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Artes

Molière expôs "fracturas que abrem caminho às mais graves aventuras autoritárias”

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Molière "é um autor político" e expôs "fracturas que abrem caminho às mais graves aventuras autoritárias”, seja no século XVII seja no século XXI. O alerta é deixado pelo encenador e realizador francês Serge Abramovici, conhecido como Saguenail, e pela poetisa, tradutora e artista visual portuguesa Regina Guimarães que receberam a RFI, no Porto, para falar sobre os 400 anos do nascimento do dramaturgo. 

Cartaz de "Tartufo", encenado por Saguenail na Companhia	de Teatro	de Braga, em 1998.
Cartaz de "Tartufo", encenado por Saguenail na Companhia de Teatro de Braga, em 1998. © Carina Branco/RFI
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Estamos no Porto. A entrevista acontece numa sala repleta de obras de arte: desenhos, gravuras, pinturas, cartazes, pedaços de uma vida artística que continua durante a conversa. A escritora borda um desenho enquanto discorre sobre Molière, o teatro, a tradução, o MeToo, as mulheres, a arte, a vida. À sua frente, o companheiro, Saguenail, um francês que adoptou o Porto há muitos anos.

A França celebra os 400 anos do nascimento de Molière em 2022 e esse foi o pretexto para conhecer um dos casais artísticos mais emblemáticos da cidade. Antigos professores universitários, ele, Saguenail, encenou "Tartufo" nos anos 90, em Braga, num texto traduzido por ela, Regina Guimarães, escritora e poeta que também traduziu “As Preciosas Ridículas”.

Para encenar “Tartufo”, Saguenail pediu “uma tradução que não fosse em verso mas também não propriamente em prosa”. Ou seja, “uma tradução em que, de vez em quando,  as pessoas desatassem a rimar e era como se ficassem presas numa espécie de jogo, de armadilha, de jogo social da versificação”, recorda Regina Guimarães, cujo texto foi novamente usado, em 2021 pelo encenador Carlos J. Pessoa do Teatro da Garagem.

Saguenail começa por lembrar que “Molière escreveu algumas peças em prosa e algumas em verso e o verso francês quase que acarreta uma certa dicção, uma certa declamação”. Por isso, pediu à companheira para traduzir Tartufo “numa prosa com rimas internas para tentar escapar a essa declamação e tornar o texto mais íntimo para os actores”.

Quanto às Preciosas Ridículas, a tradução começou com uma legendagem para a peça francesa que ia ser representada no Teatro Nacional São João, mas acabou por ser editado um livro.

Obviamente que Molière é um autor interessante de se traduzir, mas não posso considerar que tenha sido um grande desafio de tradução. Enquanto tradutora dramática fiz coisas bastante mais complicadas a partir do francês”, explica Regina Guimarães. Como as peças de Molière pretendem, à partida, ser comédias, ainda que “com o humor se possa tratar das coisas mais graves”, a escritora sublinha que o objectivo do dramaturgo não era “fazer uma construção linguística impenetrável” e que há “um lado muito imediato” no texto que o faz resistir 350 anos depois com “ecos na sociedade” de hoje. “Por isso é que nós ainda conseguimos rir com coisas que já não se passam da mesma maneira na nossa sociedade, mas aquilo é tão bem feito que nós continuamos a rir delas.”

Até que ponto todos somos Tartufos e até que ponto nos deixam ser Tartufos? Saguenail encenou o Tartufo, nos anos 90, como uma certa metáfora do “elevador social” ou da falta dele. O encenador considerou que “o hipócrita não é o Tartufo”, mas a família onde ele vai parar, “um meio de total hipocrisia” em que “ele vem de fora e não conhece as regras do jogo”. Regina Guimarães acrescenta que “a sociedade não aceita Tartufos” e “o que acontece ali é que há uma espécie de arrivista que acaba por ser denunciado e o próprio Rei chuta o arrivista para canto para proteger a paz social”.

