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Vida em França

"Misericórdia": Última obra de Lídia Jorge já no mercado francófono

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A editora Métailié acaba de lançar a tradução francesa de "Misericórdia" da escritora portuguesa Lídia Jorge. A autora esteve na RFI para comentar os ecos entusiastas que o livro tem suscitado, sem descurar a sua ligação a África e a Moçambique.

Lídia Jorge, escritora portuguesa, na RFI a 12 de Setembro de 2023.
Lídia Jorge, escritora portuguesa, na RFI a 12 de Setembro de 2023. © rfi/Miguel Martins
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Temos o grato prazer de acolher na RFI Lídia Jorge para a promoção da sua edição francesa de "Misericórdia", obra publicada pela editora Métailié.

RFI: Nós acompanhamos aqui, grosso modo o último ano de vida da Dona Maria Alberta, residente do Hotel Paraíso, entre 2019 e 2020, num estabelecimento de idosos, ela que acaba por falecer vítima de Covid. Que parte autobiográfica há neste livro ? Já que a narradora, Dona Maria Alberta, é a mãe de uma escritora portuguesa… e eu sei que a senhora perdeu a sua mãe no início da pandemia.

Acaba por ter um papel forte, digamos. No fundo a parte biográfica, vivida, foi aquilo que sustentou a escrita deste livro. Que, aliás, tem um título que foi sugerido, ou pedido, mesmo. Foi uma espécie de encomenda. Que foi feita por aquela que, na vida, se chamou Maria dos Remédios e que, aqui, se transfigura em Dona Alberti. Portanto o que está aqui é um livro que, eu costumo dizer, de ficção, mas com fortes acentos daquilo que, de facto, aconteceu.

A sua mão fazia questão em que se desse a palavra a estas pessoas, a estes idosos internados em instituições especializadas, para que eles fossem tratados como se estivessem na plenitude da vida, não é ?

Sim, o que acontece no livro, e eu remeto para aquilo que acontece no livro, é que Dona Alberti acaba por ter um papel aglutinador de outras pessoas, de outras personagens, que, no fundo, estão ao lado dela. Porque, tratando-se de alguma coisa que acontece numa casa fechada, portanto, como eles dizem "Um lugar de exílio"... é um espaço absolutamente aberto ao mundo ! Porque, no fundo, dentro desta casa estão pessoas que, pela idade, e, enfim, pela condição física, acabaram por ser postas à margem. Mas não são os únicos marginais que lá estão. 

Fiquei com a impressão de que seria uma ode à liberdade ? Uma pessoa, mesmo debilitada fisicamente... é o caso da dona Maria Alberta. Ela não se pode levantar, não se pode deslocar sozinha. Todavia tem o seu intelecto, o seu pensamento para se evadir, para se projectar, para criar cumplicidades e relações estreitas, por exemplo com o pessoal do Hotel Paraíso, caso da Lilimunde, como também com demais hóspedes, a exemplo da paixão que veio a nutrir pelo sargento João Almeida !

É verdade, porque nós temos a ideia de que, a partir de certa idade, as coisas se apoucam. Que os sentimentos se apoucam, que a vida não tem mais a vivacidade que tinha. A minha experiência é, exactamente, o contrário ! Acho que as pessoas, porque são colocadas perante o desafio do tempo, acabam por engrandecer e por expandir aquilo que são, a parte sentimental. Em geral há uma ideia de que as pessoas idosas funcionam como uma espécie de "uma outra humanidade". Não é, têm, exactamente em tudo os mesmos sentimentos que, naturalmente, se tem. Neste caso é o Hotel Paraíso, onde tudo isto decorre, acaba por ser um palco de batalha ! Digamos da batalha humana, com o que tudo acontece. Não só as memórias de quem lá está, mas também a reacção destas mesmas figuras, em relação àquilo que está a acontecer no mundo. Portanto é um sítio que funciona, como uma espécie de "pára-raios" do tempo, ao contrário daquilo que as pessoas pensam ! Que é um sítio fechado, que não tem vasos comunicantes com o mundo, mas, de facto, não é assim. E, neste caso, que surge e que nasce de uma experiência: as pessoas têm aqui, os personagens têm aqui uma forte vida. Em que, de certa forma, reproduzem tudo aquilo que é uma sociedade completa cá fora.

