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Paris acolheu angolanos fugidos da guerra da Ucrânia

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Domingos de Oliveira e Teresa Teixeira chegaram, este domingo, a Paris, depois de terem fugido da Ucrânia para a Polónia. Os jovens angolanos, de 22 e 21 anos, querem ficar na Europa e escolheram a capital francesa para começar de novo. A bagagem veio cheia de memórias de Kiev e da fuga à guerra, de denúncias de racismo mas também de relatos de esperança. Oiça aqui a entrevista.

Domingos de Oliveira e Teresa Teixeira no aeroporto de Orly, em Paris. 06 de Março de 2022.
Domingos de Oliveira e Teresa Teixeira no aeroporto de Orly, em Paris. 06 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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Chegaram este domingo ao aeroporto de Orly, em Paris, vindos de Varsóvia, uma semana depois de terem atravessado a fronteira da Ucrânia para a Polónia. Domingos de Oliveira e Teresa Teixeira têm 22 e 21 anos e fugiram da guerra como mais de um milhão e meio de pessoas já o fez desde o início da invasão russa à Ucrânia. No seu avião, havia muitos ucranianos obrigados a deixarem as suas casas e o seu país.

Os dois jovens angolanos escolheram a capital francesa porque querem ficar na Europa, mas os próximos tempos são de incerteza. Conseguiram um alojamento temporário graças à associação Hirond'ailes e à rede de solidariedade que se criou um pouco por todos os países europeus e agora vão recomeçar do zero.

Para trás, ficam alguns anos passados em Kiev, onde Teresa vivia desde 2019 e onde estudava gestão industrial, enquanto Domingos vivia na capital ucraniana desde 2018 e estudou engenharia e marketing.  Para trás, ficam também as memórias de uma fuga precipitada, marcada pelos sons da guerra, horas incontáveis com episódios de racismo, mas também de esperança com a chegada a Paris, onde nunca tinham estado e que, para eles, representa um mundo de oportunidades.

12:01

Entrevista a Domingos de Oliveira e Teresa Teixeira

RFI: Escolheram vir para Paris? Porquê?

Domingos de Oliveira: Nunca antes havíamos pisado o território francês. É a primeira vez. Desde que saímos de Angola, o único lugar para que fomos foi a Ucrânia. Este é o segundo país na Europa em que vamos viver. Porquê Paris? Porque aqui é um lugar que está aberto para muitas oportunidades que buscamos, como, por exemplo, eu como actor e ela como cantora, empresária. Aqui podemos ver que é um lugar onde há oportunidades para todo o mundo. É escusado dizer que a língua vai ser uma dificuldade, mas para nós não porque falamos três idiomas e não é problema aprender mais um.

E Angola, não querem regressar para Angola?

Domingos de Oliveira: De momento não.

Teresa Teixeira: De momento não. Eu acho que esta é uma oportunidade que devemos agarrar para o nosso futuro porque em Angola as coisas estão muito difíceis e eu acho que aqui seria uma melhor opção, por agora.

Como foi a vossa viagem? Quando é que vocês tomaram a decisão de sair de Kiev?

Domingos de Oliveira: A minha prima [Teresa] já me dizia, há um mês, que era para nós sairmos do país. “Primo, vamos sair do país, vamos sair do país, vai começar uma guerra!” Eu sempre lhe dizia "calma" e "não". Até que no dia em que aconteceu, logo que foi atirada a primeira bomba que foi às cinco da manhã, saímos da capital para Lviv. E depois de Lviv para a Polónia.

Como é que foi a viagem de Kiev para Lviv?

Domingos de Oliveira: A viagem de Kiev para Lviv foi com muita turbulência porque havia montes de MiGs a passar pelo ar - jactos, aviões de guerra a passarem pelo ar - tanques de guerra a passarem pela rua, bombas a rebentarem do outro lado. Uma turbulência tremenda mesmo.

