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Vida em França

Godard "mostrou-nos que o cinema não tem limites"

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Jean Luc Godard morreu esta semana aos 91 anos. O cineasta produziu mais de 100 filmes, em 60 anos de carreira. Jean Luc Godard, o gigante, provocador e prolífico criador de cinema, foi um dos principais nomes da "Nouvelle Vague". O produtor português, Paulo Branco, afirma que Jean-Luc Godard "abriu-nos as portas e mostrou-nos que o cinema não tem limites".

Jean Luc Godard, o realizador franco-suíço, morreu esta semana aos 91 anos. Com mais de 100 filmes, em 60 anos de carreira.
Jean Luc Godard, o realizador franco-suíço, morreu esta semana aos 91 anos. Com mais de 100 filmes, em 60 anos de carreira. Facebook/ Cahiers du Cinéma
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RFI: Jean Luc Godard foi fundador de uma estética e de uma linguagem, cujos ecos ainda se fazem sentir hoje. Que legado deixa Godard?

Paulo Branco: Jean Luc Godard é uma pessoa a quem nós todos devemos tudo. Todos os cineastas, todos os produtores, todas as pessoas que trabalham no cinema, devemos-lhe tudo. Foi ele que, no princípio dos anos 60, nos abriu as portas e nos explicou como o cinema não tem limites. Ele, um dos grandes admiradores do cinema clássico e do cinema de Hollywood, permitiu que nos transformássemos, de uma certa maneira, abrindo-nos as portas para novas linguagens, novos riscos, na maneira de produzir, na maneira de realizar, em tudo. Na nossa visão. É absolutamente fundamental na história do cinema e uma personagem única.

O cinema de Godard caracterizava-se pela mobilidade da câmara, pelos demorados planos-sequências, pela montagem descontínua, pela improvisação e pela tentativa de carregar cada imagem com valores e informações contraditórias...

Sim e sobretudo um olhar. Um olhar que para ele é um olhar ético, um olhar em que o cinema é uma questão de moral, como para toda essa geração e que nos obriga, de uma certa maneira, a uma responsabilidade quando os realizadores filmam, como filmam e o que filmam. Que isso não é impune. É uma das coisas essenciais no cinema moderno e é isso que distingue, se quiser, os grandes filmes dos filmes quase obscenos, como se pode dizer, mesmo não tendo cenas obscenas. O olhar deles é obsceno e é isso que também nos condiciona como cinéfilos. É isso que nos faz ver o cinema como uma verdadeira arte e com a mesma exigência, a mesma atenção, que temos com as outras artes. Isso foi absolutamente essencial no legado dele e que nós todos aproveitámos.

O realizador franco-suíço adoptou inovações narrativas e filmou com a câmara na mão, rompendo com todas as regras até então invioláveis. Qual foi o impacto dessas mudanças no mundo da sétima arte?

Foi imenso! Ainda agora e também, ao mesmo tempo que ele fez isso, chamou-nos à atenção para a grandiosidade do cinema clássico, do cinema de Hollywood e dos grandes filmes, dos grandes cineastas que também ele admirava e que, de uma certa maneira, o inspiraram, dando-lhe o poder e a dimensão que tem. É um pouco o que o James Joyce trouxe à literatura com o Ulisses. É um pouco a mesma coisa. A relação que Jean Luc Godard tinha com o cinema era essa admiração, mas também o trair, entre aspas, todo o legado que ele tinha recebido. É isso que a partir de agora nós, neste momento também faremos. Haverá cineastas que, mais tarde ou mais cedo, também trairão, entre aspas, o legado Jean Luc Godard, de maneira a que o cinema prossiga a sua trajectória. A surpreender-nos sempre.

Jean Luc Godard foi um dos criadores da Nouvelle Vague. Que filmes do realizador mais o marcaram nesta fase?

Eu conheço praticamente toda a obra dele. Tive a sorte de conhecer pessoalmente em 1977 e a partir daí ter, até há muito pouco tempo, uma relação com ele. Não posso dizer que éramos amigos, mas acho que havia, da minha parte, um respeito enorme, uma admiração e da parte dele também, pelo meu trabalho.

Eu sabia que ele via muitos filmes que eu tinha produzido e isso permitia, de vez em quando, diálogos. Logicamente mais monólogos do que diálogos porque eu estaria lá mais para aprender do que para ensinar o que quer que fosse. Tive essa sorte. Qualquer filme dele é um filme que me surpreende. Em qualquer filme dele encontro algo de novo para a minha vivência, não só como pessoa, mas também como cinéfilo. É difícil para mim, mas logicamente que o primeiro filme quando aparece -"À bout de souffle"- foi uma espécie de reviravolta completa naquilo que estávamos habituados a ver. Ele também no próprio cinema dele fez grandes rupturas, mas qualquer filme dele é, para mim, sempre uma fonte inesgotável de aprendizagem.

Após o movimento estudantil do Maio de 68, Godard criou, com Jean-Pierre Goran,  o grupo de cinema Dziga Vertov, em homenagem a um cineasta russo de vanguarda e virou-se para o cinema político. Pode dizer-se que era um realizador que estava em permanente revolução? Um militante?

Não. Ele era uma pessoa que era um cidadão do mundo. Era uma pessoa que sentia o que se passava no mundo. Eu por acaso quando o vi, em 1977, foi para lhe pedir a autorização para passar esses filmes todos relativamente a este período, que ele tinha praticamente deixado de passar ou que não dava autorização. A mim deu-me e eu fiz isso no Action République, em Novembro de 77. Nestes períodos, de certa maneira, ele confunde-se com o colectivo, mas não verdadeiramente. O que lá está é dele. Ele deixava-se ser contestado no interior dos próprios filmes, mas deixou sempre momentos inesquecíveis, mesmo nestes filmes. São filmes mais de ruptura e mais datados no tempo, porém ainda agora impressionam quem os vê.

A figura de Godard era uma figura muito controversa. Adorado e detestado, aliás esta dicotomia era um dos seus traços de personalidade….

Era uma pessoa coerente consigo própria e era uma pessoa, em termos artísticos, com uma enorme inteligência. Essas pessoas, não é uma questão de gostarem, de serem adulados ou detestados. Não é isso. Têm o seu trabalho, têm o seu percurso. Por vezes, há pessoas que deixam de lhes interessar ou pessoas que ele reencontra muitos anos depois. São percursos muito especiais. Não haver esta mediocridade que muitas vezes existe nas relações entre as pessoas, uma vez que há demasiado cinismo e demasiado coisas escondidas. Ele não aceitava isso.

Há alguma deixa de um filme de Godard que lhe tenha ficado na cabeça e que queira partilhar connosco?

Não. Ainda por cima, quase praticamente todas as deixas de Godart, ele foi buscá-las a outros, a maior parte deles a grandes livros. Portanto, se dissesse agora uma deixa de Godard estava não só a citar Godard, mas alguém que o próprio Godard cita. Nisso ele era um génio absoluto.

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