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"Desenhar espaços climáticos confortáveis é um direito público"

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A Europa enfrenta, nas últimas semanas, uma onda de calor que revela a urgência de preparar os espaços urbanos para as alterações climáticas. Sílvia Benedito, professora da Graduate School of Design da Universidade de Harvard e autora do Livro Atmosphere Anatomies-On Design, Weather, and Sensation, defende que "desenhar espaços climáticos confortáveis é um direito público".


Nas últimas semanas, a Europa enfrenta uma onda de calor que revela a urgência dos espaços urbanos se preparem para as alterações climáticas. (imagem de arquivo).
Nas últimas semanas, a Europa enfrenta uma onda de calor que revela a urgência dos espaços urbanos se preparem para as alterações climáticas. (imagem de arquivo). AP - Rafael Yaghobzadeh
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RFI: As nossas cidades estão preparadas para as alterações climáticas?

Sílvia Benedito: Não desenhamos [as cidades] para as situações extremas, mas o que estamos a viver agora é um “waking up call”, ou seja, um alerta para o que nós vamos viver no futuro, são também as projecções desenhadas pelo IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas]. Isto requer um esforço dos arquitectos, paisagistas, toda a equipa técnica dos departamentos municipais, engenheiros e comunidade em geral. Temos de começar a pensar, dentro da indústria da construção, o que é que nós podemos fazer, não só para diminuir a libertação dos gases efeito estufa, mas também para aumentar o conforto bioclimático das cidades.

No livro Atmosphere Anatomies-On Design, Weather, and Sensation defende que é preciso pensar no espaço como clima. Como é que se materializa esse pensamento?

Materializa-se com o aumento da consciencialização de que os fenómenos que existem no ar têm de ser desenhados. Não é fácil, nós somos uma sociedade muito relacionada com os sistemas visuais- porque vemos, tocamos, sentimos- e o clima é um fenómeno invisível. O livro faz parte de uma investigação que ando a fazer há vários anos, onde analiso o clima como uma dimensão que tem de ser construída, o clima como um material de construção. Da mesma forma que construímos com árvores, metal, pedra ou betão, deveríamos perceber-cada vez mais- que o clima é um material de construção. Isto não é fácil porque entramos no domínio da ciência, da meteorologia e da termodinâmica.

O que é preciso fazer para tornar os espaços com mais sombra?

E mais ventilados! Há um elemento fundamental, quando está calor, que está relacionado ao arrefecimento radioactivo, que tem a ver com superfícies que estão em sombra e quando os nossos corpos estão quentes essas superfícies absorvem esse calor. A sombra é fundamental, o arrefecimento geotérmico é fundamental, isto acontece em espaços como as caves, porque a terra, como está protegida, não recebe radiação e absorve este calor.

Outra questão tem a ver com a ventilação. Hoje em dia, há muitas cidades que já pensam nisso. Por exemplo, Estugarda foi uma cidade, que a seguir à Segunda Guerra Mundial, levou a questão da ventilação muito a sério. Esta cidade assenta num vale e por questões de desenvolvimento económico, porque é a base da Mercedes, teve de desviar a poluição que ficava acumulada no vale, recorrendo ao fenómeno que é conhecido como a  inversão térmica. 

Eles perceberam que os ventos da cidade, ou seja, os ventos cataváticos, que ocorriam durante a noite, da montanha para o vale, tinham a capacidade de fazer a exaustão dessa poluição.

Quem fala em exaustão de poluição também fala em exaustão de calor, portanto o vento dentro de uma escala maior, uma escala regional, tem um papel fundamental no arrefecimento das cidades.

Na escala local podemos activar a movimentação do vento, do ar e das massas de ar porque sabemos que há uma movimentação constante entre as massas de ar frias e as massas de ar quente. Por exemplo, quando temos uma superfície que armazena frio e se tivermos uma chaminé que no topo está quente, este frio tende a ser puxado pelo ar quente, provocando a tal ventilação. Isto é a movimentação de ar que todos nós apreciamos, quando estamos dentro de casa ou quando estamos na rua e sentimos o vento. Isto são oportunidades que nós temos, o desafio é começar a pensar de forma mais focada.

Isto passa também por trocar os materiais de construção o betão pela madeira por exemplo?

O betão pela madeira. Quer dizer, depende. O arrefecimento de uma parede de betão, sobretudo se estiver à sombra, é muito maior do que o de uma parede de madeira porque tem diferenças no seu comportamento térmico. O nosso corpo arrefece mais depressa se estivermos em contacto com o tal fenómeno de condução, contacto com superfícies frias.

