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Filho da emigração homenageia “a odisseia” dos portugueses

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O livro “Une Odyssée Portugaise (Presque Ordinaire)” conta a história de um homem e, através dele, de milhares de portugueses que deixaram o país durante a ditadura. O seu autor é Mário Queda Gomes que transforma o pai num herói de carne e osso: um homem do povo que passou a infância numa aldeia portuguesa perdida, pequena e mesquinha, na década de 50, que começa a trabalhar em criança e cujas aventuras em busca de uma vida melhor o levam para Lisboa, Angola e França. Oiça aqui a entrevista.

Mário Queda Gomes, Autor de "Une Odyssée Portugaise (Presque Ordinaire). Paris, 25 de Fevereiro de 2023.
Mário Queda Gomes, Autor de "Une Odyssée Portugaise (Presque Ordinaire). Paris, 25 de Fevereiro de 2023. © Carina Branco/RFI
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RFI: "O Mário veste a personagem do seu pai, Carlos, e conta a história da vida dele como quem dá um murro na mesa e no estômago. Porque é que decidiu escrever este livro?"

Mário Queda Gomes, Autor de “Une Odyssée Portugaise (Presque Ordinaire)”: "São histórias que eu ouço desde pequeno à mesa, ao domingo. O meu pai conta histórias de quando era criança na Beira Alta, de quando começou a trabalhar em Lisboa e, mais tarde, quando chegou a Angola e quando chegou à França em 1975. São aventuras. Quando leio, gosto de livros com aventura, com humor, com uma parte cómica. Eu achei que a história do meu pai era perfeita para ter um livro com muita aventura e humor."

"Porque é que o livro se chama 'Uma Odisseia Portuguesa (Quase Normal)'?"

"Foi complicado encontrar o título certo. Primeiro chamava-se “Le Roman de Carlos”, mas a editora não gostou e tivemos que pensar num outro título. Este título, “Uma Odisseia Portuguesa”, abre o campo de possibilidades. Em vez de focar na história no meu pai, a ideia era focar na história de milhares de portugueses que viveram também a mesma aventura. E, porque não também - porque, hoje em dia, a imigração continua a ser um tema de actualidade - através do meu pai falar dos portugueses, mas também de todos as pessoas que um dia deixaram o país para vir, por exemplo, para França."

"E porque é que assumiu a pele do seu pai enquanto narrador?"

"Isso também foi uma escolha bastante natural porque eu adoro a maneira como o meu pai conta histórias. Eu tentei reproduzir um pouco do talento oral do meu pai. Quando ele conta essas misérias, ele põe o pessoal a rir, portanto, eu tentei, quando escrevi, reproduzir essa maneira de falar muito portuguesa e de retratar o passado do meu pai mas com humor."

"Há muito sarcasmo a acompanhar relatos de violência de pais contra filhos, de homens contra mulheres, de crianças contra crianças, de vizinhos contra vizinhos, de portugueses racistas e machistas contra angolanos e angolanas, de portugueses contra os retornados, de franceses contra os portugueses, etc, etc. E, às vezes, fica-se com um amargo na boca e pensa-se: será que ele está a denunciar ou a justificar?..."

"Essa foi a parte complicada para ter ali um equilíbrio, para tentar retratar aquilo que é a realidade ou que foi a realidade. Essa foi a parte complicada, de facto, porque os portugueses em Angola não foi uma missão filantrópica. Ao mesmo tempo, eu sinto que quando o meu pai fala de Angola fala com nostalgia, que ele gostava mesmo de Angola. São os mais belos anos da vida dele quando estava em Angola, mesmo na tropa, gostou também dessa fase da vida dele. Foi essa a dificuldade, de arranjar ali um equilíbrio para denunciar, mas com ironia. Ou seja, dizer por vezes o contrário daquilo que se pensa, mas acabar por dizer aquilo que eu pensava através do meu pai e outras personagens."

"Faz questão de misturar referências bíblicas, ditados populares portugueses, figuras dos mitos do Império, referências musicais e literárias portuguesas. Há, também, palavrões e uma linguagem assumidamente coloquial. Escreve em francês, mas as referências e os insultos são em português. Porquê este cruzamento de registos?"

