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Revolução dos Cravos

Francisco Fanhais e os tempos da gravação de “Grândola Vila Morena”

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Francisco Fanhais assumiu a música como uma forma de resistência à ditadura portuguesa e diz que “apanhou o comboio dos cantores que lutavam contra o regime”. Em 1971, esteve com José Afonso, José Mário Branco e Carlos Correia no Château d’Hérouville a gravar a música que ainda hoje é o emblema da "Revolução dos Cravos": “Grândola Vila Morena”. Francisco Fanhais recorda-nos esse tempo.

Francisco Fanhais, José Afonso e José Mário Branco aquando da gravação do disco "Cantigas do Maio", em 1971, em França.
Francisco Fanhais, José Afonso e José Mário Branco aquando da gravação do disco "Cantigas do Maio", em 1971, em França. © Patrick Ullmann/ Associação José Afonso
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI publica entrevistas a vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos Francisco Fanhais, presidente da Associação José Afonso, uma das vozes da música de intervenção portuguesa e que também foi aderente da LUAR, a Liga de União e de Acção Revolucionária.

 

Francisco Fanhais foi um padre incómodo, assumidamente contra a guerra colonial, que não se calava. Nem na missa, nem nas aulas de religião e moral e muito menos nos discos que fez em Portugal: “Cantilena”, em 1969, e “Canções da Cidade Nova”, em 1970. Foi impedido de dar aulas, suspenso das funções de padre e, muitas vezes, impedido de cantar. Por isso, exilou-se em Paris entre 1971 e 1974. Foi para França à boleia com Zeca Afonso em Abril de 1971, participou em concertos para despertar consciências, esteve na LUAR, uma das organizações de luta armada contra a ditadura portuguesa, e só pôde voltar para Portugal depois da "Revolução dos Cravos".

Algures entre Outubro e Novembro de 1971, às três da manhã, no Château d’Hérouville, acompanhou José Afonso, José Mário Branco e Carlos Correia na gravação dos passos que marcam o ritmo da música “Grândola Vila Morena”. Os quatro davam os famosos passos em cima de gravilha e tiveram de o fazer de madrugada para evitar o barulho dos carros ou outros ruídos que surgissem durante o dia. Horas mais tarde, gravavam a música que ficaria para a história e que foi a senha definitiva para o golpe militar que derrubou a ditadura portuguesa a 25 de Abril de 1974.

RFI: Recorde-nos como decorreu a gravação de “Grândola Vila Morena”, em 1971, em França.

Francisco Fanhais, Presidente da Associação José Afonso: Foi gravado em Hérouville. Estávamos os quatro a fazer os passos. O José Mário Branco, que era o director musical da gravação do “Cantigas do Maio”, o Zeca Afonso, o Carlos Correia, que era quem na altura acompanhava o José Afonso na viola, e eu. Estávamos os quatro então a fazer esses passos no estúdio que era no Château d’Hérouville.

E pronto, “O povo é quem mais ordena”. Era a letra do poema que o Zeca tinha composto em 1964, de homenagem à Sociedade Filarmónica Fraternidade Operária e Grandolense. O Zeca tinha lá ido cantar, no dia 17 de Maio de 1964, e gostou muito do ambiente vivido nessa colectividade. E em homenagem a esse espectáculo que ele lá fez e à colectividade fez uns versos. Basicamente, foi o poema que ele compôs de homenagem à Sociedade Filarmónica Fraternidade Operária Grandolense.

“O povo é quem mais ordena” e os militares… Imagino que teria sido talvez por causa deste verso - sou eu a imaginar porque se estivesse na pele deles era por estes versos que eu escolheria a música. Tinha sido uma música cantada um mês antes, num espectáculo público no Coliseu dos Recreios que passou à censura. Não repararam naquela. E então, por todas essas razões, foi a música escolhida para o sinal último musical para o desencadear das operações militares do 25 de Abril.

Passou à meia-noite e vinte e assim que eles ouviram - todos aqueles que estavam de norte a sul, os militares implicados no Movimento das Forças Armadas para derrubar o fascismo - assim que ouviram na rádio, que era a única maneira de terem contacto de norte a sul era através de uma rádio que se ouvisse no país inteiro, não é? Não podiam telefonar, obviamente, porque estavam os telefones vigiados.

Então, à meia-noite e vinte, quando o segundo sinal apareceu - o primeiro tinha sido o Paulo de Carvalho a dizer “E depois do adeus” -  quando eles ouviram aquilo, cada um foi cumprir o papel que lhe estava destinado na folha de serviço para desencadear as operações do 25 de Abril. Mas foi ao som dos passos de pessoas que não são da tropa, neste caso, mas que se ligou bem com o que se estava a passar a nível militar.

Também são os seus passos que ouvimos no início da música, portanto, os seus passos são também, entre aspas, os primeiros passos da Revolução dos Cravos?

