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Conflitos do Médio Oriente e da Ucrânia em cima da mesa no Conselho Europeu

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Os 27 reúnem-se a partir de hoje e até esta sexta-feira, em Bruxelas, naquele que é o penúltimo Conselho Europeu do ano. A agenda desta reunião está sobrecarregada, tendo em conta o contexto internacional muito denso. Entre os grandes dossiers figuram a situação no Médio Oriente, sem esquecer a guerra na Ucrânia ou ainda a instabilidade nos Balcãs, assuntos sobre os quais a unanimidade nem sempre tem sido fácil de encontrar.

Os 27 reúnem-se a desde esta quinta-feira à tarde, 26 de Outubro, até amanhã, em Bruxelas. Para este penúltimo Conselho Europeu do ano, a agenda está sobrecarregada, tendo em conta o contexto internacional muito denso.
Os 27 reúnem-se a desde esta quinta-feira à tarde, 26 de Outubro, até amanhã, em Bruxelas. Para este penúltimo Conselho Europeu do ano, a agenda está sobrecarregada, tendo em conta o contexto internacional muito denso. REUTERS/Yves Herman/Pool
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Relativamente ao Médio Oriente onde o Presidente francês acaba ontem de fazer uma digressão durante a qual propôs a criação de uma coligação internacional contra o Hamas, tratar-se-á de detalhar essa proposta, mas sobretudo, vai ser discutido o projecto de declaração conjunta apelando a "pausas humanitárias" e não taxativamente a um cessar-fogo humanitário, dadas as divisões existentes entre os países-membros que como a Espanha ou a Irlanda apelam precisamente ao fim dos combates, enquanto países mais alinhados sobre Israel como a Alemanha e a Áustria, apelam a "janelas humanitárias".

Outro dossier em cima da mesa e sobre o qual a Europa conseguiu, até agora, manter-se mais unida, é a Ucrânia. Contudo as incertezas que pairam sobre a capacidade do ocidente em continuar a apoiar à Ucrânia, com a crise orçamental nos Estados Unidos que continua a condicionar esta ajuda, e a chegada ao poder na Eslováquia de um governo que acaba de confirmar a sua intenção de pôr termo à ajuda a Kiev, colocam interrogações.

Foi sobre estes assuntos que conversamos com a antiga eurodeputada Ana Gomes que começa por evocar a situação no Médio Oriente e as divisões que têm paralisado a Europa neste dossier.

RFI: A coordenadora de assuntos humanitários das Nações Unidas para os territórios palestinianos alertou esta quinta-feira, 26 de Outubro, que “nenhum lugar é seguro em Gaza” por causa da intensificação dos bombardeamentos israelitas. Como se explicam as divisões no seio da Europa perante a situação no Médio Oriente?

Ana Gomes: Há vários países que têm ainda complexos, em particular a Alemanha, pelas responsabilidades relativamente ao povo judeu no Holocausto. Há outros países europeus que têm semelhantes complexos e é isto que tem feito a Europa não ter uma voz e uma liderança que obviamente deveria ter no processo de paz no Médio Oriente. Por isso é indesculpável que, estando nós a assistir pela televisão a esta matança que está a ocorrer na Palestina e em Gaza especificamente, através dos bombardeamentos que estão a punir todo o povo de Gaza, obviamente que não podemos de maneira nenhuma o massacre terrorista que o Hamas perpetrou em Israel com terríveis consequências, mas da mesma maneira não podemos ignorar aquilo que estamos a ver nas nossas televisões que é a punição colectiva do povo palestiniano em Gaza. Por isso, temos que dizer a Israel o direito de defesa tem os seus limites, no direito humanitário, no direito da guerra. Israel está a violá-los como tem violado sistematicamente todas as resoluções das Nações Unidas há décadas e tem que parar de bombardear no fundo o Direito Internacional, tem que cumprir as resoluções das Nações Unidas, tem antes de mais de parar com o bombardeamento de Gaza que, para muitos, significa que há uma tentativa da extrema-direita no poder em Israel, neste momento, de operar uma limpeza étnica de Gaza e isto tem que ser parado. A voz da Europa tem que se ouvir para travar esta matança porque, senão, nós somos absolutamente cúmplices dela como já fomos cúmplices -e até executores- das mais bárbaras agressões ao povo judeu, no Holocausto, nas inquisições, etc.