"Primeiro, porque gosto muito da cultura portuguesa. Eu sou professor de português aqui em França e tenho essa missão de, de certa forma, promover a cultura portuguesa junto dos meus alunos. Quando escrevi o livro, acho que guardei essa mentalidade de tentar promover aquilo que é nosso, português, e escrevi em francês porque a ideia também é de se promover a história de Portugal, aquilo que foi o percurso de muitos portugueses antes de chegar à França, junto de um público francês.

Espero que que este livro também chegue às mãos de um público francês porque também fiz um trabalho com a língua francesa. Tentei não escrever de maneira clássica, tentei criar um estilo novo. Eu pensava o livro em português e escrevia em francês. Essa foi a minha linha de escrita: pensar em português, escrever em francês. E foi uma pequena ginástica que eu tive que fazer no início, mas depois consegui ter aquela dinâmica e é um encontro entre a cultura francesa e portuguesa."

"No livro, o Mário não poupa nada, nem ninguém, muito menos a própria família. Comecemos com a infância do narrador, Carlos, na verdade, o seu pai.  Ele fala de uma aldeia mesquinha, “Lobras”, que descreve como “o fim do mundo”; conta que o pai dele quase matou a esposa com uma sova; que a mãe alcoólica Maria da Paixão preferia comprar vinho do que alimentar os filhos; que a professora primária dona Arminda tinha como método de ensino dar reguadas na cabeça dos meninos; que não teve direito a uma infância e que teve de deixar a escola para trabalhar; que o tio quase morria numa espécie de ritual de bruxaria, etc. Foi o seu pai que lhe contou? Ele acompanhou-o na escrita?"

"Sim, exactamente. São histórias que eu ouço desde pequeno. Quando o meu pai contava essas histórias à mesa, eu ficava fascinado com aquelas histórias porque eu nasci em 1979, em França, no conforto, num país com uma democracia consolidada, uma grande potência mundial, portanto, para mim, ele era um livro. Era um livro de aventuras quando o meu pai contava as histórias. Essas histórias são verdadeiras e quando eu quis escrever um livro essa história, enfim, havia tanta aventura para contar que era só recolher o testemunho do meu pai! Tentar, claro, fazer o meu trabalho de autor e fazer um livro com uma dinâmica, com uma aventura em todas as páginas e, também, reproduzir a forma de contar do meu pai que,  mesmo quando conta as misérias, põe o público a rir. As pessoas que estavam à mesa riam das misérias do meu pai."

"O Mário teve o cuidado de alterar alguns nomes e mesmo a própria localidade, 'Lobras'…"

"Exacto. O meu pai teve uma infância um pouco complicada e eu quis trocar o nome da aldeia porque digo muito mal daquela aldeia e não queria prejudicar as pessoas que moram lá. É uma aldeia da Beira Alta. E não digo mais…"

"Farto de ser explorado em Lisboa, ainda adolescente, Carlos decide mandar-se para Luanda e pede emprestado dinheiro a uma prima que lá estava para embarcar. Em Angola, é novamente explorado e depois chega à idade para ir lutar para o mato contra os que lutavam pela sua independência. Você mostra a guerra do ponto de vista do seu pai, um branco, mas também tenta denunciar a desproporção de forças e os crimes hediondos que os portugueses cometiam, não é?"

"Exactamente. Ainda por cima, o meu pai conta aquilo que quer. Tentei contar as histórias vistas pelo meu pai, mas também quis dar um retrato de uma guerra que é sempre uma guerra. As guerras são sempre sujas. Tentei também contar esse ponto de vista e conseguir, mesmo através da sua personagem, dar uma mensagem pessoal.  Arranjar um equilíbrio entre aquilo que era a realidade vista pelo meu pai, mas também a minha parte de autor de não dar a imagem de uma guerra bonita e perfeita. Nenhuma guerra é assim."

"A seguir conta que os portugueses nas antigas colónias se sentiram completamente abandonados depois da Revolução dos Cravos e que era preciso sobreviver ao que chamou de 'apocalipse colonial' com a vingança das pessoas que durante séculos foram escravizadas e depois colonizadas. Ainda que fosse assim que o seu pai viveu isto, contar esta história é mandar uma pedra para o charco ou é perpetuar uma narrativa, entre aspas, branca?"

