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Cimeira dos BRICS: "O grande desafio é o de acertarem qual é o rumo do grupo"

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Desde hoje e até ao dia 24 de Agosto decorre em Joanesburgo a 15ª cimeira dos BRICS, o bloco juntando o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, para evocar nomeadamente o seu eventual alargamento, com 40 países a expressarem o seu interesse em integrar o grupo e uns 20 a formalizarem a sua candidatura.

Os líderes dos BRICS, Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil,) Vladimir Putin (Rússia,) Narendra Modi (India,) Xi Jinping (China) e Cyril Ramaphosa (África do Sul)
Os líderes dos BRICS, Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil,) Vladimir Putin (Rússia,) Narendra Modi (India,) Xi Jinping (China) e Cyril Ramaphosa (África do Sul) © Página web da cimeira dos BRICS
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Os cinco países que juntos produzem 18% das riquezas mundiais e representam cerca de 42% da população global têm cada vez mais a ambição de pesar economicamente mas também politicamente face à ordem estabelecida pelos ocidentais e em particular pelos Estados Unidos.

Numa tribuna publicada ontem na imprensa sul-africana, o Presidente chinês declarou que os dirigentes da cimeira vão exortar a comunidade internacional "a promover um papel mais importante do mecanismo de cooperação dos BRICS na governação mundial". No mesmo sentido, o presidente Lula também tem, em múltiplas ocasiões, apelado a uma reforma das Nações Unidas.

Dotado de um Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) com o objectivo de ser uma alternativa ao FMI e ao Banco Mundial, o grupo também pretende sair da alçada do Dólar nas suas trocas comerciais.

Num contexto de crescentes questionamentos sobre a hegemonia ocidental e numa altura em que as negociações para uma maior harmonização económica a nível mundial -o chamado ciclo de Doha- continuam bloqueadas, são vários os países que se mostram interessados em juntar-se aos BRICS, nomeadamente o Irão, a Arábia Saudita ou ainda a Etiópia.

Paulo César Manduca, professor de Ciências políticas na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no Brasil, não esconde algum cepticismo sobre a possibilidade de os BRICS virem a pesar no imediato sobre a governação mundial. Na sua óptica, precisa definir a sua linha.

RFI: O que é que torna os BRICS tão atraentes para potenciais novos membros?

Paulo César Manduca: É importante observar que não existe nenhuma outra articulação nesse campo, sul, global ou emergente, fora os BRICS, que tenha sobrevivido neste início de século, nestes 20 anos. O G20 não evoluiu depois da última tentativa de destravar a rodada de Doha. Vamos lembrar que naquela tentativa, o Brasil acabou por se isolar ao tentar liderar os grupos em desenvolvimento para aceitar uma série de acordos para destravar a rodada de Doha e aquilo acabou ferindo mortalmente o G20. Agora há uma expectativa em torno dessa única articulação que sobreviveu, mas que é também uma articulação bastante complicada na sua origem. A África do Sul é um país que caminha para uma crise que inclusive é marcada pelo agravamento de tensões não só no campo económico, mas também pelo ressurgimento de tensões raciais. A Rússia é um país imperialista e expansionista e a China é também um país expansionista, veja-se as tensões inclusive com um outro membro dos BRICS que é a Índia. O Brasil é um país que tenta ter um trênsito melhor no mundo, mas até agora, as tentativas de retornar ao mundo diplomático nas condições em que estava antes da crise política no Brasil que levou à vitória de uma excrescência política que foi o governo Bolsonaro e a remilitarização do governo, o 'novo-velho' governo brasileiro ainda não conseguiu achar o diapasão correcto. Então é um grupo muito complicado e cada passo precisa ser bem analisado porque se aliar hoje à Rússia, em particular, mas a China também -com a tensão entre a China e ocidente que vem crescendo- para o Brasil, em particular, é uma situação muito arriscada.

RFI: Evocando o caso mais imediato da Rússia que está em conflito neste momento com a Ucrânia, julga que o assunto "guerra na Ucrânia" vai estar em cima da mesa? Julga que eventualmente os quatro outros países do bloco vão tentar influenciar a Rússia para encontrar uma solução a esta crise?

Paulo César Manduca: É muito complicado saber o que vai acontecer. O Presidente Putin não estará presente, mas estará presente o Lavrov (Ministro russo dos Negócios Estrangeiros) que, em entrevistas e na própria biografia, mostra que é 'pro-czar'. Então é de se imaginar que vá usar toda a sua capacidade de argumentação para manter a tentativa de um apoio maior desses parceiros, mas ao mesmo tempo há de se pensar também que particularmente o Brasil e a China já sofreram algumas consequências de isolamento, por conta de terem demonstrado apoio no início do conflito, hoje estes países estão um pouco mais reticentes em colocar esse tema de forma a parecer que existe uma articulação em apoio ao governo russo. Imagino que numa eventual declaração final dessa reunião dos BRICS, vai se reproduzir a mesma ladainha que o Presidente Lula faz em todos os momentos, que é uma ladainha completamente vazia do ponto de vista político e estratégico, que é apelar a "uma negociação, à paz", coisas que são de um discurso completamente vazio porque não existe a menor condição de se falar em paz quando um país está sendo invadido como é o caso da Ucrânia.