E, de forma algo despudorada, eu diria ! É um livro também sem tabus onde se abordam, mesmo, os preconceitos que as pessoas podem ter no interior destas instituições. Ou, mesmo, o suposto cinismo de uma mulher determinada em conseguir atingir as suas finalidades, ou que vai mesmo, ao ponto de humilhar a filha que ela pretende moldar à sua maneira, incutindo-lhe, mesmo uma certa forma de escrever !

Acho que interpretou de uma forma muito dura porque eu não interpreto assim ! Ela não tem cinismo, o que ela tem é uma grande ambição ! O que é diferente: ela tem é ambição e fala com a filha com dureza. Porque acha que a filha tem o temperamento muito mais suave, muito mais morno do que propriamente ela. Mas, no fundo, ela está sempre a defendê-la ! E acaba, quando umas quantas mulheres religiosas lhe dizem: "Atenção que os livros da tua filha não prestam para nada !" Porque o importante é a Bíblia, porque é o único livro ditado por Deus ! Ela diz "Não, não, vocês estão completamente enganadas ! Quem escreve os livros da minha filha, ela diz que é "Deus que sopra as palavras para a filha".

Ela aí defende a filha com unhas e dentes !

Até ao fim, portanto, mesmo no final, ela é de uma grande doação ! Porque ela diz "Não venhas mais ver-me para te entregares ao teu trabalho !" Portanto ela dispensa-a. Quer dizer: os actos de amor são muito maiores, digamos, e valem muito mais do que esse combate. Eu diria, mesmo, que até nunca há cinismo da sua parte. O que há é uma exigência ! 

Uma exigência total !

Uma exigência grande ! Como acontece, em geral, os pais terem em relação aos filhos. Que não aceitam que eles não façam uma carreira prodigiosa, querem isso ! Mas a intimidade, o amor e a relação, digamos, materna acaba por ser sempre muito mais forte !

Aqui a noite é uma metáfora da morte: a noite que a vem atormentar, nas suas insónias, para a provocar. Espicaçando o seu interesse pela geografia e os nomes das capitais, por exemplo, que parecem ser uma duas suas maiores áreas de interesse !

Sim, a noite funciona, digamos, como o seu pesadelo. É uma mistura daquilo que é o seu próprio pensamento, consigo mesma já que dona Alberti... uma das características dela é querer ter curiosidade e querer saber do mundo ! Ela está tentando mostrar a si própria mostrar quais são os limites da sua sabedoria. Até que ponto é que ela é capaz de desempenhar um papel no saber geográfico. Agora há uma espécie de aposta que ela faz com a noite, enquanto morte. Porque a noite vai-lhe fazendo perguntas e ameaça-a: "Eu levo-te se tu não souberes !" Mas isso é metafórico ! Porque, no fundo, o que está em causa é dizer: "Quando tu não souberes aquilo de que gostas já não serves para nada !" E ela está pondo à prova que ela serve para alguma coisa, que ela tem uma memória activa, uma memória forte ! E que domina, portanto, um certo conhecimento. É mais uma luta dela com ela, do que, propriamente, uma entidade que signifique o fim.

Vamos falar um pouco da promoção e da saída da edição francesa na editora Métailié. "Misericórdia" que tinha saído já, no ano passado, em Portugal. Qual o acompanhamento que deu à preparação da tradução francesa de Elisabeth Monteiro Rodrigues, que saiu agora nesta editora ? Há escritores que têm um papel bastante interventivo, outros menos. Como é que foi a sua postura em relação à saída desta edição francesa ?

A Elisabeth Monteiro Rodrigues, a tradutora, já tem grandes pergaminhos. Já foi muitas vezes avaliada, ainda que seja uma jovem. E ela, de facto, comportou-se face a este livro de uma maneira extraordinária. Antes de começar a traduzir ela leu vários livros, que ela achou que tinham que ver com o tema deste livro. E só depois começou a traduzir. Depois foi, de facto, exímia porque escreveu muitas vezes, perguntou-me, pediu-me que eu precisasse o sentido de determinadas palavras. Aliás ontem tivemos um encontro e eu tive a oportunidade de ver isso. Quando eu cheguei ao fim tive a sensação de que o livro, sendo diferente do que eu escrevi, mas digamos... é um equivalente perfeito na língua francesa.

