadas são feitas para fazer a guerra, podem perdê-las ou ganhá-las, mas era inconcebível negociar com pessoas que eram tomadas como terroristas.

Obviamente, muitos militares estavam fartos da violência que eles próprios tinham que usar e que os próprios jovens que eles comandavam tinham que sofrer. Era a morte que estava sempre com eles. A morte, o ser preso, ser magoado, e nós sabemos que, décadas depois do fim da guerra, há sempre homens que ainda têm traumas desse período.

Não foram só os soldados portugueses que teriam contribuído para o 25 de Abril, também os próprios movimentos de libertação contribuíram, ou não?

Há essa ideia, que é um lema, que o 25 de Abril começou em África, isto é, que o 25 de Abril aconteceu porque houve movimentos de libertação em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau principalmente, que lutaram contra o colonialismo português com um discurso que era: nós não lutamos contra o povo português, nós lutamos contra a ditadura portuguesa que nos impede de ser livres, mas que também impede os portugueses de serem livres. Então nós lutamos contra o fascismo de Salazar, de Marcello Caetano, mas não lutamos contra o povo português.

Essa propaganda teve algum efeito sobre alguns militares, por exemplo, o Otelo Saraiva de Carvalho que trabalhava na propaganda na Guiné-Bissau sob o comando do Spínola. Alguns questionaram radicalmente o que era a presença portuguesa nessas colónias. Eles viam bem que os povos africanos não viviam bem, que viviam muitas vezes sob a arbitrariedade da administração e dos colonos, eram explorados onde trabalhavam nas explorações de café, por exemplo, em Angola, nos campos de algodão.

Então eles compreenderam que tinham que libertar-se da ditadura para poder libertar o povo português e os povos colonizados.

A “Revolução dos Cravos” despertou muitos episódios de violência política no pós-revolução. “25 de Abril, dia inicial, inteiro e limpo” é um verso da Sophia de Mello Breyner Andresen que chamou a título de um dos capítulos do seu livro, mas com um ponto de interrogação. Porquê este ponto de interrogação?

Porque temos, muitas vezes, uma visão idealizada do 25 de Abril que, de facto, é um grande dia no sentido que conseguiu acabar com uma ditadura que durou 48 anos. Só que, nesse dia, o que se passa é que nem todos os objectivos do MFA são conseguidos porque aparece uma personagem que é o António de Spínola que consegue apoderar-se do poder, o que não era propriamente o que tinha sido pensado pelo MFA.

Quando o MFA organizou vários encontros no tempo da ditadura, os oficiais do MFA tinham votado para ser chefe do movimento, em caso de avançar, o Costa Gomes, que era o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, mas que no dia 25 de Abril esconde-se, está no hospital com a mulher, sabia que alguma coisa ia acontecer e nesse dia não aparece. A pessoa que consegue aparecer, mexendo vários cordelinhos ou várias pessoas mexem alguns cordelinhos, é o próprio Spínola que joga um jogo duplo nesse dia 25 de Abril, sabendo que havia um golpe de Estado em preparação, sabendo do programa do MFA, dizendo que tinha algum receio que no MFA houvesse pessoas ligadas ao partido comunista ou comunistas e que no 25 de Abril consegue ir ao Carmo ficar com o poder dado pelo Marcello Caetano e tenta impor durante a noite o programa dele.

Alterando um dos pontos fundamentais do programa do MFA.

Exactamente. Ele tinha lido e colocado algumas mudanças no programa do MFA nos dias que antecederam o 25 de Abril e já havia algumas tensões entre o MFA e próprio Spínola e a grande tensão era sobre as colónias. O Spínola apareceu como o líder natural em caso de golpe porque ele tinha publicado o livro “Portugal e o Futuro”, publicado em Fevereiro de 1974 que é uma bomba no sentido onde ele diz que a solução à guerra colonial não é militar, mas é política e é preciso tentar encontrar uma solução com os movimentos que combatem em África e, nomeadamente, ir para mais autonomia das colónias e criar uma federação lusíada, isto é, tentar manter um império, mas sem as formas que existiam até 74. Isto é um Portugal unido do Minho a Timor. Ele quer manter alguma ligação com as colónias, enquanto que muitos militares do MFA querem a autodeterminação das colónias, que elas possam decidir o que elas querem e provavelmente vão querer a independência.

