Acesso ao principal conteúdo
Em directo da redacção

Cartas de amor entre Albert Camus e Maria Casarès voltam a Avignon

Publicado a:

A actriz portuguesa Teresa Ovídio está pelo terceiro ano consecutivo no Festival OFF Avignon com a peça “Camus-Casarès, une géographie amoureuse”. O espectáculo conta a história de amor entre o escritor Albert Camus e a actriz Maria Casarès, a partir das 865 cartas que eles trocaram entre 1944 e 1959. A adaptação ao teatro é de Teresa Ovídio e Jean-Marie Galey, a mesma dupla que incarna esta história encenada por Elisabeth Chailloux.

A actriz portuguesa Teresa Ovídio em Avignon, 9 de Julho de 2023.
A actriz portuguesa Teresa Ovídio em Avignon, 9 de Julho de 2023. © Carina Branco/RFI
Publicidade

É uma história de amor entre duas lendas do século XX em França. “Camus-Casarès, Uma geografia amorosa” é uma adaptação ao teatro da correspondência entre o escritor Albert Camus e a actriz Maria Casarès entre 1944 e 1959. Foi a 6 de Junho de 1944, dia do desembarque na Normandia, na Segunda Guerra Mundial, que Albert Camus conheceu Maria Casarès. Seguiram-se meses de uma relação que ela termina quando a esposa do escritor regressa a França. Quatro anos depois, encontram-se em Paris e a história de amor retoma com cartas que só terminam no dia em que Camus morre num acidente de carro. O espectáculo está no Festival OFF Avignon até 29 de Julho.

RFI: Quer contar-nos um pouco desta história?

Teresa Ovídio, Actriz e co-autora da peça “Camus, Casarès - Uma geografia amorosa”: São 15 anos de amor. Começou em 1944 com o encontro deles. Picasso estava a criar uma peça nessa altura. A Maria estava presente no público e ficou fascinada com ele, mas sem saber que era ele, e depois encontraram-se nessa noite e foi um amor logo de seguida. Depois, houve uma separação porque a mulher dele estava na Argélia e vinha ter com ele depois da guerra. A Maria não pôde continuar com ele. Não conseguia. E voltaram-se a encontrar em 1948, dia 6 de Junho, mesma data, no mesmo lugar em Paris e desde essa altura nunca mais se separaram até ao acidente.

A Teresa Ovídio criou este espectáculo com Jean-Marie Galey e ambos incarnam Albert Camus e Maria Casarès em palco. Porquê adaptar esta correspondência a uma peça de teatro e levá-la a palco?

Já adaptámos e representámos peças juntos. Eu e o Jean-Marie Galey conhecemo-nos quando representámos “Ay Carmela” que foi uma criação que representámos 1.000 vezes. Quando a correspondência [entre Camus e Casarès] saiu, comprei logo e disse-lhe que era para nós. Senti logo perfeitamente. Estivemos a trabalhar durante dois anos e meio, a adaptar, a ler as oitocentas e setenta e tal cartas separadas, a escolher, a ler também os textos da Maria para fazer uma peça que não fosse qualquer coisa epistolar, mas uma peça entre os dois, em que o Albert Camus e a Maria Casarès sejam as personagens que estejam a comunicar uma com a outra.

Como foi escolher as cartas e adaptá-las ao teatro? Eram tantas cartas. Quantas cartas ficaram no final?

Escolhemos talvez umas 150 cartas, também fomos aos “Carnets” de Camus e também a textos da Maria. O que nós fizemos foi ler cada um, escolher cada um, e depois comparar a nossa escolha. E havia muita coincidência, outras vezes não, portanto, discutíamos. Foi, por isso, que demorou dois anos e meio.

São duas personalidades marcantes e que têm uma história de amor trágica e fulgurante Ela é actriz. Ele é dramaturgo, romancista, filósofo de renome. Como é que se incarna duas lendas?