RFI: Qual pode ser a intervenção da Europa neste dossier, para além dessa declaração para que haja um cessar-fogo ou uma pausa humanitária? O que é que concretamente a Europa pode fazer relativamente ao Médio Oriente, a seu ver?

Ana Gomes: Esse cessar-fogo ou pausa humanitária tem que obviamente procurar desde já dar um mínimo de espaço de respiração ao povo palestiniano, permitir que a ajuda humanitária entre. Ela é absolutamente urgente face às barbaridades que estamos a assistir. Estar a operar mulheres e crianças sem analgésicos, em condições terríveis como sabemos que está a acontecer neste momento em Gaza, continuar a haver assassinatos selectivos como aquele que aconteceu à família daquele jornalista da Al Jazeera ontem (a família do jornalista Wael Al Dahdouh), não podem continuar. A Europa tem que se ouvir porque, senão, a Europa não é minimamente credível e consequente com os valores dos Direitos Humanos que diz defender. E depois, a Europa tem que obviamente olhar para o longo prazo. Tem que voltar a insistir pela retomada do processo de paz, em que o interlocutor não é o Hamas. O interlocutor tem que ser a Alta Autoridades Palestiniana, ela tem que ser reforçada, tem que haver eleições, tem de ser legitimada aos olhos dos palestinianos. A Europa tem que desempenhar um papel neste processo de construção da paz e ela vai necessariamente pela solução de dois Estados ou por uma estrutura estadual que garanta os mesmos direitos a palestinianos e israelitas e quaisquer outros cidadãos que vivam na Terra Santa.

RFI: O Presidente da Alta Autoridade Palestiniana não tem sido propriamente ouvido a nível internacional. Em compensação, o Hamas tem tido muito terreno. O que é que acha, por exemplo, daquela proposta que Emmanuel Macron fez, durante a sua digressão no Médio Oriente, de se lançar uma coligação internacional contra o Hamas?

Ana Gomes: Eu acho que o Hamas só tem a proeminência que tem porque Israel escolheu, e designadamente os governos de extrema-direita de Netanyahu, privilegiar o Hamas, deixar encaminhar para o Hamas o financiamento do Qatar e as armas do Irão, numa política de 'dividir para reinar' e deslegitimar a autoridade palestiniana, exactamente com o propósito de impedir o processo de paz de chegar à solução de dois Estados, impedir um Estado palestiniano viável, e portanto impedir a paz. O governo de Israel tem muita responsabilidade, para além do falhanço colossal que foi o ter havido este ataque hediondo do Hamas a Israel, porque falharam todas as soluções tecnológicas, porque o governo de Israel disse ao povo que o protegia e que afinal não o protegia. A única coisa que pode proteger Israel, dar-lhe segurança e paz, é um processo de paz, é a paz com os seus vizinhos palestinianos. Neste sentido, nós temos absolutamente que não permitir que um grupo terrorista como o Hamas seja erigido como representante do povo palestiniano, que não é. A Autoridade Palestiniana tem que ir a eleições democraticamente, a Autoridade Palestiniana reconheceu o Estado de Israel e tem que ter condições para ter um Estado viável, governável e que efectivamente faça a paz com Israel. Esta é a única solução de segurança para Israel e -sim- a Europa tem que se empenhar e por quaisquer vias, designadamente as que Emmanuel Macron possa explorar, porque obviamente nós precisamos de liderança europeia. Infelizmente não a vimos da parte de Ursula Von der Leyen, pelo contrário. Por conseguinte, mais do que nunca, precisamos que líderes como Emmanuel Macron tentem fazer alguma diferença para, de facto, voltar a reencaminhar o processo de paz no Médio Oriente, um processo de paz que obviamente tem como interlocutor privilegiado de Israel uma Autoridade Palestiniana democraticamente legitimada, que faça a paz, porque só isto é que pode dar segurança a Israel e paz à região.

RFI: Outro dossier em cima da mesa neste Conselho Europeu é a continuidade do apoio da Europa à Ucrânia, um apoio sobre o qual -até agora- tem havido alguma unanimidade mas que tem vindo a fissurar-se. A Hungria, por exemplo, mostra-se pouco propensa a apoiar a Ucrânia e agora também a Eslováquia, cujo novo governo acaba de anunciar que efectivamente vai acabar com a ajuda à Ucrânia. Até que ponto é que a Europa pode continuar a gerir este dossier, tendo em conta também que há aquela crise orçamental nos Estados Unidos que até agora bloqueia o financiamento da ajuda à Ucrânia?

