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ONG nota melhorias mas também selectividade na luta contra a corrupção em Angola

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A ONG 'Transparência Internacional' divulgou esta 3ª feira o seu relatório anual sobre o índice de percepção da corrupção a nível mundial. De acordo com este Índice que é calculado numa escala de zero (corrupto) a 100 pontos (livre da percepção de corrupção), os países que em 2021 tiveram  melhor desempenho (com 88 pontos cada) são a Dinamarca, a Finlândia e a Nova Zelândia, sendo que a Somália e o Sudão do Sul se encontram na cauda da classificação, respectivamente com 13 e 11 pontos.

Indíce 2021 da 'Transparência Internacional'.
Indíce 2021 da 'Transparência Internacional'. © Transparency International
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Entre os países de África lusófona, Cabo Verde está na 39ª posição, São Tomé e Príncipe na 68ª posição, Guiné-Bissau na 162ª, Moçambique na 147ª e Angola na 136ª posição com 29 pontos.

Especificamente sobre o caso angolano, a 'Transparência Internacional' considera que houve progressos, com uma subida de 7 pontos desde o índice de 2012, a ONG referindo que estas melhorias se acentuaram com a chegada ao poder de João Lourenço em 2017, com o actual presidente a fazer da luta contra a corrupção o seu cavalo de batalha.

“As autoridades têm levado a cabo investigações de corrupção de alto nível a membros da antiga família dominante, entre eles, a filha do ex-presidente e ex-chefe da companhia petrolífera estatal Sonangol, Isabel Dos Santos" sublinha nomeadamente a ONG que não deixa contudo de ressalvar que “as investigações raramente são abertas noutros casos, levantando dúvidas sobre a existência de uma justiça selectiva”.

Para comentar este balanço da 'Transparência Internacional', a RFI conversou com o politólogo angolano Olívio Kilumbo.

RFI: Qual é a sua leitura das conclusões da 'Transparência Internacional' sobre Angola?

Olívio Kilumbo: O presidente João Lourenço teve a coragem - e eu acho que é a melhor qualidade que ele tem enquanto presidente- de assumir isto (a luta a contra a corrupção) como uma luta séria. Porém há características muito específicas de regimes como o nosso, sobretudo na manutenção do poder político que é a seguinte: a manutenção do poder político sem boa governação é igual à corrupção. Logo, se o MPLA quiser manter-se no poder político, não pode combater a corrupção porque é uma das formas de manutenção no poder político do MPLA. Logo, tem de frear porque combater a corrupção também é combater o presidente João Lourenço porque ele sempre foi parte do sistema. Ele esteve nesse sistema desde a sua génese e é um dos indivíduos também, do ponto de vista directo ou indirecto, que tem a fortuna que tem por causa desses esquemas, por causa da forma como o MPLA criou o acesso à riqueza a um grupo específico. Portanto, eu acho que hoje o combate à corrupção é um fracasso do ponto de vista prático, porque foi selectivo para algumas famílias que representavam um perigo para o presidente João Lourenço. E como é óbvio, muitos regimes utilizam esta estratégia que é usar a luta contra a corrupção para afastar possíveis adversários ou pessoas que possam pôr em causa o seu poder.

RFI: Isto é precisamente o aspecto que é realçado pela 'Transparência Internacional', o facto de haver alguma suspeita de que houve selectividade nessa luta contra a corrupção. Inclusivamente, a ONG citou os resultados de uma sondagem à população angolana segundo a qual 39% dos inquiridos consideram que a luta contra a corrupção pode ter sido um instrumento contra rivais políticos.

Olívio Kilumbo: Claro. Foi exactamente isso que aconteceu. O presidente João Lourenço usou a luta contra a corrupção para afastar adversários políticos sobretudo no MPLA. No seu último discurso sobre o Estado da Nação, o presidente disse alto e bom-tom que havia cerca de 700 processos de peculato ou de crimes ligados à corrupção contra pessoas que foram gestoras públicas no MPLA. Essas pessoas escusaram-se a demonstrar vontade de concorrer com o presidente João Lourenço, por exemplo no congresso do MPLA onde ele foi candidato único. Até porque houve um pretendente, António Venâncio, mas que ficou pela pretensão porque foi bloqueado. Portanto, João Lourenço usou a luta contra a corrupção para afastar adversários, por um lado, e para manter-se também no poder. São poucas as pessoas com coragem para enfrentá-lo directamente e que são pessoas limpas do ponto de vista da corrupção e sobretudo do peculato. O problema de Angola -repito- é o peculato, pessoas, gestores públicos que desviaram fundos públicos para fins inconfessos, isso sim.