Logo na noite de 25 para 26 de Abril, o Spínola apenas aparece na televisão à uma da manhã porque há um desentendimento muito forte entre os oficiais do MFA e o Spínola que quer impor o programa dele e diz que o programa do MFA não conta e os oficiais do MFA que dizem: não, nós temos um programa, você lê o programa e é esse programa que vamos propor ao povo português.

Há esse desencontro à volta, sobretudo, das colónias, há outros pontos onde eles não concordam, nomeadamente sobre o fim da PIDE-DGS nas colónias. A PIDE-DGS não desaparece nas colónias, desaparece na metrópole, mas não nas colónias.

Mas o grande ponto de desentendimento é a descolonização e, aliás, à uma da manhã quando o Spínola fala na televisão, uma das primeiras coisas que ele diz é que o 25 de Abril se fez para manter um Portugal pluricontinental, isto é, continuar com uma forma colonial que ainda se tem que discutir. Isso vai abrir um conflito entre o Spínola e o MFA que vai durar até Setembro de 74 até ao Spínola sair da Presidência da República.

Diz que a expressão “Revolução dos Cravos” é usada para designar os eventos que decorrem do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Abril de 1976, mas que depois de Março de 75 aparece o PREC, Período Revolucionário em Curso, em que o MFA quer “transformar radicalmente as estruturas económicas e sociais do país” e fala em “revolução na revolução”. Porquê “revolução na revolução”?

Sim, porque, no início, o MFA tinha como objectivo pôr fim à ditadura e entregar o poder aos civis, aos partidos políticos. Só que isso não vai acontecer logo porque há um conflito entre o Spínola e o MFA e parte dos oficiais do MFA acha que o Spínola quer ir contra o espírito do 25 de Abril e foram eles que fizeram o golpe de Estado, não foi o Spínola - ele aproveitou-se, mas não o fez.

Então há um conflito. A comissão de coordenação do MFA não desaparece e vai tentando defender a sua visão do 25 de Abril, aliás, consegue a partir de Julho de 74 impor um dos oficiais como primeiro-ministro, o Vasco Gonçalves. Esse conflito vai durar até Setembro, à volta, nomeadamente, da descolonização, e depois o próprio Spínola tenta um golpe de Estado em 11 de Março de 75 e isto vai desembocar numa radicalização da revolução, isto é, uma institucionalização de um MFA com o Conselho da Revolução. O MFA com o Conselho da Revolução pretende ter um papel motor na revolução e transformar radicalmente Portugal.

O que antes era visto por certas partes do MFA como não sendo possível - é preciso esperar que o povo português vote para saber o que os portugueses querem e depois veremos as mudanças, não podemos fazer mudanças de vulto - depois do 11 de Março há mudanças de vulto: a nacionalização dos bancos, dos seguros, parte da indústria, o desenvolvimento da reforma agrária no sul do país. Então, o MFA torna-se um agente revolucionário, coisa que não era de todo previsto em Março, Abril de 74.

Tem um capítulo intitulado “uma Cuba na Europa?” em referência ao período entre 11 de Março de 1975 e 10 de Julho de 1975. Recorda que o secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, disse que o governo português “é cada vez mais dominado por comunistas”, que têm o apoio do MFA, segundo ele constituído pelo que chamava de “marxistas autodidactas”. Havia realmente o risco de Portugal ser uma Cuba em plena Europa ocidental?

Alguma parte do MFA e alguns movimentos políticos esperavam que Portugal fosse um país que não seria uma social-democracia à alemã ou à sueca que achavam demasiado moderada; também não queriam, alguns deles, o princípio popular como na Europa de leste; mas estavam à procura de um novo modelo, de uma via original para um socialismo português e havia muito fortemente um discurso anti-imperialista, que Portugal não era propriamente um país europeu e alguns não queriam que Portugal se juntasse mais tarde à União Europeia, à CEE, mas também não queriam que fosse um satélite de Moscovo.

