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Portugal silenciou Molière até ao século XX

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Molière só começou a ser redescoberto, em Portugal, depois da "Revolução dos Cravos" devido ao lado revolucionário de muitas das suas personagens que abalavam a ordem política, moral e religiosa do país. Quem o diz é Marie-Noëlle Ciccia, autora de várias obras sobre Molière em Portugal. O maior silêncio foi em torno de “D. João”, censurado e adulterado desde as primeiras traduções no século XVIII por ser considerado como um ataque aos valores morais e religiosos.

Livro de Marie-Noëlle Ciccia
Livro de Marie-Noëlle Ciccia © Carina Branco/RFI
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Se o maior silêncio foi em torno de “D. João”, censurado e adulterado desde as primeiras traduções no século XVIII, a tradução de outra obra, “Tartufo”, transformou a personagem principal num jesuíta hipócrita para servir os intuitos do Marquês de Pombal.

Durante muito tempo, o público português nem chegou a conhecer as peças mais polémicas de Molière. Vamos tentar perceber as razões com Marie-Noëlle Ciccia, autora de várias publicações sobre a recepção e influência de Molière em Portugal, nomeadamente “Le théâtre de Molière au Portugal au XVIIIe siècle: de 1737 à la veille de la révolution libérale” e “Don Juan et le donjuanisme au Portugal du XVIIIe siècle à nos jours”. A investigadora é também professora de português na Universidade Paul Valéry de Montpellier, em França, que, este ano também comemora os 400 anos do nascimento do dramaturgo francês.

No livro “Don Juan et le donjuanisme au Portugal du XVIIIe siècle à nos jours”, a autora explica que, em Portugal, houve um silêncio ao longo dos séculos em torno do “D. João” de Molière. Portugal censurou as primeiras traduções de “D. João” no século XVIII, a primeira edição portuguesa foi publicada apenas em 1971 e foi preciso esperar por 1986 para a primeira representação. Em causa, “uma razão essencialmente religiosa” porque “D. João de Molière é um materialista, um ateu e, em Portugal, era uma coisa impensável” mas também uma razão moral porque D. João joga com toda a gente e tem uma “hipocrisia feroz que destrói tudo”.

Para fintar a censura, a primeira tradução no século XVIII, transforma D. João numa personagem nova em que todas as alusões ao potencial ateísmo do libertino são apagadas e ele acaba por ter uma morte católica. Ou seja, essa tradução foi uma “violência” e uma “traição” à obra de Molière. Porque D. João é certamente “a comédia de Molière mais complexa e mais grave da sociedade ocidental católica” porque abala os próprios fundamentos dessa sociedade por ser “o anti-homem moral e anti-homem religioso” e por  “se rir do céu”, o que era “inconcebível em Portugal”. Uma “personagem extremamente lúgubre”, que é o contrário de uma comédia, resume a professora universitária, sublinhando que D. João continua a ser um texto absolutamente contemporâneo.

Em contrapartida, “Tartufo” foi traduzido e editado logo no século XVIII, mas o simples “devoto hipócrita francês tornou-se num jesuíta hipócrita em português”, num contexto de luta contra os jesuítas. Uma tradução “sem dúvida nenhuma” eminentemente política.

Além do D. João, as peças mais polémicas de Molière não tiveram nenhum sucesso junto do público português, que nem as chegou a conhecer traduzidas durante muito tempo. Foi o caso de “O Misantropo” ou “A Escola das Mulheres”.

Oiça aqui a entrevista:

19:40

Entrevista a Marie-Noëlle Ciccia sobre Molière em Portugal

RFI: A Universidade de Montpellier e o mundo académico e literário está a celebrar os 400 anos do nascimento de Molière. Quais são as iniciativas ao longo do ano da sua universidade?

Marie-Noëlle Ciccia, Especialista de Molière: Temos um programa que se chama Montpellier 2022 que é organizado pela nossa equipa (IRCL) que se pode encontrar facilmente na internet e que está associada ao CNRS. É um programa que vai durar um ano e que tem várias actividades distintas, desde encontros com o público dentro de pequenos palácios de Montpellier para desenvolver algumas práticas do Molière, até um colóquio grande, organizado com a Maison Française de Oxford e também uma mesa redonda que vai ser organizada em Oxford.

