Acesso ao principal conteúdo
Convidado

EUA: Polémica sobre documentos confidenciais é “arma de arremesso político”

Publicado a:

A descoberta de documentos confidenciais num antigo escritório e na garagem da residência privada do actual Presidente norte-americano, Joe Biden, datados do tempo em que ele era vice-presidente, já está a ser usada como “arma de arremesso político”. A investigadora Diana Soller admite que “é inevitável” que este caso seja comparado ao do ex-Presidente Donald Trump, mas considera que os Estados Unidos deveriam era aproveitar para resolver um grave “problema institucional”.

Conferência de imprensa no Departamento de Justiça norte-americano. Washington, DC, 12 de Janeiro de 2023.
Conferência de imprensa no Departamento de Justiça norte-americano. Washington, DC, 12 de Janeiro de 2023. Getty Images via AFP - CHIP SOMODEVILLA
Publicidade

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também guardou - alegadamente “por descuido” - documentos confidenciais encontrados num seu antigo escritório e na garagem da sua residência particular. Os documentos datam de quando era vice-presidente, ou seja, entre 2009 e 2017. Nos Estados Unidos, uma lei de 1978 obriga os presidentes e vice-presidentes a enviarem todos os seus e-mails, cartas e outros documentos de trabalho aos Arquivos Nacionais quando terminam os cargos.

O caso faz pensar na polémica que envolveu o ex-Presidente. Quando deixou a Casa Branca, em Janeiro de 2021, Donald Trump levou caixas com documentos e demorou quase um ano até os devolver. A polícia considerou que provavelmente haveria mais e agentes do FBI revistaram a sua casa e confiscaram outras trinta caixas aproximadamente.

Quais são as principais semelhanças e diferenças entre os dois casos? Que consequências, lições e impacto se devem tirar? Foi o que perguntámos a Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais.

RFI : “Que leitura faz do ‘timing’ da divulgação deste caso ?”

Diana Soller, Investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais: A questão de a polémica estalar agora ou não, é uma boa questão porque ainda é desconhecido, pelo menos tanto quanto eu sei, qual foi a origem da descoberta destes documentos.”

“Segundo os advogados, teriam sido os próprios advogados de Joe Biden a encontrarem esses documentos e a fazerem essa sinalização…”

“Certo, mas como é que se descobre numa garagem e num anexo de uma garagem uns documentos confidenciais assim do nada, não é? Temos a sensação que há uma parte da história que não está bem explicada. Ou seja, primeiro falou-se dos documentos terem aparecido num escritório que Joe Biden tinha na Universidade da Pensilvânia, depois já era na garagem numa das casas do Delaware…”

“Teria sido em ambos os sítios, de facto…”

“Exacto. Portanto, há aqui uma confusão. Ainda há uma nuvem à volta dos tais documentos que ainda não se consegue bem perceber.”

“Esta nuvem à volta dos tais documentos pode, de alguma forma, ser aproveitada politicamente?”

“A Câmara dos Representantes já se expressou vivamente relativamente a estes acontecimentos. Inclusive já se têm queixado de que a forma como Donald Trump foi abordado, quando houve um problema com documentos confidenciais, foi completamente diferente - o que não é bem verdade uma vez que Trump se recusou a entregar documentos e Biden não parece estar a seguir pelo mesmo caminho. e principalmente porque a polarização nos Estados Unidos é de tal forma grande que a tradição, hoje em dia, no Senado, no Congresso, na Câmara dos Representantes é efectivamente aproveitar politicamente qualquer pequeno pormenor para tentar desacreditar o opositor.”

“O grande desafio de Joe Biden, que deverá concorrer à sua reeleição, em 2024, é evitar que o seu caso seja comparado ao do seu antecessor, Donald Trump, que já apresentou a sua candidatura?”

“Mas isso é inevitável. Isso não há nada que se possa fazer. Isto às tantas é uma pescadinha de rabo na boca, como se diz em linguagem comum, porque os democratas também - e enfim não vamos descurar o facto de que o Presidente Trump era um presidente errático com muito menos respeito pelas instituições do que tem o Presidente Biden e tudo isso é verdade - mas a oposição democrata quando Trump foi Presidente também foi absolutamente feroz e também esteve permanentemente a tentar encontrar causas para tentar denegrir a imagem do Presidente. Muitas delas que não deram em nada, por exemplo, os dois ‘impeachments’ de que Trump foi alvo. Eles até poderiam ser verdadeiros, até poderiam ter razões por trás dos ‘impeachments’, mas a verdade é que nós sabíamos à partida que eles não iam passar. Foi uma tentativa de um grande desgaste político do Presidente em exercício.

Ora, é natural, que agora a oposição republicana faça exactamente a mesma coisa, ou seja, que explore todo o tipo de pequenas ou maiores questões, sendo que isto do meu ponto de vista não é uma pequena questão.”

“Não é uma pequena questão porquê?”

“Estamos a falar de presidentes que têm consigo documentos confidenciais. Documentos confidenciais são confidenciais por alguma coisa. Em regra geral, são confidenciais porque se forem vistos pelos olhos errados podem pôr em questão a segurança nacional, portanto isto não é uma pequena coisa, isto é um assunto muito sério, quer do ponto de vista de Trump, quer do ponto de vista de Biden.”

“Quais é que são os riscos legais para Joe Biden e para Donald Trump, sabendo que conservar documentos classificados é um crime se for considerado como intencional?”

“O que pode acontecer é aquilo que já aconteceu com outros casos como [David] Petraeus, como Sandy Burger que pagaram multas avultadas e tiveram pena de prisão suspensa, portanto, os crimes podem ir até aí se se provar que houve dolo, responsabilidade. Agora, o que deveria estar a acontecer se os Estados Unidos não estivessem tão polarizados, se nem tudo servisse para criar um problema político, o que deveria estar a haver era um debate nacional sobre estas questões dos documentos classificados que aparentemente andam a passear em malas de responsáveis políticos do mais alto nível em quase todas as administrações.”