Materializados na música pode ser, mas os passos mais importantes foram dados por aqueles que, estando na guerra, sentiram a injustiça e o anacronismo que significava uma guerra colonial. Portanto, como a única maneira que havia de mudar o regime era pela força das armas - porque o regime tinha as armas, mas para o mudar tinha que haver também armas - quem tinha as armas eram aqueles que estavam na tropa e que, portanto, discordavam, estavam cansados de tanta guerra, uma guerra que levava 40 por cento do Orçamento do Estado, não é?

Mas também quem tinha outro tipo de armas eram os que estavam fora a lutar contra essa guerra…

Juntando umas armas às outras, digamos assim, fez-se o 25 de Abril, mas se não fosse a força dos militares... Cantar não é talvez suficiente, diz o primeiro verso de um poema do Manuel Alegre que se chama “Apresentação”.  Cantar não era suficiente, portanto, tinha que vir alguém que, com as armas, convencesse que as coisas tinham que mudar.

O que é que o Francisco Fanhais, enquanto participante na “Grândola Vila Morena” sentiu quando foi a música que, entre aspas, derrubou o regime?

Fico muito contente. Não tenho mérito nenhum em terem sido os militares a escolher aquilo, mas fico contente e tenho um certo orgulho por saber que naquela música estão lá os meus passos e está lá a minha voz também, juntamente com a voz dos amigos que muito prezo. Mas sempre que oiço aquilo, vem-me à memória muita coisa e vem-me à memória a força com que nós cantámos aquilo, a força que nós imprimimos à “Grândola”, ao som, aos passos. E depois a dinâmica toda que envolveu a gravação do Cantigas do Maio, etc, o “Coro da Primavera”, vem-me à memória toda essa gravação, mas não posso deixar de recordar e de sentir com muita emoção essa alegria de saber que aqueles passos que nós demos foram um contributo musical e cultural para o desencadear do mais importante que foi o derrube do fascismo.

Cantar não é suficiente, mas, como diz o poeta sul-americano “um grão não enche o celeiro mas ajuda companheiro”. E é isso que nos faz continuar. Porquê? Porque como diz o poema do Manuel Alegre que eu citei há bocadinho, que começa “Cantar não é talvez suficiente” e depois continua “Não porque não acendam de repente as noites tuas palavras irmãs do fogo, mas só porque as palavras são apenas chama e vento. E, contudo, canção. Só cantando por vezes se resiste, só cantando se pode incomodar quem à vileza do silêncio nos obriga”. Etc, etc. Continua o poema e depois, no fim, “Já disse: planto espadas e transformo destinos. E para isso basta-me tocar os sinos que cada homem tem no coração". E a música ajuda a tocar os sinos que cada homem tem no coração.

Francisco Fanhais, José Mário Branco e José Afonso na gravilha onde gravaram os passos da "Grândola Vila Morena". Château d'Hérouville, França, 1971.
Francisco Fanhais, José Mário Branco e José Afonso na gravilha onde gravaram os passos da "Grândola Vila Morena". Château d'Hérouville, França, 1971. © Patrick Ullmann/ Associação José Afonso

Como é que se tornou cantor de música de intervenção e um padre resistente ao fascismo?

Um padre, além de ser padre, é também, e basicamente e antes de tudo, um cidadão. E quando um cidadão vê os problemas que se passam à sua volta, não pode deixar de reagir. Em nome de quê? Em nome do ser humano que tem direito à justiça e à liberdade e à fraternidade e a tudo isso, não é? Portanto, se isso pertence ou faz parte do cidadão que quer ser cidadão vertical e de corpo inteiro, um padre que quer ser cidadão de corpo inteiro tem mais razões ainda para intervir e poder ser actuante na transformação do mundo. Porquê? Porque além de todas as outras razões que um cidadão que quer ser cidadão a sério tem, tem também todo aquele apelo que lhe vem do Evangelho. E, por isso, quando Jesus Cristo fala das injustiças e quando Jesus Cristo enaltece os humildes e rebaixa os ricos e os poderosos, etc, isso é uma mensagem muito forte que vem também ao encontro da outra mensagem interior de um cidadão que quer ser interveniente no seu tempo.

Ao aperceber-me de todos os problemas que havia em Portugal, sobretudo o mais grave de todos, a guerra colonial, toda a situação que se vivia de falta de liberdade, de ditadura, de fascismo, de censura, da PIDE, tudo isso, uma pessoa não pode deixar de intervir, não pode deixar de se revoltar contra essa situação. E isso aconteceu-me a mim, como aconteceu a muitos outros colegas meus. Eu não estava isolado nisto, como não estavam isolados uma quantidade enorme de cristãos para quem o Evangelho era mais uma razão para não fecharem os olhos à realidade à sua volta. Portanto, eu, que sempre gostei de cantar, era natural que me exprimisse melhor através das músicas e através das canções, através dos textos, das letras, etc. E foi isso, de facto, que aconteceu.