Como é que reage às críticas tão elogiosas: é, por exemplo, o caso da Télérama;  o livro já recebeu uma série de prémios, incluindo o de melhor livro lusófono em França ? O Le Figaro dizia, mesmo, que mereceria tornar-se na segunda personalidade lusófona a receber o Prémio Nobel de literatura ?

Sabe isso, digamos, era a perspectiva da dona Alberti [risos]. A escrita é alguma coisa que tem muito de interiror. E, antes de mais nada, é um caminho íntimo, é um caminho que se faz com a escrita, digamos. Depois se, de facto, aparecem esse tipo de legitimação... é uma alegria natural ! Eu sinto-me muito alegre e, ainda que tenha humildade perante tudo isso, porque, digamos, o julgamento de um livro tem várias fases: uma fase próxima, é o que está acontecendo, em que as pessoas reagem, dizem "Que bem !"... Mas os livros podem ser esquecidos, os livros passam. Portanto a minha perspectiva, pelo menos, é de uma grande alegria quando percebo, que aquilo que eu escrevi, tem eco nos outros. Eu escrevo por uma outra coisa, mas a publicação é feita para isso.

Então, falando de livros que já tiveram eco e publicação, eu penso, por exemplo na "Costa dos Murmúrios" : não hesitou em mergulhar no contexto que se vivia em Moçambique, onde morou no início dos anos 70. Isabela Figueiredo, com "Caderno de memórias coloniais", e outros livros posteriores, não hesitou em retratar a vida dos portugueses que trabalharam em Moçambique e que de lá voltaram. Que interesse é que lhe suscitaram essas obras e essas trajectórias ?

Bastante ! Digamos que este é um dos temas fundamentais da literatura portuguesa. Diria mesmo que uma das originalidades da literatura na língua portuguesa (e que cobre ali vários países, como se sabe) é que há um tema central. Que é a queda do Império. Esse é um tema que vem desde o princípio do século XX. Digamos que o livro que, praticamente, inaugura esse tema é o livro "O coração das trevas" de Joseph Conrad. Mas, nos países onde houve colonizados e colonizadores, o século teve esse tema, foi atravessado por esse tema. E os portugueses que foram, enfim, uma nação que, enfim, foram os primeiros a fazer a circum-navegação de África e a ir até à Índia daquela forma, como todos nós sabemos: com a sua parte trágica, mas também com a sua parte mágica !  O que acontece é que a queda do final do Império tardiamente, e bastante trágica, que aconteceu entre Portugal e os países...

Foi traumatizante, foi deveras traumatizante !

Foi deveras traumatizante dos dois lados ! Claro mais trumatizante para o outro lado, mas isso é, digamos, um tema que está vivo ! É um tema que consubstancia aquilo que é uma originalidade dos livros escritos ultimamente, nas últimas décadas. E o da Isabela Figueiredo, como o da Maria Dulce Cardoso são livros... elas produzem livros sobre essa memória que toda a gente lê, e com imenso interesse, porque é alguma coisa que nos diz respeito. Não a nós, mas à Europa, sobretudo. 

Mas também tem interesse por Paulina Chiziane, Mia Couto, José Craveirinha, as obras que são publicadas em Moçambique ?

Sem dúvida ! Acho que há um interesse mútuo e que é a parte positiva de alguma coisa que no nosso tempo... O nosso tempo é um tempo em que o ressentimento do colonialismo é muito grande ! E que vai continuar porque as contas não estão feitas ! O conta quilómetros não está acertado ainda ! Vai faltar muito tempo ! Há um ressentimento muito grande ! Daqueles que se lembram que foram os seus pais, a sua família e eles próprios foram postos de lado ! Foram escravizados, tudo isso ! Ainda que a minha geração ou a sua... nós não tenhamos feito parte desses, mas compreendemos que a História vai mais para o nosso corpo e a nossa visão. Portanto ainda se vai fazer durante muito tempo esse ajuste de contas do ressentimento ! Por isso a literatura e a arte é um campo que, analisando e demonstrando, é um campo de inclusão ! É um campo de aproximação ! Porque se procura sempre ver a parte humana que está subjacente. E a parte humana não tem línguas diferentes, nem pátrias diferentes ! Aproximamo-nos, há uma gramática que nos junta. E é por isso que a leitura recíproca dos livros é tão importante e é, por isso mesmo, que se publica de um lado e do outro. Os livros daqueles que antes não eram tidos como países, mas como colónias. E aquele país que, no fundo, era a sede do Império e que era, apenas, uma fantasia !

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