RFI: Relativamente aos fundos públicos que foram desviados, a luta contra a corrupção de João Lourenço tinha como objectivo não só confundir quem é corrupto mas também recuperar esses fundos públicos. Qual é o balanço de etapa que se pode fazer relativamente aos fundos que poderão ter sido recuperados.

Olívio Kilumbo: O Presidente João Lourenço quando chegou ao poder trouxe a visão do repatriamento de capitais e vendeu a falsa ideia que seria por via do repatriamento de capitais que se iria investir na economia angolana. Isto ficou patente, porém não aconteceu porque nós temos um balanço exaustivo e explicativo sobre como é que foram recuperados estes capitais e onde foram investidos. No último discurso sobre o Estado da Nação, houve um número mas é insignificante do ponto de vista do que saiu (2,5 bilões de Dólares recuperados até Outubro de 2021 sobre um total 24 biliões desviados segundo o presidente da República de Angola), porque no princípio da presidência de João Lourenço, foi o seu chefe de gabinete da altura que é agora Ministro da Administração do Território que assumiu que 'não se sabe quanto é que Angola tem lá fora'. Por outro lado, o que têm, também têm dúvidas. O antigo Ministro das Relações Exteriores, Manuel Augusto, disse em Washington diante de Mike Pompeo, antigo secretário de Estado americano, que 'há mais dinheiro angolano em Miami do que em Portugal'. Portanto, nós estamos aqui com uma situação de um desconhecimento da localização desses capitais. Por outro lado, também depende se os países estão dispostos a facilitar o repatriamento dos mesmos. Há protocolos internacionais que Angola assinou. Houve um recentemente em que houve essa intenção muito forte. Mas ainda assim é insignificante, até porque os valores que saíram daqui com as mais requintadas e sofisticadas engenharias financeiras não vão voltar do dia para a noite. Eu sou daqueles que, no princípio da luta contra a corrupção, defendeu que a corrupção se combate com terror. Fui mal interpretado, mas há exemplos no mundo. Por exemplo, o Príncipe da Arábia Saudita recuperou 100 biliões de Dólares em um mês porque foi duro! Então acho que João Lourenço foi um bocadinho manso, confiou demais na lei. E mais: combate à corrupção tem que ter 'timings' e tem que se saber se vai combater com a lei ou se vai utilizar outras formas de coerção para recuperar esses dinheiros. Se se usar a lei, é mais moroso e pode haver riscos de processos mal instruídos. Portanto, há muitos riscos e acho que não foi uma vitória.

RFI: A 'Transparência Internacional' considera que as falhas que poderão ter existido na luta contra a corrupção a nível mundial são um perigo para a democracia. Como interpreta essas palavras à luz da situação em Angola?

Olívio Kilumbo: Nós não somos uma democracia infelizmente, porque todos os institutos internacionais que estudam a democracia consideram Angola um estado autocrático. Isto é o que a ciência política diz. E se não somos uma democracia, fica difícil classificar por um lado e analisar Angola como uma democracia porque nós não exercemos democracia no sentido da palavra. Nós temos instituições capturadas por um único partido e nós estamos à mercê deste partido. Temos por exemplo um processo eleitoral completamente maculado do detalhe ao pormenor onde a imprensa está capturada, onde a lei é fraudulenta, onde a Comissão Eleitoral também é fraudulenta porque não obedece ao princípio da União Africana, nem tão pouco ao princípio da SADC sobre eleições e democracia, onde as forças de defesa e segurança desempenham um papel completamente parcial, onde as empresas contratadas não obedecem aos critérios de avaliação e fiscalização que se impõem. Portanto, é difícil falar de democracia. As eleições já estão praticamente ganhas pelo MPLA, só falta as eleições acontecerem. Portanto, esse relatório da 'Transparência Internacional' é um barómetro de avaliação de como é que as coisas vão aqui dentro.

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