Ana Gomes: Essa crise orçamental dos Estados Unidos vai-se agravar com a escolha do líder republicano há dois dias (a eleição de Mike Johnson, apoiante de Trump, como novo "speaker" do Congresso americano). é uma escolha trágica para os Estados Unidos e trágica para a Ucrânia porque é evidente que ele vai fazer tudo para bloquear a ajuda à Ucrânia. Quem neste momento esfrega as mãos de contente é a Rússia, como esfrega as mãos de contente por ter vários cavalos de Tróia dentro da União Europeia, designadamente a Hungria de Orban e agora a Eslováquia de Fico. Felizmente que houve aqui uma viragem democrática contra os populistas da Polónia, com as últimas eleições, o povo polaco demonstrou que o populismo pode ser derrotado democraticamente. Eu espero que no Conselho Europeu haja a lucidez de ver que não podem continuar a alimentar e a financiar esses cavalos de Tróia da Rússia dentro da própria União Europeia que minam não apenas a solidariedade com a Ucrânia, mas minam a própria União Europeia, porque o objectivo da Rússia -em última análise - é destruir a União Europeia. Por isso, acabou o tempo das ilusões e acabou o tempo da hipocrisia. O Conselho Europeu tem que assumir que tem dentro de si alguns países que funcionam como cavalos de Tróia de Putin e não pode continuar a alimentá-los e a financiá-los.

RFI: Em cima da mesa nesta cimeira está nomeadamente a possibilidade de os 27 abrirem um fundo de vários biliões de Euros sobre 4 anos para continuar a apoiar a Ucrânia.

Ana Gomes: A questão não é apenas económica. Também é, mas não é apenas económica. É todo o apoio político e também militar. A União Europeia tem aí que assumir que precisa de músculo militar, precisa de investir nas suas indústrias e tecnologias de defesa. Precisa ter munições, precisa de ter equipamentos, para fornecer à Ucrânia porque a Ucrânia está a lutar por nós. Portanto, a União Europeia tem que assumir que área da defesa e da segurança é uma área onde tem absolutamente de investir rapidamente e construir capacidades que eles não têm, que os Estados Unidos têm mas que -por causa das suas dificuldades internas- vão ter mais dificuldades em fornecer à Ucrânia. Mais do que nunca, a Europa tem que chegar à frente. Temos que interiorizar que a guerra na Ucrânia é a nossa guerra, é a guerra pela preservação da democracia e dos valores europeus.

RFI: Nesta cimeira está também em cima da mesa a questão dos Balcãs e a instabilidade que se tem registado entre a Sérvia e o Kosovo. Os dirigentes destes dois países aliás estão presentes nesta cimeira para discussões à margem. Como é que a União Europeia pode intervir para estabilizar esta situação?

Ana Gomes: Mais uma vez, este é um conflito que não está agora a agudizar-se por acaso. É porque obviamente há aí o dedo da Rússia designadamente com as ligações que tem com a Sérvia e que procuram explorar todos os processos de debilitação da própria União Europeia e da criação de constrangimentos à União Europeia. A Europa tem que ser lúcida sobre isso na resolução desse conflito e tem que ser lúcida também em relação às suas políticas internas, designadamente no plano económico. Não é possível continuar com uma política de asfixia como é a do BCE (Banco Central Europeu) relativamente às classes médias europeias, com consequências dramáticas ao nível político, de dar munições, argumentos, à extrema-direita populista contra os governos democráticos. A Europa tem que travar este processo-suicida que tem vindo a cavar. Ainda por cima, isto é completamente urgente tendo em vista as eleições europeias do próximo ano. Portanto, as políticas europeias têm agravado as desigualdades na Europa. Os baixos salários que têm estado na origem das graves crises, por exemplo do sector da habitação, que em particular afectam os jovens em vários países da União Europeia, têm que ser tomadas medidas e urgentemente. Não é possível continuarmos a dar argumentos e munições à extrema-direita. A extrema-direita tem objectivos também antidemocráticos, faz pandan com a Rússia exactamente para destruir a União Europeia. Nós estamos a permitir que ela seja também minada por dentro, se continuarmos com estas políticas absurdas que reduzem o apoio popular ao campo da democracia.

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