Então, houve várias propostas durante o ano de 74, mas sobretudo 75, sobre o que deveria ser Portugal e houve a célebre caricatura de João Abel Manta que é um quadro com o mapa de Portugal e várias pessoas, o Lenine, o Kissinger, a Rosa Luxemburgo, o Mao a verem Portugal e a não compreenderem o que é que se passa em Portugal porque havia muitas ideias, muitas propostas, muitas soluções, muitas vias para o socialismo.

Obviamente, do lado dos Estados Unidos, da França, mas sobretudo dos Estados Unidos, havia um medo que Portugal se tornasse comunista porque o Partido Comunista estava no poder, estava no governo. Muitos viam em Álvaro Cunhal, o secretário-geral do PCP, uma pessoa com capacidade para tentar impor uma revolução comunista, uma tomada de poder comunista. Então, havia muito essa ideia que Portugal seria um país anti-ocidental ou anti-americano na Europa, o que colocava outro problema porque Portugal estava na NATO. Então, como é que se poderia aceitar que um país que está na NATO e que pode ter informações importantes para Moscovo, pudesse continuar na NATO? Outro ponto importante para o Kissinger era os Açores, isto é, como é que podemos aceitar que um país que tem os Açores, que é um ponto estratégico fundamental para os Estados Unidos para controlar o Atlântico do Norte, se torne comunista?

Então, havia essas propostas de encontrar uma solução portuguesa para um regime socialista e esse medo dos Estados Unidos que, de facto, houvesse uma tomada de poder da extrema-esquerda e que fosse necessário ficar, pelo menos, com os Açores.

Depois o Kissinger teve várias ideias sobre Portugal, uma delas era a teoria da vacina. Era a ideia que Portugal está perdido, os comunistas vão ficar no poder em Portugal ou então vamos perder Portugal no campo ocidental. Outra consequência é uma guerra civil por parte do povo português, que nomeadamente, se viu que não queria o Partido Comunista que apenas conseguiu 12,5 % dos votos em Abril de 75.

Então, se houvesse uma guerra civil em Portugal, isso seria uma vacina noutros países, como a Itália, como em França, porque nesses países o Partido Comunista era forte e conseguiu juntar-se aos partidos. Em Itália, havia o compromisso histórico entre o Partido Comunista italiano e a Democracia Cristã. Em França, havia a União da Esquerda entre o Partido Comunista, o Partido Socialista e os radicais de esquerda. Então, havia uma possibilidade que, nesses países, o Partido Comunista pudesse estar no governo, o que não queriam os Estados Unidos. Se em Portugal corresse mal, não era assim tão mau. Perdíamos Portugal - sobretudo Portugal ia viver momentos difíceis e até trágicos -, mas pelo menos isso fazia que, em Itália e em França, o Partido Comunista fosse menos forte.

Essa ameaça de uma guerra civil em Portugal foi permanente. No “Verão Quente”, assistiu-se a muitas lutas entre os que temiam a tomada de poder comunista e a imposição de uma democracia directa e os que acusavam a direita de querer repor a ditadura. Quer recordar-nos o que foi o “Verão Quente”?

O Verão Quente foi que, a partir de 10 de Julho de 75, o Partido Socialista deixa o governo, nomeadamente por causa do jornal República, um jornal que era controlado pelo Partido Socialista e onde os tipógrafos conseguem pôr de lado a direcção socialista do Raul Rego, que era um próximo de Mário Soares. O Partido Socialista considera que o caso República é uma peça suplementar à tentativa do Partido Comunista de ficar com a imprensa, de não deixar falar os socialistas e que faz parte do plano para ficar com o poder. Os socialistas deixam o governo em Julho de 75 e, dias depois, no norte do país, de Rio Maior, a norte, há vários movimentos mais ou menos espontâneos que vão atacando sedes do Partido Comunista, sedes de partidos de extrema-esquerda, queimando as sedes, queimando a documentação. Por vezes, há confrontos com militantes comunistas. Em Julho e Agosto de 75, há vários ataques a sedes em todo o norte.

Como é visto por parte da população? Houve eleições no 25 de Abril de 75 e nessas eleições o Partido Socialista chegou em primeiro e o PPD, partido de centro-direita, chegou em segundo, foi a expressão do povo que votou de forma livre, mas o PS e PPD já não estão no governo em Julho, então, são manifestações contra o que eles acham ser um desvio da vontade popular pelo MFA e pelo Partido Comunista.