Teresa Teixeira: E não só. Lá na emigração, na fronteira quando nós chegámos, foi muito difícil porque os militares não queriam que a gente passasse. Diziam-nos “Vão para trás, vão para trás”, só priorizavam os ucranianos, as mulheres, e diziam-nos que nós tínhamos de ir para trás. Não sei se é porque nós somos negros, mas diziam-nos que nós tínhamos que ir para trás. Havia pessoas que se encontravam lá, que já estavam há três, quatro dias a tentar cruzar a fronteira, e eles impediam. Então, foi uma experiência mesmo muito terrível.

O Cláudio Chicaia, que também estava convosco, contou à RFI que houve episódios de racismo e discriminação...

Domingos de Oliveira: Sim, sim, sim. Até houve um momento em que um dos militares, de tanto nos mandar irmos para trás - como eu sou uma pessoa que gosta de estudar no idioma no país e sei como os ucranianos se comportam - do mesmo modo que ele se estava a comportar muito mal comigo, eu também me comecei a comportar mal com ele. Ele veio atrás, puxou-me o cachecol, eu revidei e falei: “Porque é que me estás a puxar?” na língua dele e ele estranhou, ficou como “Como é que esse negro sabe falar o meu idioma?”. E depois ele me deixou em paz e continuou a caminhada e todo o mundo ficou assim pasmado. Porque tinha muitos negros lá que não estavam a deixar passar, mas quando o nosso grupo chegou - com pessoas que sabem falar o idioma - os outros negros que estavam lá ganharam asas de poder revidar pelos seus direitos e poder continuar a caminhada porque viram que nós estávamos a lutar com os militares para nos deixarem passar.

Vocês foram de comboio e depois foram a pé? Ou foram de táxi?

Teresa Teixeira: Fomos de táxi. Na verdade, nós pagámos táxi para nos deixar em Lviv e o táxi deixou-nos numa rua na qual andámos quatro quilómetros a pé até à fronteira. Depois, na fronteira, para poder entrar na Polónia, nós andámos a pé. Ficámos um dia a andar no frio, foi uma coisa muito terrível.

Quantos quilómetros?

Teresa Teixeira: Houve pessoas que andaram até 30 quilómetros.

Domingos de Oliveira: Nós éramos um grupo de oito pessoas, mas depois separámo-nos porque o carro era pequeno. Uns foram num carro e outros noutro. Nós tivemos a sorte – não sei se posso dizer sorte – de encontrar um taxista que conhecia muito bem Lviv e ele deixou-nos num lugar muito próximo em que só tínhamos três quilómetros para andar até à fronteira. Mas os outros meus amigos tiveram que caminhar trinta quilómetros. Até um amigo meu emagreceu, ele é meio grande e perdeu muito peso.

Eles contam que tiveram que andar 30 quilómetros para chegar até à fronteira e houve momentos em que tiveram de deixar as suas pastas de tanto peso. Quando chegaram na fronteira, não foi de imediato que passaram, tiveram de esperar três dias para poderem passar. Dormir no alto frio e na neve... Pediam aos carros vazios, onde tinha motoristas, se eles podiam dormir e mesmo tentando corromper, as pessoas não aceitavam. Eles tiveram que ir em lugares inapropriados para poderem dormir. Por exemplo, eles tiveram de ir no quarto de banho para poderem dormir. Houve um momento em que eles estavam a dormir e havia chegado alguém para fazer necessidades maiores e eles dormindo mesmo aí no chão. São episódios muito tristes mesmo, mas o mais importante é que eles estão bem de saúde e conseguiram sair desta.

Quanto a vocês, caminharam então quatro quilómetros...

Teresa Teixeira: Foi mais do que isso porque nós depois cruzámos a fronteira também a pé. No frio. Um dia inteiro só para atravessar a fronteira.

Chegaram lá e tiveram que esperar. Quanto tempo?

Domingos de Oliveira: As horas são incontáveis porque nós não estávamos a controlar o tempo.

Teresa Teixeira: Sim e lá era muito desorganizado. Pessoas muito agressivas, que estavam a bater nas pessoas porque cada um queria passar. Então, era uma confusão, uma extrema desorganização, foi muito terrível. Estavam a empurrar-nos, bastava você querer passar e queriam-te agredir e bater. Foi mesmo muito complicado passar também a outra fase.