Esse sistema de arrefecimento, em contacto com superfícies frias, energeticamente é muito mais eficiente se for um arrefecimento por condução, ou seja, por movimentação de ar. Este efeito pode ser sentido através do ar condicionado.

 Quando estamos sentados numa superfície fria, normalmente o nosso corpo tende a arrefecer muito mais rápido. Estas condições de materiais são importantes porque têm comportamentos térmicos distintos. 

Outro aspecto importante é aspecto do albedo. O albedo tem a ver com a reflectividade que o material tem, pois tudo está relacionado com a cor. Por exemplo, o asfalto, que tem um albedo muito baixo, reflecte muito pouco e isso  significa que está a absorver o calor. Logo, durante vai libertar mais  calor. Isto é extremamente importante porque impacta de uma forma muito negativa.  Se essa cidade não tiver os tais corredores de ventilação, ou se o vento não circular, vamos ter esse problema muito mais presente.

As cidades devem também dar mais prioridade às árvores, aos espaços verdes?

Definitivamente! Há um estudo muito interessante nos Estados Unidos que diz que grande parte dos bairros das famílias mais pobres, vamos dizer assim, estão mal equipados em termos de espaço público. Esses espaços públicos tendem a ser muito expostos, ou seja, há menos árvores. 

Por um lado, a criação de sombra por árvores ou por estruturas é fundamental, as árvores protegem contra a radiação vinda do sol. Todavia, também temos de pensar que se uma pessoa estiver debaixo de uma árvore, por exemplo, mas cuja a superfície do passeio ou das superfícies envolventes tiverem o albedo muito baixo, essas pessoas estão a sofrer com a radiação que é emitida por estes materiais.

No entanto, temos que ter consciência que [as árvores] não são a única solução para a mitigação e adaptação às questões climáticas.

De quem é que deve partir essa consciência?

Tem de partir, sobretudo, da nossa profissão. Penso que, cada vez mais, é importante educarmos os nossos estudantes, para essa sensibilidade e para estas técnicas. Eu acredito que temos que equipar estas novas gerações com sistema de visualização e de comunicação. Hoje em dia podemos fazer simulações de radiação, de arrefecimento e de aquecimento radiante, podemos ainda ver como é que esta radiação solar afecta as superfícies. Muitas vezes utilizo estas simulações para falar com clientes de empresas privadas ou públicas para lhes mostrar que há determinadas ruas, ou determinadas situações urbanas onde há uma extrema radiação acumulada nestas zonas. Isso ajuda-os a perceber, uma vez que o clima não é visível. 

No entanto, já há muitas cidades que têm essa consciência da justiça climática. Chandigarh, na Índia,  em França com parque  de Bambu, em La Villette...

Muito se tem escrito sobre Chandigarh, Paley Park, o jardim de Bambu. Eu revisitei esses projectos através desses domínios climáticos ou bioclimáticos. Realmente, os autores estavam bastante conscientes de incluir os desafios climáticos nessas zonas. Le Corbusier percebeu que o orçamento para construir a cidade [Chandigarh] era muito limitado, não poderia usar ar condicionado e ele viu isto como uma oportunidade de desenvolver uma nova linguagem e abordagem arquitetônica. Isso obrigou-o à inclusão do domínio paisagístico muito antes de começar o projeto e à inclusão de um engenheiro climático para tentar resolver os desafios climáticos e encontrar uma linguagem, estruturas, vamos dizer, ou estratégias para mitigar esses excessos climáticos. Não só no inverno, mas também no verão porque há as monções, a chuva e a humidade.

Le Corbusier, em colaboração com o engenheiro climático, desenvolveu um protocolo inspirado também pela arquitectura vernacular. Ele desenvolveu uma adaptação contemporânea destas estratégias para uma linguagem que fosse usada em diversas escalas e que incluísse todas as castas, todas as faixas demográficas e económicas da cidade. Essa justiça climática de que fala.

Essa justiça climática terá que ser uma das prioridades nos novos espaços urbanos?

Tem, efetivamente, vai para além da justiça climática. É um direito humano ter acesso a um clima que promova a saúde e o bem-estar. O clima é uma infraestrutura e tem que ser desenhada para ser optimizada, para incluir a questão energética e reduzir essa dependência que temos nas nossas casas. 

A mensagem que tento passar aos meus alunos é que desenhar espaços climáticos que são confortáveis é uma questão de direito público.

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