A primeira coisa a fazer é não tentar imitar. O mais importante efectivamente é incarnar, é deixar que venham naturalmente sem pensar no físico. Só pensando mesmo na maneira como eles podiam estar e o que é que eles sentiam. Entre mim e o Jean-Marie Galey como já trabalhámos juntos muitas vezes, há uma facilidade entre nós para representar e estarmos juntos em cena. Eu não conhecia a Maria Casarès. Comecei a ver o que é que ela fazia. Era uma mulher extraordinária é também uma escritora inacreditável porque foi com as cartas que se pôde conhecer essa escritora que ela era também e essa paixão que ela tinha... São dois seres completamente opostos, ela é o fogo, ele era água, ela deu-lhe uma vida à escrita dele, ele deu-lhe um fogo para a representação. E acho que é uma maneira muito natural de podermos representar os dois. Eu e ele.

As cartas revelam um Camus ciumento, infiel, atormentado, machista e uma Casarès 10 anos mais nova, que sonha com o seu príncipe, mas que parece livre e independente, alegre, que sabe que é a amante e não a esposa... Há aqui alguma mensagem que se quer passar aos homens e mulheres do século XXI?

Sinceramente, eu acho que nesta história de amor, para mim, é o amor em todo o sentido do amor. É um amor que é mais elevado do que o quotidiano. É um amor que representa aquele amor que vai acima de tudo o que é ciúme e invejas e pequenas coisas. Aquelas coisas medíocres do dia-a-dia. Eles representam outra coisa. Para eles, a fidelidade - que é uma palavra que até parece um bocado estranha porque sabemos que o Camus era alguém que gostava imenso de andar com umas e com outras e teve algumas aventuras - mas ultrapassaram isso os dois. Ele diz “amar o nosso amor e não cada um”. Gostam deles juntos. Eu não estou a gostar de ti porque tu me amas e não estou a gostar do outro porque ele me ama mas gostamos dos dois juntos. E foi isso que alcançaram. É muito difícil ter um amor assim. É um amor muito difícil de termos, é riquíssimo e acho que se aprende imenso.

No palco, há objectos e sons que nos situam temporalmente. Além de contar uma história de amor, a peça conta também uma época. Como é que construíram esse espaço cultural?

Era muito importante para nós situar também a parte política e histórica. Para já, porque o Camus era um grande filósofo? Houve a Segunda Guerra Mundial, houve a guerra na Argélia. Houve aquela paixão que ele teve pela Argélia, pela mãe que estava na Argélia também. A parte política na história é muito importante. Nós tentámos situar o momento exacto de cada carta. E as cartas quando se escrevem - que é uma coisa que hoje em dia já não há - há qualquer coisa muito profunda e rica que é bom sentir de novo e fazer de vez em quando. Na escrita de uma carta, o tempo é completamente diferente. Às vezes demoravam duas semanas a chegar. Às vezes uma carta chegava mais depressa ao Camus e ela estava à espera do retorno. Demoravam, às vezes, três dias a escrever. E o que é que se estava a passar na altura em que isso estava a escrever? É muito importante saber. Tentàmos realmente situar o que se passava em 1944, em 1950 até 1959 e a evolução de cada um na sua carreira pessoal e profissional também. O Camus, com a mulher dele que nunca se pôde separar, era outra época - a culpabilidade dele, a força que a Maria Casarès lhe deu em relação à escrita, em relação a tudo o que podia existir entre eles. Ele era doente, tinha tuberculose desde miúdo. A morte estava muito próxima dele e a Maria dava-lhe uma vida enorme.

Por isso falam tanto de morte na peça?

Ele estavam sempre a pensar na morte e a Maria dava-lhe uma vida, uma força inacreditável e ele, em retorno, dava-lhe uma energia mesmo na representação, em cena. O teatro salvou-a porque depois da morte dele representar foi tudo o que ela fez. Salvou-a mesmo no dia-a-dia para ficar sem ele ausente e sempre presente, como ela diz.

A peça esteve em Avignon em 2021, em 2022 e agora regressa. A primeira vez que subiu ao palco em Avignon foi com “Ay Carmela” em 1996. O que significa para si Avignon?