"É uma boa pergunta. Eu tentei ser fiel ao testemunho do meu pai. Ele viveu essa fase da história que foi a derrocada portuguesa nos anos 75. Eu acho que os portugueses viveram uma situação complicada porque eu quando escrevi experimentei um bocadinho daquilo que foi a vida dos portugueses, escrevendo. De certa forma, eu acho que eles viveram ali uns momentos complicados, mesmo de sofrimento, em que se sentiram abandonados pelo Estado português. Depois, é histórico: quando chegaram a Portugal não havia emprego, não havia alojamentos, foi também por isso que eles foram para França. Nessa parte, eu acho que simplesmente fui fiel àquilo que disse o meu pai e, de certa forma, houve uma compaixão também com os portugueses que viveram uma situação bastante complicada e se sentiram realmente abandonados."

"É justamente outro tema que aborda sem tabus: a discriminação dos retornados. Fala de cerca de 500.000 pessoas das antigas colónias luso-africanas que regressam a Portugal e lemos 'Percebemos logo que não éramos bem-vindos no nosso país'. Relatar isto é corrigir uma injustiça?"

"Sim. É interessante porque falei da aventura, da boa disposição do meu pai a contar as histórias, mas quando leio um romance também gosto de aprender alguma coisa.  Acho que neste romance há muita História - eu tentei reproduzir o contexto da época - mas também é um livro em que tentei pôr emoções e sente-se essa fase complicada da derrocada portuguesa depois da Revolução dos Cravos e depois da independência da África Lusófona. A ideia foi recriar essa situação que os portugueses viveram, muitos portugueses, não foi só o meu pai. Através do meu pai é o exemplo de muitos portugueses que estiveram durante anos em Angola, por exemplo, e chegam a Portugal e Portugal não tem condições para receber os filhos da nação. E foram empurrados para fora. Acho que isso é uma realidade e foi uma opção narrativa de escrever o livro através do olhar do meu pai, reproduzir aquilo que é a opinião do meu pai e a vivência do meu pai naquela altura."

"E também humanizar um tema que finalmente não é assim tão falado?"

"Exactamente. É um livro que fala de uma altura de Portugal e de um português e através desse português falo de muitos portugueses, mas espero também falar de muita gente hoje em dia que foge do seu país para chegar à França ou outros países e dar um rosto a essa gente, uma identidade, contando esse percurso antes de chegar a França. O percurso que foi de milhares de portugueses, neste caso.

Não foi um percurso fácil, são heróis quase normais. Foi numa conversa com a minha editora: o meu pai é quase uma figura banal porque, naquela altura, todos os portugueses viveram grandes aventuras porque foram empurrados pela História para fora do país. O meu pai foi para Angola, outros vieram a salto até França ou até à Alemanha. Algumas personagens no livro vivem essa parte. Tentei escrever um livro mais universal para não ser só um livro para portugueses. Não é um livro só para portugueses."

"Mas é um livro em homenagem ao seu pai?"

"Sim, mas como dizia o Miguel Torga, o universal é o local sem os muros. Qualquer coisa assim. Eu tentei falar do meu pai, de Portugal, mas sem os muros. Escrevi em francês, gostava que o público francês também lesse o livro e pudesse ver o que foi a vida dos portugueses antes de chegarem, mas também tentei humanizar o meu pai o máximo possível e esse percurso dos portugueses também."

"Carlos vai, então, para França com a esposa e aí vemos outros relatos que os emigrantes portugueses reconhecem, sem dúvida. Podemos ler, a dada altura, que 'o tempo dos bairros de lata acabou em 1972, mesmo se muitos olham os portugueses como animais selvagens, vindos de fora, pobres estrangeiros sem valor, portugueses da ponta da Europa, a verdade é que deixámos a nossa condição de ratos'. O narrador descreve, também, como alugou a primeira casa insalubre, arrendada pelo próprio patrão que, como tantos outros patrões, se aproveitava da miséria dos portugueses. Entre outros trabalhos, ele acaba por  'conduzir o exército dos invisíveis sem papéis, de escritório em escritório, para limpar o Val-de-Marne das suas imundícies'. Este livro é, também, um ajuste de contas?"