Enfim, muitas coisas acerca de Molière e, sobretudo, acerca de Molière e da medicina porque Montpellier tem a mais antiga universidade de Medicina no mundo ocidental e, portanto, há um grande interesse nesta temática de Molière com a medicina. Depois, Molière passou em Montpellier e viajou durante muitos anos no sul de França e está muito ligado à nossa região. Estamos muito interessados em celebrar esses 400 anos do nascimento de Molière, através de uma série de actividades e manifestações várias que se podem encontrar facilmente no site do IRCL.

A Marie-Noëlle estudou a recepção de Molière em Portugal, desde o século XVIII até aos dias de hoje, sobretudo de Don Juan, D. João. Nos seus trabalhos, vemos que Portugal só conheceu D. João no século XX, primeiro sob a censura do Estado Novo, e que foi preciso esperar até 1986 para a primeira representação teatral…  De forma resumida, cronologicamente como foi esta recepção do D. João de Molière em Portugal?

O “D. João” foi traduzido em 1769 por um anónimo, talvez – mas não tenho nenhuma certeza – talvez o capitão Manuel de Sousa que foi o mesmo tradutor do “Tartufo” um ano antes. O “Tartufo” foi aceite pela Real Mesa Censória e o “D. João” não foi. Primeiro, não foi em 1769, depois foi apresentado de novo um requerimento em 1971 que também foi recusado e, em finais do ano 1771, foi de novo apresentado para a impressão com um título diferente, “O Dissoluto” - o primeiro título era “O Convidado de Pedra”. O texto provavelmente não foi nada ou quase nada modificado mas o título foi modificado e, mesmo assim, foi recusado.

De forma que temos apenas esse manuscrito de 1771 para saber como foi a primeira versão do D. João em Portugal porque o manuscrito de 1769 foi perdido. Talvez a Real Mesa Censória o tenha destruído, não sei, mas não reapareceu. A partir daí, D. João some, entre aspas. Nunca mais o D. João de Molière foi apresentado à censura nem traduzido, nem representado em Portugal antes do século XX, mas aparecem traços do D. João de Molière em diversas obras ao longo do século XIX e XX, obras poéticas, em particular, mas só isso. Molière some completamente do panorama.

Mas houve uma edição de cordel que apareceu no século XIX?

No século XVIII já, em 1785, e depois em 1837. A edição de 1785 teve provavelmente um sucesso relativo porque foi editada duas vezes. Temos duas versões no mesmo ano dessa edição e em 1837 também uma, mas não se sabe muito, não se sabe até quase nada da recepção pelo público. Não se sabe se teve muito sucesso, mas não foi representado ou, pelo menos, não se tem indício nenhum de que tenha sido representado.

No seu livro “Don Juan et le donjuanisme au Portugal du XVIIIe siècle à nos jours” defende que houve um silêncio ao longo dos séculos do D. João de Molière. Como é que se explica esta censura e este silêncio que sacrificaram a reputação do libertino e que levou a que durante muito tempo Portugal não conhecesse D. João de Molière?

É uma razão essencialmente religiosa. O D. João de Molière é um materialista, um ateu e, em Portugal, era uma coisa impensável e há também a moralidade desse homem que joga com as mulheres, que joga com o pai, que joga com todos, que tem essa hipocrisia feroz que destrói tudo e que é inadmissível para uma mentalidade portuguesa.

Cada vez que foi aproximado esse carácter de libertino, foi aproximado em termos de moralização. O D. João [nas traduções portuguesas de então] não pode morrer sem ter percebido os erros, sem se ter arrependido dos seus erros, sem ter sido perdoado pelo mal que tinha feito. Portanto, quando D. João morre, tem de ter uma morte em paz, digamos. Uma morte católica, uma morte com o arrependimento e o perdão generalizado das pessoas que o rodeiam e de Deus, claro.

Portanto, é uma questão essencialmente religiosa e também moral e antropológica. A morte em Portugal não é tratada da mesma forma que em outros países e é um tema relativamente tabu que é preciso tratar com cuidado e o D. João de Molière não se adapta à mentalidade do século XVIII e depois na evolução para o Romantismo em Portugal. Não se adapta da mesma forma como se pode adaptar em França ou em outros países.

Como dizia, na primeira tradução no século XVIII, D. João torna-se numa personagem nova, para corresponder ao gosto português e às intenções político-religiosas da época. Todas as alusões ao potencial ateísmo do libertino são apagadas e na última cena o tradutor português altera D. João que se arrepende dos seus actos quando há o fogo e este vai ser absolvido, mostrando que a compaixão de Deus é sistemática e universal para todos. Ou seja, houve uma clara violência ao maior libertino de Molière?