Essas violências anticomunistas do Verão Quente vão deixar pensar que talvez vai haver uma guerra civil que vai dividir o norte e o centro do país, mais moderados - alguns diziam mais conservadores - e Lisboa, o Alentejo, o Ribatejo, Setúbal, onde o peso do Partido Comunista e da extrema-esquerda é muito mais forte.

O Processo Revolucionário em Curso acaba a 25 de Novembro e escreve que, para muitos, acabam também “as utopias revolucionárias”. Porquê?

Sim, o 25 de Novembro é uma data importante. A partir de Setembro, Outubro, Novembro, os militares moderados e o PS tinham regressado ao governo e o Vasco Gonçalves tinha deixado de ser o primeiro-ministro. Era um primeiro passo para uma certa moderação da revolução e uma solução moderada que seguia os resultados das eleições do 25 de Abril de 75. Mas, houve uma radicalização da extrema-esquerda civil e militar, que temia que a revolução acabasse e que a reação, a extrema-direita, voltasse.

Então, há um confronto entre os militares moderados à volta de Melo Antunes e as partes mais radicais, nomeadamente o Otelo Saraiva de Carvalho, que tem um poder muito importante, porque ele é que dirige o COPCON que é uma espécie de polícia militar.

Em Setembro, Outubro, Novembro, há muitas mobilizações sociais, grandes manifestações ligadas ao PC e à extrema-esquerda. Há, nomeadamente, o cerco da Assembleia Constituinte, em Novembro de 75 por operários da construcção civil e alguns vêm nesse cerco uma vontade de acabar com a Constituinte e de impor um poder popular. Parte dos moderados, como o Melo Antunes, o Vasco Lourenço, o Ramalho Eanes preparam uma solução militar para tentar pôr de lado os mais radicais, os militares que estão à volta do Otelo Saraiva de Carvalho.

Então, há várias provocações que fazem com que parte dos militares radicais tentem sair à rua no 25 de Novembro de 75, o que os moderados estavam à espera e conseguem parar essa saída dos militares mais radicais, prendê-los e prender os vários oficiais que eram da extrema-esquerda. O próprio Otelo vai ser preso algumas semanas depois. O 25 de Novembro é uma neutralização da extrema-esquerda militar e a tomada de poder dos militares moderados do MFA à volta do Melo Antunes, do Vasco Lourenço. Eles vão dizer que é o regresso aos ideais do 25 de Abril e que é o fim dos excessos, dos desvios que foram impostos tanto pelo Vasco Gonçalves quanto pelo Otelo Saraiva de Carvalho.

Mas é também o fim das “utopias revolucionárias”...

Em grande parte, no sentido que vários militares são presos. O que alguns esperavam é que talvez parte da extrema-esquerda e parte da população que estava nessas comissões de moradores e trabalhadores, iriam à rua para defender essa revolução, mas não saíram a rua. Não houve um confronto, não houve guerra civil e, de facto, depois a ideia que se impõe é que tem que se respeitar o trabalho da Assembleia Constituinte. A nova Constituição é votada em 2 de Abril de 76, mas essa Constituição é muito - agora com o nosso olhar - é muito progressista porque defende as nacionalizações, defende a reforma agrária, defende a participação popular. Obviamente, para algumas pessoas, esse texto era apenas papel, isto é, que não ia impor-se, pois na prática esse ímpeto revolucionário acabou no 25 de Novembro de 75.

Depois do 25 de Novembro de 75, multiplica-se a expressão “os cravos murcharam”. Esta é uma questão que também coloca no livro. Os cravos murcharam mesmo?

Para a extrema-esquerda e para as pessoas que viveram a revolução, a revolução foi um momento sem igual porque as pessoas iam à rua, falavam de política, achavam que eram as próprias pessoas que deviam agir para mudar as suas vidas, ocupar um imóvel para fazer uma creche, ocupar uma propriedade agrícola. Então, era a ideia da democracia popular e directa - não temos apenas que votar para que representantes decidam por nós, devemos decidir em plenários.