"A minha editora acha que eu fui simpático demais nessa parte final! Mas o meu pai tem uma boa imagem da França. Eu acho que não há mais patriótico do que o meu pai em relação à França. Eu acho que, às vezes, os franceses precisavam de ir para fora viver outras experiências para saberem a sorte que têm de estar em França. O meu pai sempre teve essa mensagem junto dos filhos que é a de que estar em França é uma sorte. Ele tem uma imagem positiva. Mesmo assim, quando chegou aqui ele não tinha dinheiro, não sabia falar a língua francesa e teve que se adaptar. Acho que essa é uma das grandes qualidades reconhecidas ao povo português que chegou a França, os próprios franceses reconhecem que os portugueses têm essa capacidade de se adaptarem, essa coragem de agarrarem qualquer emprego, qualquer trabalho."

"Isso também deu muito jeito aos franceses…"

"Claro, mas eu tentei, mesmo assim, mostrar que os portugueses foram aqueles heróis quase normais, comuns, porque chegaram aqui, as condições não eram fáceis. Eu conto no livro: o primeiro casaco que a minha mãe comprou foi a crédito; o meu pai teve que comprar uma bicicleta em segunda mão. Esta é a história de muitos portugueses. Não foram só os meus pais. Para mim, como eu dizia há bocadinho, que nasci em 1979 no conforto, são vidas paralelas, não tem nada a ver com a minha vivência."

"Também retrata a coragem das mulheres que, com duas crianças nos braços, não temem em 'dar o salto' e 'sair pela porta pequena e clandestinamente' de Portugal para França. Mas, ao mesmo tempo, desmonta - ou não? - o machismo do 'Rodrigo de França' a emigrar primeiro e, só depois de sair do bairro de lata de Champigny-sur-Marne, é que diz à esposa para se juntar a ele porque já precisava de alguém para se ocupar da casa e da cozinha…"

"Sim. Peço desculpa ao meu tio! Troquei o nome de propósito. Mas é que os portugueses, na altura, primeiro vinha o homem arranjar trabalho, um emprego e uma casa. Depois, só depois, é que vinha o resto da família. A sociedade naquela altura - ainda é um bocado, mas as coisas estão a mudar - era machista e era a lógica do casal do Rodrigo."

"O seu pai e a sua mãe acompanharam a escrita do livro, já percebemos, mas já o leram? Expor assim a família, reabre ou cura feridas?"

"O meu pai não tem qualquer problema com isso. Eu quando fui escrevendo o livro, já conhecia essas histórias, mas quando uma pessoa quer escrever, depois precisa de conteúdo e coisas mais factuais. Eu passei muitas horas, durante esses três anos de escrita, com o meu pai, em Portugal ou aqui - eles moram em Boissy Saint-Léger - à mesa, eu a fazer perguntas, ele a responder, eu a tomar apontamentos... Ele não tem qualquer problema com isso, em expor a vida, se calhar há aqui episódios que eu próprio não assumiria e que ele assume. Ele já leu o livro e o comentário dele foi: 'Tive mesmo uma infância de merda!'. Ele vive o livro como se revivesse o passado, não com o olhar crítico-literário."

"Ficou emocionado?"

"Sim, acho que sim. Dediquei o livro ao meu pai e só essa parte já foi bonita porque ele ficou emocionado. É uma homenagem ao meu pai e àquelas histórias que eu ouvi quando era pequeno, que me comoviam e que eu achava mesmo que eram uma aventura de loucos."

"Para terminar, fale-nos um pouco de si. Este é o segundo livro publicado em França. Em 2018, publicou 'Les Passages Obligés'. Que ambições e que espaço é que a escrita tem para si?"

"Eu sou professor perto de Rouen, professor de português, e sempre escrevi durante muitos anos para a minha gaveta. Escrevia e depois arrumava na gaveta ou não terminava os meus projectos. Chegou uma altura em que pensei que tinha de terminar os meus projectos e assumir – porque publicar é quase o contrário de escrever, publicar é expor o nosso trabalho. Havia duas ou três histórias que eu gostava de escrever e de publicar. Esta foi uma delas. São histórias que vêm de longe. Já passei os 40 anos e estou a assumir aquilo que escrevo, pela segunda vez, porque já escrevi um livro em 2018 chamado 'Les Passages Obligés' em que conto o meu dia-a-dia de professor com os meus alunos também baseado em factos reais."

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