Claro, claro que é uma violência. É uma violência porque é uma traição. Molière quis que D. João fosse punido dessa forma bem específica. [Essa tradução] torna a sua personagem, afinal de contas, uma personagem sem consistência, uma personagem que não é capaz de resistir à violência alheia, que não é capaz de manter a sua atitude, o seu pensamento. É uma personagem que não tem carácter, que não tem consistência. Portanto, é uma personagem nova, sim, e é uma personagem que foi, entre aspas, violentada pela tradução.

Como é que se explica que Tartufo tenha sido traduzido e editado logo no século XVIII e que D. João, que foi posterior a Tartufo, tenha sido censurado? Tanto mais que se sabe que o Marquês de Pombal gostava de Molière…

Isso. O Marquês de Pombal não pôde tudo dentro do círculo reduzido dos deputados da Real Mesa Censória. Relativamente a Tartufo, foi muito provavelmente o próprio Pombal que pediu ao seu amigo, o capitão Manuel de Sousa, para traduzir o Tartufo, mas traduzindo, mais uma vez, de forma violenta, na medida em que esse Tartufo – que era apenas, entre aspas, um devoto hipócrita francês - se tornou num jesuíta hipócrita em português, num contexto de luta contra os jesuítas, que já tinha começado há muito tempo em Portugal e que apesar da expulsão dos jesuítas em 1759, essa luta continuava.

O Marquês de Pombal não parou, por diversos meios propagandísticos, de lutar contra os jesuítas, mesmo que eles estivessem fora do país. Portanto, ele encontrou esse meio: o teatro era um meio popular muito importante de educação do povo, de educação à moralidade e aos bons modos do povo e de educação em sentido mais lato também. Ele pediu para esse Tartufo ser traduzido, fazendo do hipócrita um jesuíta hipócrita já que os jesuítas tinham essa reputação de serem hipócritas, de não se poder confiar neles de forma nenhuma. Portanto, evidentemente, que foi aceite porque foi pedido pelo próprio Marquês de Pombal e entrava claramente na política da altura. Agora, o D. João era bem diferente.

Ou seja, a tradução de Tartufo foi algo eminentemente político.

Claro, sem dúvida nenhuma, sem dúvida nenhuma.

Além do D. João, as peças mais polémicas de Molière não tiveram nenhum sucesso junto do público português, que nem as chegou a conhecer traduzidas durante muito tempo. Foi o caso de O Misantropo ou A Escola das Mulheres. Em contrapartida, o Tartufo alterado foi conhecido, O Casamento à Força teve sucesso e As Preciosas Ridículas também tiveram uma tradução bastante alterada… Foi assim? Como é que foi esta recepção de Molière em sentido mais lato em Portugal?

Pode-se dizer que há um período bem favorável a Molière entre 1768 e 1771. Depois, começam a escassear as manifestações ou traduções de Molière. Há algumas peças que tiveram bastante sucesso, que não foram impressas, mas que foram representadas. Por exemplo, O Avarento foi representado duas vezes em 1768, mas não foi publicado antes de 1787, muito tempo depois de Pombal ter sido afastado do poder e de ter morrido; O “Bourgeois gentilhomme” teve uma representação em 1769; A Escola de Mulheres foi representada em 1768, mas não impressa antes de 1772; “Les Fourberies de Scapin” já em 1778; “O Doente Imaginário” foi representado em 1768 mas não foi publicado antes de 1774.

Portanto, há uma série de representações de que sabemos muito pouca coisa, muitas vezes não sabemos nem quem foram os tradutores, nem onde estão os textos. Alguns sobreviveram mas nem todos os manuscritos. Só temos impressões mais tardias.

É verdade que as peças mais polémicas, como “O Misantropo”, dizem que foi representado mas não vi em nenhum outro lado uma alusão a essa representação, portanto, não sei se foi mesmo representado. Dizem que foi traduzido em 1774 mas, na verdade, não se tem texto antes do século XIX. “Monsieur de Pourceaugnac” foi traduzido e proibido. Há uma série de textos mais pesados em termos de política ou polémica social que não tiveram aceitação da Real Mesa Censória, mas alguns textos foram representados.

