Acesso ao principal conteúdo
Convidado

Blinken em África: "O desenvolvimento tem que começar aqui em África" - André Thomashausen

Publicado a:

O chefe da diplomacia americana Antony Blinken encontra-se desde ontem na África do Sul no âmbito de uma digressão que está a efectuar no continente, uma deslocação que o levará amanhã e até quarta-feira para a RDC, antes de viajar para o Ruanda onde permanece entre os dias 10 e 12 de Agosto.

O secretário de Estado norte-americano Antony Blinken durante a sua visita no bairro de Soweto, em Joanesburgo, ontem domingo 7 de Agosto de 2022, no âmbito da sua primeira etapa, na África do Sul, da sua digressão pelo continente africano.
O secretário de Estado norte-americano Antony Blinken durante a sua visita no bairro de Soweto, em Joanesburgo, ontem domingo 7 de Agosto de 2022, no âmbito da sua primeira etapa, na África do Sul, da sua digressão pelo continente africano. AP - Andrew Harnik
Publicidade

Depois de uma primeira digressão efectuada em 2021 pelo Quénia, Nigéria e Senegal, esta segunda deslocação africana de Blinken que tem por objectivo travar a influência russa no continente, abrange o anúncio hoje da nova estratégia americana em África, continente onde segundo dados oficiais, os Estados Unidos investiram através do mecanismo 'Millennium Challenge Account' cerca de 9 biliões de Dólares desde 2004.

Esta nova estratégia que pretende insistir mais numa intervenção não-militar está alicerçado num plano detalhando 4 objectivos para os próximos cinco anos, promover sociedades abertas, conseguir dividendos democráticos e de segurança, trabalhar em prol da recuperação pós-pandemia e ainda apoiar a conservação e adaptação do clima bem como uma transição energética justa.

Para além desta componente eminentemente diplomático-económica, esta visita não deixará de ter uma dimensão política, quando Antony Blinken se deslocar à RDC e ao Ruanda onde deverá analisar com os seus interlocutores a tensão vigente entre os dois países, numa altura em que a ONU acaba de confirmar o envolvimento das forças ruandesas nas violências cometidas por grupos rebeldes como os M23 no leste da República Democrática do Congo.

Estes são alguns dos aspectos abordados em entrevista com André Thomashausen, Professor jubilado de Direito internacional e de Direito constitucional, da Universidade da África do Sul, em Pretória, que começa por evocar o contexto em que Blinken efectua a sua primeira etapa na África do Sul, um dos países do continente que tem mantido uma posição de neutralidade, nomeadamente com a sua abstenção na ONU, aquando da invasão russa da Ucrânia.

RFI: Blinken começa a sua digressão pela África do Sul, um dos países que recusou até agora ceder aos ocidentais quanto à sua postura de neutralidade em relação à invasão russa da Ucrânia.

André Thomashausen: A África do Sul seguiu o caminho da União Africana porque é essa também a posição oficial da União Africana, de que o continente fica na neutralidade, não se vai identificar nem com uma, nem com outra parte nesse conflito, acredita na mediação e na resolução dos conflitos de maneira pacífica. A África do Sul não vai abandonar essa linha e não vai contrariar a política da União Africana. Mas claro, pelas estatísticas do comércio externo, a África do Sul tem nos Estados Unidos o segundo maior parceiro económico a seguir à China, depois vem a Grã-Bretanha, a Alemanha, depois vêm os outros, a Holanda, a França, etc... Portanto, a economia da África do Sul está bem integrada na economia do Ocidente.

RFI: Disse que os Estados Unidos estão entre os principais parceiros económicos da África do Sul, juntamente com a China. África do Sul também faz parte desse bloco que são os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), e a Rússia recentemente apelou o bloco à solidariedade para com a sua política.

André Thomashausen: Absolutamente e estão em vias de negociações para aumentar o número de membros dos BRICS. Há pedidos de adesão por parte da Argentina e do Irão, sendo que agora, muito recentemente, depois da cimeira entre o Presidente russo, Putin, e o Presidente turco, Erdogan, também a Turquia está a considerar juntar-se ao bloco BRICS, tornando esse bloco um novo factor nas relações internacionais muito importante. Isto porque já agora representa mais ou menos 60% da população mundial. Com a adesão de outros países vai juntando mais importância, mais representatividade.

RFI: Uma espécie de novo bloco dos não-alinhados?

André Thomashausen: É o novo bloco dos não-alinhados. É um novo bloco do sul, o bloco da população global que é pobre. Se considerarmos que na Noruega o Produto Interno Bruto anual é de 90.000 Dólares per capita, enquanto na África do Sul está à volta dos 6.600 Dólares, na Rússia é de 12.000, na Turquia 14.000 e na China está à volta dos 12.000, na Índia está à volta dos 3.000, portanto é aquela camada do baixo vencimento, da pobreza do investimento e do atraso no desenvolvimento humano e no desenvolvimento económico. E isso é significante para o Ocidente porque o Ocidente só representa mais ou menos 10% da população mundial, mas concentra em si 50% do Produto Bruto mundial. Assim, temos uma nova dimensão de norte a sul que agora está a cristalizar-se dentro dos BRICS.

