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Vida em França

“Cresci com a ideia de que uma mulher tem de dispor do seu corpo”

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A França decidiu incluir a Interrupção Voluntária da Gravidez na Constituição, tornando-se no primeiro país a fazê-lo de forma explícita e ampla. O projecto de lei constitucional alterou o artigo 34.º que passa a incluir “a garantia da liberdade das mulheres de recorrer à interrupção voluntária da gravidez”. Anna Martins, directora adjunta do ministro francês do Comércio Externo, afirma que se escreveu uma nova página na história dos direitos das mulheres.

A França decidiu, esta semana, incluir a Interrupção Voluntária da Gravidez na Constituição, tornando-se no primeiro país a fazê-lo de forma explícita e ampla.
A França decidiu, esta semana, incluir a Interrupção Voluntária da Gravidez na Constituição, tornando-se no primeiro país a fazê-lo de forma explícita e ampla. © LUdovic Marin / AFP
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Com esta decisão escreve-se uma nova página na história dos direitos das mulheres?

Sim, é disso que se trata. Estou muito feliz com esta decisão, enquanto mulher e enquanto jovem. Cresci com a ideia de que uma mulher tem de dispor do seu corpo e que ninguém lhe pode, ou lhe deve, dar qualquer indicação sobre a forma que ela tem de dispor do corpo dela. E, portanto, estou evidentemente muito feliz, enquanto francesa, porque é um momento de orgulho, de grande orgulho. A França é dos primeiros países a inscrever na Constituição este direito. E agora nenhuma lei pode ir contra esse direito.

Esta reforma introduz no artigo 34 a frase “A lei determina as condições em que a liberdade garantida à mulher de recorrer ao aborto voluntário é exercida”. Todavia, um dia depois da França se ter tornado no primeiro país no mundo a inscrever na Constituição o direito ao aborto, um centro de planeamento familiar foi vandalizado em Estrasburgo.Este acto demonstra que nem todos os franceses estão de acordo com esta decisão?

Não, nem todos os franceses [concordam com esta decisão]. E essa era a razão pela qual era necessário inscrever esse direito na Constituição. Recentemente, muitos deputados, nomeadamente da franja da extrema-direita, tentaram inserir leis para restringir esse direito. Recordo ter visto um deputado do Rassemblement National [partido francês de extrema-direita] tentar introduzir uma lei que previa que as mulheres que recorrem ao IVG não seriam reembolsadas. Isso seria um desastre para as mulheres que não têm possibilidades financeiras para recorrer a esse tipo de procedimento. Este direito continua a ser ameaçado.

No terreno, muitas associações denunciam o encerramento de vários centros, dificultando às mulheres ainda o direito ao aborto. Isto mostra que a luta continua?

É preciso estar atento a todas essas situações. Não é porque a Constituição garante o direito ao aborto que ele é efectivo no terreno. França, tal como Portugal, enfrentam a problemática da desertificação médica. Depois há a questão da cláusula de consciência que permite a um médico recusar o procedimento.Não é assim tão fácil encontrar uma clínica e um médico que esteja disponível, nomeadamente na França rural.

Organizações feministas sublinham que a inscrição do direito ao aborto na Constituição é fundamental, mas que é preciso garantir que esse direito seja efectivo. A cláusula de consciência, que está presente na lei Veil, permite aos médicos recusarem-se a praticar este acto médico por questões morais ou religiosas. Acha que também aqui é preciso estar atento a esta situação?

É preciso ir ainda mais longe. Esse é o primeiro passo e é um passo muito importante, muito simbólico também, porque não só a extrema-direita, mas também a direita, muitas vezes motivada por orientações católicas e religiosas, se opõem ao aborto. Esta semana, ouvi na rádio um senador que contava que os filhos lhe disseram que, se votasse contra este projecto de lei de inscrever o aborto na Constituição, deixariam de falar com ele.  Ou seja, também as nossas gerações estão mais motivadas visceralmente para lutar por esse direito. Mulheres e homens da minha geração.

Mas porque é que ainda há esta ideia de que o corpo da mulher é uma praça pública?

Se calhar, se a interrupção também existisse para os homens, talvez não estaríamos a ter esta conversa. Acho que é uma espécie de síndrome que existe há séculos e impedia a mulher de estar no mesmo patamar que o homem. Foi muito importante dar este passo para a igualdade. Dar o poder às mulheres de decidirem o que fazer dos seus corpos, é uma evolução lógica da mentalidade da nossa sociedade e, portanto, estamos no bom caminho. Não vai ser simples, mas como esse direito está inscrito na Constituição, que não podemos mais reduzi-lo, mais portas serão abertas nos próximos tempos.

Acredita que outros países poderão seguir a França e incluir a interrupção voluntária da gravidez na Constituição?

Mais do que inscrever na Constituição, espero que muitos países em África e na Europa criem condições para que as mulheres sem recursos possam ter acesso a este procedimento. Estou a pensar no Brasil, por exemplo, que é um dos países em que tem condições ainda muito restritivas. Por isso, acho que a inscrição na Constituição é quase o último passo. Espero que nos próximos anos, em qualquer país, uma mulher tenha acesso a esse direito que é fundamental. Uma mulher tem de ter a plena capacidade de tomar essa decisão, sem haver um homem ou uma sociedade por trás a escolher por ela.

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