“O Avarento” logicamente foi representado porque é um carácter cómico, um carácter ridículo, um carácter que já é uma caricatura desde os trovadores, desde a Idade Média, portanto, “O Avarento” não representa um perigo. O “Bourgeois gentilhomme” também não representa um perigo.

Agora, “L’Ecole des Femmes”, a representação está bem mas a impressão é outra coisa, não se imprime. As “Fourberies de Scapin” foi depois de Pombal. “Le Malade Imaginaire” foi representado mas, cuidado, fala muito de medicina e no momento em que Pombal estava a fazer a reforma dos estudos de medicina na Universidade de Coimbra era perigoso falar de medicina, portanto, pode-se representar, mas não se pode imprimir.

Ou seja, há muitas facetas diferentes da obra de Molière em Portugal em função dos temas apresentados e em função do contexto político e social e inclusive educacional.

No seu livro diz que D. João é certamente a comédia de Molière mais complexa e mais grave porque aborda os próprios fundamentos da sociedade. Quer explicar-nos porquê?

Da sociedade ocidental católica. Porque D. João não representa esse homem que se quer um futuro pai de família, representante de uma autoridade, de uma sociedade que se renova, que se modela em função de regras morais, etc. O D. João é o contrário do que se espera numa sociedade católica bem regulamentada. Não quer reproduzir-se, não quer satisfazer-se ao papel de marido e de pai, nem de filho - aliás, com o próprio pai mostra-se o pior dos hipócritas e mostra-se extremamente depreciativo. D. João é o contrário do homem que pode sustentar uma família e reproduzir-se e produzir uma sociedade cada vez melhor. É exactamente o contrário. É o anti-homem moral e anti-homem religioso também. O facto de se rir do céu é inconcebível em Portugal.

Porque é que D. João continua a ser um texto absolutamente contemporâneo? O que é que faz a universalidade do mito donjuanesco?

É uma questão que merecia pelo menos três horas de resposta e até nem sei se teria uma resposta. É complicado tentar apreender essa personagem. É uma personagem volátil, é uma personagem que tem tantas possibilidades de ser compreendida que é impossível dar uma definição de D. João. É impossível.

É por isso que, com certeza, foi D. João que mais permitiu derramar tinta por parte dos críticos literários porque realmente é difícil definir D. João. É por isso, aliás, que é uma personagem universal porque ainda hoje os Dom João existem, de várias formas, através de pessoas sem moral religiosa, através de pessoas que gostam de ir atrás de mulheres mas que nunca fixam um amor por uma mulher. Ou, pior ainda, pessoas que não amam as mulheres porque eu acho que D. João, dizendo que ama todas as mulheres, na verdade não ama nenhuma, ama o amor, ama-se a si próprio, ama o seu próprio prazer, mas amar as mulheres nunca. Ou então, eu não compreendi nada.

Enfim, de qualquer forma o D. João é uma personagem que é multifacetada e que tem esse poder de existir ainda hoje de diversas formas e até nas suas versões femininas. Há Donas Joanas porque também existe a vertente feminina de Dom João, inclusive na literatura. Portanto, continua a interrogar porque vai muito além do amor à mulher.

É por isso que é interessante porque, para mim, D. João está muito mais ligado à morte do que à mulher, é a minha percepção. É uma personagem que vai para a morte, procurando caminhos diferentes de prazer ou ascetismo, em certos casos, mas que vai para a morte. É uma personagem extremamente lúgubre. Eu tenho dificuldade em dizer que é uma comédia. É uma comédia na medida em que Esganarelo faz rir a plateia mas não é uma comédia porque, de facto, essa personagem é uma personagem fundamentalmente sombria, fundamentalmente ligada à morte, que corre para a morte. É a minha visão pessoal da personagem.

Ou seja, foi preciso esperar o século XX para termos representações de Molière e apenas depois da ditadura?

Houve uma série de traduções, a partir do século XX, em 1915, mas representações acho que não. Tenho mais dificuldade em responder porque não trabalhei muito no século XX. O que eu sei é que realmente, sim, Molière começou a ser redescoberto depois da Revolução dos Cravos, com certeza.

Também por razões políticas? Por ser um autor que perturba e que é revolucionário?

Claro, é evidente, é evidente. Molière tem muitas personagens que podem tirar o sossego da família e, portanto, na ditadura salazarista isso não podia ser aceite socialmente.

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