Fisicamente sentiu essa discriminação?

Teresa Teixeira: Sim porque no momento em que eu estava a tentar passar, teve um militar que me empurrou porque eles estavam a dizer em inglês “Go back, go back”. Empurraram-me e eu estava com tanto medo. Graças a Deus, eu tive rapazes ao meu lado que conseguiam falar muito bem a língua e conseguiam discutir com eles e diziam-lhes: “Nós não vamos para trás. Para você nos mandar para trás, tem de mandar as outras pessoas para irem para trás". Empurraram-nos, tentaram impedir-nos de todo o modo e teve até um nosso amigo que lhe apontaram com uma arma. Foi mesmo terrível.

Vocês falam de episódios de violência e racismo, mas também houve episódios de solidariedade?

Domingos de Oliveira: Sim, sim, sim. Houve alguns militares que foram solidários. Muitos estavam a trazer comida para todos, sopas, e assim que cruzámos a fronteira, logo que chegámos à Polónia, nós notámos que o tratamento é outro, é muito diferente do povo ucraniano. Claro que existe sempre uma excepção, há sempre aqueles que podem comportar-se muito bem connosco e outros que não. Não podemos generalizar que todos são assim.

Entretanto, também graças à solidariedade, conseguem chegar a Paris...

Domingos de Oliveira: Com certeza e é de agradecer a Deus por isso.

Teresa Teixeira: Muito.

E a Ucrânia? Deixaram a Ucrânia, têm lá amigos, querem voltar?

Domingos de Oliveira: Eu deixei lá namorada que até agora ainda não conseguiu sair de lá e é um pouco triste saber disso. Ela não veio comigo porque ela tem um filho, pegou nele e seguiu com a família dela para se esconderem num outro lugar. Não estávamos juntos no momento em que aconteceu o bombardeamento, quando começou.

Ou seja, gostaria de voltar para a Ucrânia mais tarde?

Domingos de Oliveira: Quando os conflitos acalmarem, quem sabe posso voltar. Ou talvez mandar ela vir para cá.

Teresa Teixeira: Bem, fica meio complicado dizer porque eu tive uma má experiência que não consigo esquecer. Fui muito mal tratada e realmente não sei se poderia voltar lá.

Está a referir-se à viagem?

Teresa Teixeira: Sim, essa trajectória toda que passámos. Foi uma experiência muito terrível e não sei se gostaria de voltar. Ainda agora tem pessoas que continuam lá, a chorar e a pedir ajuda, dizendo que tentam cruzar a fronteira e não conseguem. Isso é muito triste.

Até este domingo eram mais de um milhão e meio de pessoas que já tinham fugido da Ucrânia. Como é que vocês olham para todo este êxodo?

Domingos de Oliveira: Nós olhamos de um jeito triste porque o país já se estava a desenvolver por causa da mão-de-obra que os estrangeiros estavam a dar para o país, já estava um bom desenvolvimento para o país. Há quatro anos, quando cheguei lá, não estava do jeito que eu deixei actualmente e é muito triste ver que as pessoas têm que sair por causa de conflitos políticos. É muito triste ver isso.

E agora?

Domingos de Oliveira: Bem, agora um mar de oportunidades se abriu porque a maior parte das pessoas que lá estavam sempre pensavam um dia poder sair da Ucrânia para poder entrar na União Europeia. E isso aconteceu. Como dizem sempre “Há males que vêm por bem” e portas se abriram para todo o mundo que estava na Ucrânia. É o momento de podermos aproveitar e agarrar com unhas e dentes essa oportunidade que nos foi dada.

Teresa Teixeira: Com certeza. A minha opinião não foge muito do que ele disse. É uma oportunidade muito grande e só nos resta aproveitar.

Domingos de Oliveira: “Ça va bien, merci beaucoup!” (Risos)

 

 

Veja aqui os vídeos dos dois estudantes à chegada a Paris e à saída de Varsóvia:

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