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Regime talibã “mais preocupado com a sua sobrevivência do que com a população”

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Foi há dois anos que os talibãs retomaram o poder no Afeganistão. Apesar das promessas de que o país teria um governo mais flexível do que na sua primeira etapa no poder [1996 e 2001], os direitos das mulheres foram apagados e vive-se uma catástrofe humanitária e uma crise económica severa. Neste programa, ouvimos a análise de Calton Cadeado, especialista em Relações Internacionais, que resume que “este regime está mais preocupado com a sobrevivência no poder do que com a população”.

Mulheres em Kandahar, 21 de Junho de 2023.
Mulheres em Kandahar, 21 de Junho de 2023. AFP - SANAULLAH SEIAM
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RFI: Dois anos depois do retorno ao poder dos talibãs no Afeganistão, a situação humanitária piorou. Porquê?

Calton Cadeado, especialista em Relações Internacionais e Estudos de Conflitos:Infelizmente por causa da deficiência de funcionamento do Estado. Segundo, por causa das sanções, entre aspas, que estão a ser aplicadas aos novos governantes ou ao novo regime que está no poder na actualidade. Terceiro e último, posso dizer que é uma combinação de factores domésticos e internacionais que fazem esta situação se deteriorar.

Houve uma redução acentuada este ano na ajuda humanitária e nenhum governo estrangeiro reconhece formalmente o regime. Finalmente, isto prejudica muito mais a população do que o regime talibã. Qual é que seria a solução? Restabelecer relações com o regime talibã? Reconhecê-lo?

Neste momento, é importante ver porque é que infelizmente as sanções tocam no povo. Tocam no povo, infelizmente, porque acredita-se que é por via do cansaço - ou do castigo, entre aspas - de modo a que seja o povo o primeiro a se revoltar ou a se rebelar contra o governo e dar o sentido endógeno, dentro do Afeganistão, para reverter a situação.

O segundo aspecto é que é preciso, segundo a comunidade internacional, mostrar insatisfação e descontentamento contra este tipo de regimes que são absolutamente anti-direitos humanos, nomeadamente direitos das mulheres. Por último, é preciso olhar para esta situação como uma situação que não depende apenas da vontade das pessoas de dentro do Afeganistão, mas é um problema, digamos, de crime público internacional em que todos devem ser envolvidos, nem que para isso haja sacrificados dentro do Afeganistão. Infelizmente, é moralmente difícil perceber isto, aceitar isto, mas esta é a forma de funcionamento.

E quando se aceita isso, como é que se resolve e como é que se ajuda directamente a população? O que é que a comunidade internacional deveria fazer?

Neste momento é difícil. É um dilema muito grande para a comunidade internacional. Como ajudar a população sem ajudar o governo e como punir o governo sem punir a população? Este é uma equação extremamente difícil. Por isso é que alguns colocam a possibilidade de fazer apoio directo a organizações civis no Afeganistão. Mas, ao fazer isso, o governo talibã quererá e vai com certeza assumir o controlo rígido sobre este tipo de projectos e, no final do dia, esses projectos acabarão por legitimar ou dar legitimidade ou força a este governo que precisa, na opinião da comunidade internacional, de ser enfraquecido o máximo possível para colapsar e dar lugar a um governo que seja mais pró-direitos humanos, sobretudo, mais pró-direitos humanos das mulheres.

As restrições aos direitos das mulheres - praticamente banidas dos espaços públicos, do mercado de trabalho e da educação - são um grande obstáculo nas negociações sobre o reconhecimento e a ajuda internacional… Porquê este terror dos talibãs pelas mulheres? Para controlar o país, têm de controlar as mulheres?

Há uma razão que é de fundamentalismo, extremismo, eu arrisco-me a dizer. Este grupo que está no poder acredita fielmente e interpreta fielmente os valores da religião muçulmana - quanto a mim de forma errada, mas quem sou eu para os julgar, só me dou o direito de os julgar porque estão a violar os direitos das mulheres. Mas eles são livres de interpretar como querem interpretar, conquanto que isto não signifique violar gravemente, como estão a violar agora, os direitos das mulheres. É uma questão de convicção.

Também me parece que é uma forma de interpretar a forma - desculpe a repetição - de ser e estar de um Estado porque se acredita que é na mulher onde se pode fazer um controlo cerrado para alguma sobrevivência deste regime. Como? Essa é uma coisa que nós ainda temos que pesquisar porque há muitas coisas que estão nubladas. Mas é por aí onde se vê a questão dos direitos políticos que se pretende fazer valer para um determinado regime sobreviver.