Eu adoro Avignon. Tem a parte negativa e positiva. A parte negativa é que se pode sentir que é um supermercado, que é o mercado de teatro, estamos à procura de tudo o que é conclusivo para um contrato futuro, mas é o teatro do mundo de amanhã. Tudo o que se passa no Festival de Avignon hoje, em 2023, é o teatro do ano 2024.  O teatro é o mundo. O teatro é tudo o que nos pode dar como um espelho do que se passa em cada país no mundo presente. É essencial. E também há o facto de poder discutir com as pessoas, poder discutir com o público. Darem a opinião deles, se gostam ou não gostam, não faz mal. É óptimo podermos estar abertos a isso. Quando estamos a representar noutro sítio, em Paris, por exemplo, estamos fechados, há o actor e o público. Aqui não. Aqui falamos e discutimos e aliás eu e Jean-Marieadoramos. Podemos discutir com o público depois das representações e podemos falar e saber o que é que eles pensam. E mesmo aqueles que não conheciam a Maria Casarès e Alberto Camus, tivemos retorno de jovens inacreditáveis, a nível do amor, a nível da inveja, do ciúme, coisas que toda a gente sente e é universal.

A Teresa nasceu e cresceu em Lisboa, foi para Paris estudar teatro aos 18 anos e tem construído a sua carreira em França sobretudo no teatro como actriz e também encenou...

Encenei o Jean-Marie na “Ma Comédie Française”, uma peça que vamos voltar a representar, do livro que ele escreveu - Ma Comédie Française” - dos anos que ele passou na Comédie Française e vamos voltar talvez a representar outra vez.

Ainda assim, também trabalhou em cinema, com o realizador Edgar Pêra, com Joäo Botelho, com Flora Gomes, e na televisão trabalhou, por exemplo, com a realizadora belga Chantal Ackermann e em Portugal participou em duas telenovelas... Mas é sobretudo uma mulher de teatro. É fácil sobreviver e criar um nome entre dois mundos, o lusófono e o francófono?

Devo-lhe dizer sinceramente que eu senti simpatia com a Maria [Casarès] porque é um bocadinho um exílio. Sinto-me sempre estrangeira, com metade da minha vida cá e metade em Portugal. Às  vezes, sinto-me estrangeira também em Portugal. Também me sinto estrangeira aqui. As minhas raízes, nesta altura, eu acho que são mais universais, apesar de sentir a necessidade de voltar a Portugal sempre e tento voltar sempre, tenho a minha família toda lá que adoro porque faz imensa falta e acho que também me alimenta na minha arte e na minha carreira.

É difícil o facto de eu ser portuguesa em França, acho que é um país que, por enquanto, está muito baseado no não ter o sotaque, o francês é francês. Ainda falta um bocado aquela largura que existe já no mundo anglófono em que se pode ter o sotaque. Está-se a entrar um bocadinho, mas um bocadinho difícil de ultrapassar isso cá. Por enquanto. Há sempre o de onde é que venho? Se sou italiana, portuguesa? Faz-me muita falta representar também em Portugal, em português. Fiz telefilmes também em Portugal. O último filme que fiz foi cá [França] com a Isabelle Mergault e que acabou de sair com a Sylvie Testud. Tento realmente estar também na televisão e no cinema. Por enquanto, são dois mundos que parecem separados, mas estão mais juntos do que se imagina. É verdade que eu sem teatro, sinceramente morro. É a minha paixão. Tenho uma companhia de teatro e o facto de poder fazer também projectos que podemos fazer, sem mestre, que podemos fazer sem estar sempre dependente do desejo do outro, é qualquer coisa que realmente dá uma certa liberdade. Mas é verdade que gostaria muito mais que houvesse realmente uma abertura maior a nível de tudo o que é estrangeiro em França, na língua, e o facto também de estar cá e que Portugal não sinta que eu estou longe. Não estou longe, estou ao lado.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.