RFI: Voltando à questão do alargamento: de acordo com Pretória, há uma série de países que mostraram interesse em integrar o bloco, nomeadamente a Arábia Saudita, o Irão, ou ainda a Etiópia, países que estão em fases diferentes, em termos económicos e em termos políticos, também com interesses muito diversos e até contrários em certos aspectos. Até que ponto é que os BRICS, integrando mais países, não vão arranjar ainda mais problemas?

Paulo César Manduca: O grande desafio que acho que os países actualmente membros desse grupo vão enfrentar é o de eles acertarem qual é o rumo do grupo. Se é um grupo para ser ideológico, aí, o canal que daria uma certa identidade ao grupo, seria uma visão contra-hegemónica, com um sistema multipolar mais favorável a esses países. Então, aí, parece que um candidato realmente forte a fazer parte dos BRICS, a Arábia Saudita, as manchetes falam de um genocídio da Arábia Saudita contra uma população de migrantes de origem etíope. Esse é o tipo de parceiros que estão a aglutinar-se: países como a Rússia que está a cometer um genocídio e a China que comete genocídios. Então, acho que uma aliança ideológica já nasce sem credibilidade por conta dessas questões. Agora, vamos pensar se seria possível uma aliança no campo económico. Mais uma vez, não temos exactamente ideia de como poderia vir a funcionar um arranjo entre esse tipo de países. Se os BRICS forem ampliados, o Brasil quer que a Venezuela faça parte. É um conjunto de países cujas crises internas e cujo isolamento económico é muito comprometedor. Realmente, é muito difícil prever qual será o futuro dos BRICS.

RFI: O Brasil e a China, no começo deste ano, estabeleceram um acordo para as suas trocas comerciais serem trocas nas suas respectivas moedas. A prazo, um dos projectos dos BRICS é precisamente contornar o 'todo-poderoso' Dólar. Acha esse objectivo viável?

Paulo César Manduca: Tenho uma visão muito pessimista em relação à possibilidade de trocas bilaterais serem realizadas nas moedas nacionais. Se o Brasil aceita a moeda chinesa, a China deveria aceitar a moeda brasileira. Como as trocas são estruturalmente desproporcionais -a China importa basicamente alimentos e 'commodities" brasileiras e o Brasil importa produtos sofisticados da China- não há uma troca, a não ser que o Brasil aceite ficar com cada vez mais défices e acumular moeda que não tem um laço internacional, só teria um laço com a própria China. Isso é um contra-senso do ponto de vista da economia. Isso -aliás- é muito mais um evento político do que realmente um compromisso que vai ser colocado em prática. Esses acordos com a China aparecem como uma panaceia, como se todos os problemas fossem ser resolvidos por essas conversas. Nem o investimento chinês há alguns anos atrás anunciados para a concessão de ferrovias transcontinentais, isso tudo ficou nos rituais diplomáticos, deu bastantes páginas nos jornais, deu bastante reunião e bastante comentário, mas isso são panaceias, são coisas que se fazem apenas para manter esses políticos na imprensa. Eu sou muito céptico e muito crítico sobre o governo brasileiro em relação a essas coisas todas. É muito mais discurso, muito mais eventos diplomáticos e muito menos realização.

RFI: Num âmbito mais largo, julga que os BRICS têm alguma possibilidade de se imporem como uma alternativa à ordem mundial existente actualmente?

Paulo César Manduca: Se a gente fizer uma análise conforme os dados que temos, eu diria que hoje as condições desses países, com a excepção talvez do Brasil que está a recuperar de um período político e económico realmente muito conturbado, e o governo tem sido um excelente governo se comparado com o anterior, essa não é a realidade de três outros membros dos BRICS. Não é a realidade da Rússia, não é a realidade da China e não é a realidade da África do Sul. A crise da África do Sul é uma coisa avassaladora. A Rússia é um país em isolamento e todos os dados vêm mostrando que a economia russa está num declínio muito forte em função dos gastos da guerra e do isolamento. O governo de Putin perdeu um aliado importante que é a Turquia que agora está muito mais do lado do campo ocidental do que pró-Moscovo. A China é um universo que também não está no seu período economicamente mais dinâmico. Pelo menos em termos de potência económica, já não é tão grande quanto foi há dez ou quinze anos atrás. Então, a China também tem que resolver muitos problemas em função disso. Não se vê o quanto esses países juntos, eles vão conseguir se contrapor à hegemonia corrente.

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