O facto de se afastar as mulheres do mercado de trabalho custa cerca de cinco milhões de dólares ao Afeganistão em termos económicos. Isto é um tiro no pé…

É um tiro no pé, mas assume-se como um controlo político a partir de casa, das mulheres, traduz-se também no espaço público mais alargado. Isso só acontece por causa da visão fundamentalista, reducionista e até extremista de interpretar os valores da religião muçulmana que, quanto a mim, estão a ser mal interpretados - mas sublinho novamente: quem sou eu para dizer isto aos talibãs, só sou contra a forma como eles tratam os cidadãos. Esse é o primeiro aspecto que podemos olhar a partir do controlo da sociedade, a partir das famílias e dar um poderio mais assente no patriarcado, nos homens, fazer disto uma forma de ser e estar do Estado. Então, a partir do momento em que eles dão mais poder aos homens na sociedade, a sociedade familiar também fica controlada de forma excessiva por isto.

Em termos económicos, para eles não faz muita diferença ter muitas mulheres no desemprego porque se a convicção é que os homens é que são os provedores, aos homens cabe a tarefa de fazer a renda, o dinheiro para o Estado e para as famílias. Então, se for por aí, não acho que seja o ponto forte para pegar o regime talibã.

O país enfrenta uma grave crise económica.  O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas afirma que 15,3 milhões enfrentam insegurança alimentar aguda no país, que tem quase 42 milhões de habitantes. A Human Rights Watch fala em 28 milhões de pessoas que precisam de ajuda de emergência, ou seja, dois terços da população. Esta insegurança alimentar é resultado de desemprego, de décadas de guerra, de três anos de seca... Qual é o balanço económico desde que o regime talibã regressou ao poder?

Infelizmente, este regime está mais preocupado com a sua sobrevivência no poder do que necessariamente com a população. Um exemplo claro é ver o seu povo a morrer à fome, mas desde que isso não perturbe a sua sobrevivência no poder, não há problema. Igual a este regime, nós temos a mesma coisa na Coreia do Norte. Temos um regime mais preocupado com a sua sobrevivência no poder do que necessariamente ficar preocupado quando a população está a morrer à fome. Até porque o sistema de controlo é tão rígido e apertado que não permite que as pessoas tenham esse espaço à vontade para lutar e fazer o reverso deste modo de ser e de estar do Estado.

Então, para eles não é uma grande preocupação. Será uma grande preocupação quando esta insegurança alimentar, quando este desemprego, quando este colapso económico gerar grupos internos armados que tenham poder de pôr em causa a sobrevivência do regime. Acredito que esta é uma das formas que a comunidade internacional pensa ser a forma mais ideal de fazer o derrube deste regime, endógena, e não tanto quanto aconteceu no passado por via de uma intervenção externa porque vimos os resultados desastrosos que teve e o custo económico que isso criou para o Ocidente. A crise económica, a crise alimentar infelizmente estão lá. É uma forma imoral, dolorosa de fazer com que o processo seja endógeno e surjam grupos endógenos dentro do Afeganistão para fazer o reverso da situação.

Mas pode haver, se calhar, outra interpretação. De um ponto de vista económico, o facto de os talibãs terem entrado numa espécie de economia de subsistência e de terem suspendido projectos que dependiam de financiamento externo, não mostra uma certa autonomia? Ou o facto de contarem com outros parceiros como o Irão, o Uzbequistão, não acaba por lhes dar uma certa imagem política que vai ao encontro daquilo que eles querem?

Esses apoios só são suficientes para ajudar a sobrevivência do regime talibã. Este regime não se importa de sacrificar o seu povo para garantir a sua própria sobrevivência. Infelizmente, esta é a triste notícia, dura, mas real, que se vive no terreno. A preocupação é a sobrevivência do regime. O regime está implantado e está a ser implantado para ter uma presença forte e um controlo da população quanto for necessário para garantir que a sua sobrevivência seja salvaguardada.

Do ponto de vista da segurança, os talibãs prometeram “paz e estabilidade”. Parece haver menos atentados, apesar de o Estado Islâmico estar presente. Como está a situação interna?

Esse é o lado paradoxal da coisa que ajuda na sobrevivência do regime porque, de facto, quando analisamos a situação do antes e do depois, nota-se que houve uma redução do nível de atentados bombistas, mas não significa necessariamente uma redução da insegurança no Afeganistão. Este regime vive inseguro. Este regime vive uma ameaça permanente porque sabe que é um regime indesejado, com muitos inimigos dentro e fora do Afeganistão. O que vale, neste momento, é que eles conseguem controlar a população interna, mas não conseguem controlar os grupos terroristas que estão ali à espreita e a qualquer momento podem intervir.

Por último, é que este regime sabe que já esteve no poder e foi derrubado. Voltou ao poder por um derrube de um governo e não tem a certeza que também não será derrubado por um outro regime. O que não se pode diminuir em termos de confiança deste grupo é que, provavelmente, dentro do próprio regime, não existirão, a curto prazo, tentativas de fragilizar o regime.

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