“O Presidente Joe Biden já falou em ‘erro’, o advogado da Casa Branca disse confiar em que ‘uma revisão exaustiva mostre que esses documentos foram levados por descuido’, mas como é que se levam documentos por descuido e como é que se deixam tantos anos esses documentos na posse do antigo vice-presidente?”

“A mim parece-me que essa é que é a verdadeira questão: como é que se chegou a um problema institucional. Quer dizer, não é o primeiro caso. No caso de Biden não se sabe, sabemos aquilo que a comunicação social e que os advogados vão dizendo e que é muito pouco. Em relação a Donald Trump sabemos que ele aparentemente levou os documentos para casa porque quis e nem os quis entregar ao Arquivo Nacional. Por exemplo, em relação a Petraeus sabemos que ele partilhou documentos confidenciais com a namorada que era a sua biógrafa. Estamos a falar da administração Bush. Em relação a Sandy Burger sabemos que ele levou os documentos nas calças porque queria trabalhar em casa (ele fazia parte da administração Clinton).

Isto já é um tipo de questão que começa a ser demasiado recorrente para ser usada apenas como arma de arremesso político e não para ser levada a sério. Porque, na realidade, estamos perante pessoas com o cargo mais alto, e noutros casos, dos mais altos – recordo, por exemplo, que Petraeus era o director da CIA na altura em que isto aconteceu - que passeiam documentos confidenciais pelos Estados Unidos. Não me parece que isso seja propriamente alguma coisa que podemos encarar com leviandade e acho que a própria Câmara dos Representantes deveria ter mais respeito institucional e tratar este caso como ele deve ser tratado que é junto da justiça, esperar para ouvir aquilo que a justiça tem a dizer e depois então fazer comentários relativamente a tudo isto.

Agora, o ambiente nos Estados Unidos é tão crispado que isso já não é possível, simplesmente já não é possível. Já se chegou um momento de banalização institucional que assuntos de Estado sérios são usados como armas de arremesso político - que é uma coisa que é muito negativa, quer para a democracia americana, quer para a percepção que os americanos têm das instituições que já é muito baixinha.”

“Em termos de semelhanças, já vimos que Joe Biden e Donald Trump guardaram indevidamente dossiers confidenciais. Quais é que são as diferenças e até que ponto podem ter peso junto da opinião pública?”

“A principal diferença, pelo menos até agora, é o facto de nós sabermos que Donald Trump sabia que tinha os documentos, que teve uma série de tempo a negociar com o Arquivo Nacional para restituir parte dos documentos. Não os restituiu todos, sabendo que os tinha. Teve que haver um raide policial do FBI para a recuperação dos documentos. Isto é aquilo que nós sabemos acerca de Donald Trump.

Acerca de Joe Biden não sabemos, mas sabemos que há uma diferença significativa que é: Biden entregou os documentos de livre e espontânea vontade, aparentemente assim que soube que tinha os documentos em sua posse - que é outra coisa difícil de compreender, como é que alguém tem documentos confidenciais em sua posse e não sabe - e está a colaborar com a justiça dentro de todas as suas possibilidades.

Há, efectivamente, uma diferença significativa que é da parte de Trump: zero respeito institucional. O ex-Presidente achou que poderia reter os documentos que quisesse, o que é um crime, e o Presidente actual aparentemente não sabia que tinha os documentos e está a fazer um esforço de colaboração com a justiça. São as grandes diferenças entre os casos que evidentemente transformam o caso de Biden em muito atenuante porque uma coisa é uma pessoa manter documentos confidenciais consigo, sabendo que os mantém e recusando-se a entregar ou a colaborar com a justiça, outra coisa é uma pessoa não saber…”

“Como é que se pode não saber?”

“Não sei. Acho verdadeiramente extraordinário. Tirando essa parte, este Presidente, pelo menos, parece estar convicto que é importante colaborar com a justiça e resolver o assunto o mais rapidamente possível, portanto, tem uma atitude muito mais institucional e muito mais cumpridora da lei. Disso não há dúvidas nenhumas. Agora, isso não invalida que estejamos perante um caso grave.

É interessante também dizer que é mais provável que este caso tenha mais impacto em Joe Biden do que o caso Trump tenha impacto em Trump.”

“Porquê?”

“Porque os eleitorados são diferentes. O eleitorado de Trump está muito virado para a teoria da conspiração, já se começou a ouvir dizer que Trump foi muito mais maltratado pela justiça do que Biden está a ser - o que não é verdade porque Trump foi mais, entre aspas, maltratado pela justiça porque se recusou a colaborar…”

“Entretanto, já foi nomeado um Procurador para investigar também o caso de Joe Biden…”

“E bem! Porque o que a justiça está a tentar fazer é precisamente não fazer uma distinção entre os dois presidentes. O que fez foi nomear procuradores especiais para cada um dos casos. Mas isso está tudo certo.”

“E em relação aos diferentes eleitorados…”

“O eleitorado de Trump é um eleitorado que aceita muito melhor e que até elogia, de alguma maneira, este tipo de quase desprezo institucional do ex-Presidente porque é uma forma de resistência contra o sistema, etc. O eleitorado de Biden é um eleitorado muito mais institucional, muito mais cumpridor da lei, muito mais a favor do cumprimento da lei e, portanto, é natural que o impacto político para Joe Biden seja mais negativo do que o é para Donald Trump porque os eleitorados têm visões diferentes do papel institucional do Presidente e do papel institucional da Justiça.”

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.