Não é questão de [o público] se identificar com o Tartufo. é reconhecer a parte de ‘tartufaria’ que o jogo social implica e isso tem um eco até hoje (...) Num contexto português - em que felizmente o elevador social funcionou - os velhos senhores pretendem ter mais direito a ocupar um lugar de proeminência na escala social do que alguém que se tornou rico porque fez fortuna de uma maneira qualquer. Existe uma profunda desconfiança em relação a todos os ‘outsiders’, aos que vêm de fora. Quem pretende subir no elevador social, é obrigado à 'tartufaria'. Não tem outra hipótese”, explica a antiga professora universitária.

Para a cenografia, Saguenail recorreu a grandes espelhos e as personagens estavam constantemente a contemplar-se. De resto, havia cadeiras e sofás, roupas que poderiam ser vestidas hoje e uma clara distanciação de qualquer reconstituição histórica ou “ideia museológica”.

O cartaz da peça, que foi representada numa das cidades tradicionalmente mais católica em Portugal, Braga, apresentava um Cristo crucificado, num claro objectivo de provocação. “O que se aplica ao Tartufo é que no fim ele é crucificado, depois de ter sido adulado”, explica Regina Guimarães.

Porém, não se pense que a plateia se solidarize com Tartufo. Há sim “um incómodo” porque o teatro de Molière expõe “os males da sociedade e como eles se introduzem na vida quotidiana das pessoas”. Ou seja, “o que o espectador leva para casa é um incómodo”.

Molière é um autor político, não há dúvida nenhuma, e não é só no Tartufo. Não é por nada que no seu tempo ele foi tão atacado”, diz Saguenail.

Mas há nuances e subtilidades que o tornam ainda mais provocador, acrescenta a companheira. “Ele acaba até por atacar mais as personagens que estão a tentar entrar nesse elevador social, ou seja, personagens que se poderiam conotar com a classe burguesa em ascensão lenta. Ele não ataca os mais poderosos. Ele ataca aqueles que pretendem imitar os mais poderosos e isso é muito poderoso porque são pessoas que virtualmente não vão mudar o mundo, mas vão perpetuar as regras que regem um mundo em que existem os da mó de cima e os da mó de baixo. E isso é muito forte.

Ao fazê-lo, Molière expõe "feridas sociais que vão perdurar no tempo” e são essas “fracturas que vão abrir caminho às mais graves aventuras autoritárias”, seja no século XVII seja no século XXI. “Porque é muito fácil tomar o poder quando se perpetua esta coisa dos da mó de cima e da mó de baixo e que, a certa altura, os da mó de baixo estão tão tão tão tão tão esmagadinhos e os da mó de cima estão tão tão tão tão tão longe dos da mó de baixo e estão tão metidos nas suas mitologias que depois há uma espécie de diálogo de surdos.” “É por isso que Molière ainda hoje é ouvido”, sentencia a tradutora.

Quanto à peça “As Preciosas Ridículas”, podem-se ler ecos na era do MeToo: “É exactamente a mesma coisa que o Tartufo. Há um problema de mudar de estatuto, mas esse mudar de estatuto passa não por uma rejeição total e absoluta do mundo em que as mulheres são criadas e educadas e formatadas. Não, é adoptar para si determinadas qualidades que elas não inventaram, por exemplo, o preciosismo. Portanto, precisamente na era do MeToo, eu acho que as mulheres têm de se preocupar com a quantidade de porcarias que engolem para serem aceites  dentro desta sociedade em que as regras continuam  a ser ditadas pelos homens.

Se Molière hoje ainda faz sentido é porque às encenações históricas podem-se contrapor encenações actualizadas porque o Molière é actualizável sem alterar uma palavra”, conclui Saguenail, com Regina Guimarães a terminar dizendo que “o trabalho do encenador é fazer as palavras atravessar o tempo e o espaço”.

Oiça aqui a entrevista:

19:50

Entrevista a Regina Guimarães e Seguenail

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