RFI: Blinken escolheu a África do Sul para anunciar a nova estratégia americana no continente africano. Isto reveste algum significado particular, tendo nomeadamente em conta que vários países africanos estão a hesitar neste momento entre a Rússia e os Estados Unidos?

André Thomashausen: Eu acho que em África, crescentemente, as pessoas perceberam que tem que haver uma autonomia, tem que haver uma auto-suficiência, o desenvolvimento tem que começar aqui em África. A queda das exportações alimentares da Ucrânia e da Rússia que estão a provocar crises alimentares em certos países em África que dependiam muito dessas importações, também trouxeram à consciência dessas pessoas de que é uma anomalia um país não conseguir alimentar a sua população e estar dependente das importações de alimentos básicos. Assim, os Estados Unidos, tal como a Rússia, tal como a China, vão continuar a ser bem-vindos. A África prefere que as assistências ao desenvolvimento e agora à transformação energética venham sem condições políticas. Foi sempre esse o obstáculo à relevância das relações dos Estados Unidos aqui em África porque os Estados Unidos sempre insistiram em ligar condicionalismos políticos à ajuda ao desenvolvimento que tem oferecido.

RFI: Precisamente, é neste contexto por exemplo, que a Rússia ainda recentemente propôs a Moçambique que possa adquirir o seu combustível e que pague em Rublos, uma possibilidade Moçambique não descarta completamente. Qual é a leitura que se pode fazer disto nesta altura?

André Thomashausen: A situação dos combustíveis russos é complicada pelo facto de que em África praticamente não existem refinarias. Aqui na África do Sul, existia uma capacidade mas ela perdeu-se. Hoje meramente uns 15% do consumo são de refinação nacional. A refinaria que existia na Zâmbia deixou de funcionar. Igual situação em muitos outros países africanos. Deste modo, os países africanos dependem da importação de produtos, da gasolina, do gasóleo e dos combustíveis para aviação, já refinados. Aí, a Rússia tem menos a oferecer, a Rússia tem produtos brutos em excesso que pode oferecer a um preço baixo e a Índia está a aproveitar isso, a China também, ambos países que têm poucos recursos petrolíferos nacionais. Mas em África, não nos ajudará ter fornecimento de produtos brutos porque não temos capacidade de refinação. E depois é o preço que também decide, porque é uma questão de mercado. O Rublo é uma moeda muito cara, está sobrevalorizado e isto vai resultar numa comparação de preços com os produtos que estão no mercado, nomeadamente do Qatar, da Arábia Saudita e de muitos outros países.

RFI: Nesta visita de Blinken pelo continente africano, estão também incluídas etapas na RDC e no Ruanda, aliados tradicionais dos Estados Unidos, mas que neste momento se opõem no campo militar, nomeadamente devido ao alegado apoio do Ruanda às forças rebeldes dos M23 no leste da RDC.

André Thomashausen: Absolutamente e é uma coisa bastante curiosa. O Ruanda é um aliado bastante íntimo dos Estados Unidos desde o começo do regime de Paul Kagame. A RDC, recentemente, com o Presidente Tshisekedi, também está muito fortemente ligada ao apoio americano. Há especulação de que Tshisekedi só conseguiu subir ao poder através da estratégia tácita dos Estados Unidos de aceitar e de legitimar um processo eleitoral que na altura (em 2018) estava completamente viciado, em desafio ao candidato que era apoiado pela União Europeia. Agora, o Blinken poderá tentar mediar os interesses do Ruanda e os interesses da República Democrática do Congo, mas isso -claro- não se faz com duas ou três conversas. Necessita um processo. Necessita credibilidade na mediação e não é a forçar. Os Estados Unidos estão numa fase da sua política externa em que querem forçar os resultados com muita impaciência, usando mesmo a chantagem e isso em África não vai ter resultado algum.

RFI: Isto acontece numa altura em que o próprio governo da RDC acaba de expulsar o porta-voz da missão da ONU no país. Equaciona-se a possibilidade de colocar em questão a própria presença dos capacetes azuis no leste da RDC (que tem sido bastante contestada em manifestações populares na região). Julga que isto pode piorar ainda mais?

André Thomashausen: Eu penso que estamos globalmente numa fase de fragmentação e de contestação. Possivelmente tem a ver com a experiência das restrições e da repressão durante o período da covid-19. Em todas as partes do mundo, há um elevado nível de conflitualidade e estamos a ver isso também em África. No Congo, em relação especificamente às Nações Unidas, esta missão fracassou e ficou viciada pelas práticas corruptas, pela má conduta do pessoal das Nações Unidas estacionado no Congo, estacionado demasiado tempo (desde 1999). Quando esses contingentes ficam num país durante anos, evidentemente que aparecem redes de tráfico de menores, de tráfico de droga, tráfico de munições e de armas e -claro- de ouro e de pedras preciosas. O Congo está um pouco cansado dessa presença externa e considerar que já não é necessária porque as suas próprias forças de defesa e segurança foram bastante bem reconstituídas e houve novas formações e um novo profissionalismo. A África do Sul que também mantinha lá dois batalhões, já começou a retirada desses batalhões que aliás foram parcialmente transferidos para o norte de Moçambique. É bom que os estados consigam reforçar as suas próprias capacidades e é bom que as Nações Unidas tomem consciência de que não estão a escapar à vaga de corrupção e de má governação que está a afectar praticamente o mundo inteiro.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.