Era uma forma de viver a política muito intensa e, de facto, depois do 25 de Novembro e, a partir de 76, essa visão muito dinâmica, muito de democracia popular vai-se esvaziando e Portugal torna-se uma democracia liberal com a ideia que as pessoas votam, que têm direito a um Estado de direito, mas as pessoas não vão participar activamente na vida comum, na vida política. E há um distanciamento entre o povo e a classe política. De facto, para alguns que tinham essa utopia do povo activo politicamente, isso desaparece.

No entanto, várias das promessas, várias dos compromissos de Abril foram ficando: o Estado social, o Estado providência, a saúde tendencialmente gratuita para todos, a escola para todos, essas conquistas de Abril foram ficando. Obviamente houve várias políticas que tentaram limitar algumas vantagens, viu-se durante os anos de 2010 com a Troika. Viu-se também, durante os anos da Troika, que um dos cantos que foi usado foi a “Grândola” porque as pessoas pediam que se respeitassem os valores de Abril e as conquistas de Abril. Então, obviamente murcharam, mas não houve um regresso para trás e houve várias conquistas que foram possíveis durante o 25 de Abril que ficaram.

É por isso que o livro se chama “o povo é quem mais ordena”? Porque tantos anos depois, as pessoas voltam à rua para lembrar ao governo as conquistas de Abril?

Sim, o título era uma referência à canção do Zeca Afonso, mas também era para mostrar os movimentos sociais, que a revolução não foi apenas o 25 de Abril e um golpe de Estado militar. Muitas vezes, parte da historiografia, nem toda obviamente, descreve o 25 de Abril como uma divisão entre o Partido Socialista do Soares e o Partido Comunista do Cunhal, como resultado das tensões do MFA e do Vasco Gonçalves, do Otelo, do Melo Antunes.

Mas o 25 de Abril e o PREC foi uma revolução social, foi a última revolução na Europa ocidental que colocou em dúvida ou até que quis acabar com o capitalismo, com a propriedade privada. Foi uma revolução com uma dimensão social, até socialista, muito importante e isso é o que o título quis mostrar. Obviamente que, desde 74 e desde as eleições de 75, Portugal é uma democracia, com eleições, com direitos, direito de manifestação e é sempre o povo que ordena.

Na altura, chegou a haver o turismo revolucionário, pessoas que queriam ir para Portugal para ver a revolução. Disse que teria sido “a última revolução que quis acabar com o capitalismo” e, nesse sentido, eu pergunto, o 25 de Abril falhou?

Não acabou com o capitalismo, isso é certo. Nesse sentido falhou. No entanto, antes do 25 Abril, a grande maioria dos militares não queriam acabar com o capitalismo, queriam era pôr políticas sociais que favorecessem as populações mais pobres que eram uma parte importante de Portugal. Então, queriam tentar pôr em prática estas políticas sociais que reduzissem as desigualdades.

Portugal ainda é uma sociedade desigual em vários sentidos, mas já não é assim tão desigual como antes do 25 de Abril. Há a redistribuição por via dos impostos, há políticas sociais e, nesse sentido, não se pode dizer que o 25 de Abril falhou.

Obviamente que o que fez a força do 25 de Abril durante o PREC é que houve várias interpretações do 25 de Abril. Várias pessoas tinham interpretações completamente diferentes do 25 de Abril: o Spínola tinha a sua visão do 25 de Abril, o Otelo tinha a sua visão do 25 de Abril, o Vasco Lourenço tinha a sua visão do 25 de Abril, o Soares, o Cunhal... 

Mas, ao fim e ao cabo, o que nós temos agora é um país muito mais desenvolvido do que era em 74, onde a população vive melhor. Não digo que tudo seja perfeito, sobretudo porque desde os últimos anos há uma grande pressão sobre a população que vive nas grandes cidades em termos de alojamento e obviamente que há sempre coisas a melhorar. Mas o que permite uma democracia é o protesto e dizer que as coisas não estão bem, que têm que ser mudadas, coisas que era impossível no tempo de ditadura e, nesse sentido, o 25 de Abril não falhou. Mas, obviamente, que muitos que tinham sonhos revolucionários não se podem conformar com o que se passou depois porque muitos deles queriam ir muito além do que Portugal se tornou.

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