E descobriu a música de intervenção de Zeca Afonso…

Para mim, o impulso máximo, não único, mas o máximo, o maior de todos foi justamente por ter-me cruzado um dia com a música do José Afonso, que foi em 1963. Eu ainda era estudante, estava no seminário e um padre amigo mostrou-me uma vez um disco pequenino onde vinha a música do José Afonso. Estávamos no seminário, estávamos em 63 e ele disse-me: “Tu vais ouvir esta música e vais gostar, de certeza, mas uma recomendação que eu te faço é que oiças baixinho, porque não se sabe quem é que pode estar a ouvir mesmo no seminário. Esse foi o meu primeiro encontro estritamente musical com o José Afonso em 63.

Mais tarde encontrei-o pessoalmente e desse encontro nasceu uma amizade que durou para o resto da vida. Porquê? Porque eu comecei a pensar: “Como eu gostava de cantar como este homem canta. Gostava de cantar as letras, as músicas, a força, a voz, etc. E foi para mim um estímulo muito grande. E foi através dele que eu depois passei a integrar o grupo dos cantores que usavam a sua voz e a viola, os seus poemas para denunciar as injustiças que nessa altura vivíamos em Portugal.

Começou a cantar e as suas músicas começam a ser ouvidas com alguma atenção pela PIDE...

Sim. As nossas músicas, sobretudo no primeiro período daquela Primavera Marcelista, passavam um pouco mais nas malhas da censura, mas, a certa altura, a música e as sessões em que nós participávamos passaram a assumir uma proporção tal que era impossível que escapassem à censura e à vigilância da PIDE. Portanto, éramos proibidos de cantar e quando não éramos proibidos de cantar totalmente só podíamos cantar as músicas que a censura visasse. E, às vezes, acontecia o absurdo de, numa música, eles cortarem uma quadra ou outra e dizerem “Esta pode cantar, aquela não pode, esta pode, aquela não pode”.

Foi a partir desse momento e, sobretudo, a partir de 1969, quando eu fui a um programa de televisão que havia em Portugal que era o Zip Zip e que foi pela mão do José Afonso que eu fui a esse programa porque ele estava impedido de participar nesse programa, a censura não deixava, mas tentou que outros que cantavam pudessem lá ir. Foi o meu caso.

Não fui o único que ele apresentou ao Raúl Solnado que era um dos organizadores do programa, ele apresentou outros também. E foi a partir daí, portanto, 1969, que adquiri uma dimensão um bocado mais pública, mais evidente e passei a ser convidado para cantar um pouco por todo o lado, com consequências na minha vida prática de padre porque havia pessoas que tinham muita influência junto da Igreja e que se foram queixar daquilo que eu cantava, das posições que tomava, das críticas que eu fazia, das homilias em que denunciava as injustiças da guerra colonial, etc, etc.

Eu era professor de moral no Liceu do Barreiro, cantava e era coadjutor na paróquia do Barreiro e essas três actividades foram-me completamente vedadas. Estive proibido de dar aulas no Liceu do Barreiro porque nas minhas aulas de religião e de moral, nós com os miúdos falávamos de tudo e até de religião! Estava proibido de exercer as minhas funções de padre, fiquei suspenso das minhas funções de padre e estava proibido de cantar como estavam todos os outros colegas meus, cuja participação e cuja actividade musical estava muito condicionada pela censura.

Por estar proibido de cantar, de ser padre, de dar aulas, decidiu vir para França?

Foi exactamente isso. Comecei a pensar: “Que rumo é que eu vou dar à vida?” Vim para França e escrevi até a um amigo que vivia em Estrasburgo, pedindo-lhe se me arranjava qualquer coisa para eu poder subsistir e ganhar para a bucha, como se costuma dizer. Ele não me respondeu e, mais tarde percebi porquê. Já depois do 25 de Abril, ao ir à Torre do Tombo ver o meu dossier da PIDE, estava lá a carta que eu lhe tinha escrito. Infelizmente era o corrente nessa época da ditadura e da censura, da repressão.

E vim para cá para mudar de ares, enfim, para ver que rumo é que havia de dar à vida. Mas depois assumi, já estando cá, outros compromissos políticos mais radicais. Passei a integrar a organização política da LUAR e, a partir daí, era um bocado complicado, difícil mesmo, se não impossível, voltar a Portugal legalmente. Entretanto, uns amigos meus foram presos em Novembro de 73 e eu percebi que não era efectivamente a melhor altura para voltar a Portugal, tanto mais que depois a polícia me tinha procurado lá em minha casa, onde pensavam que eu estava, que era a casa da minha mãe, em Benfica, em Lisboa., mas eu não estava lá. Só voltei quando aconteceu o 25 de Abril. Fui no dia 29, cheguei lá no dia 30.

Quando chegou a Paris, além da actividade na LUAR, pôde, finalmente, cantar livremente?

Sim. Eu, quando cheguei, a primeira pessoa com quem contactei, tirando os amigos em casa de quem fiquei,  mas das pessoas ligadas à música, a primeira pessoa com quem eu contactei foi com o Zé Mário e disse-lhe: “Olha, estou cá, não venho aqui para passar férias, gostava de fazer cá aquilo que não posso fazer em Portugal. Portanto, se achares que é oportuno, em sessões que às vezes se organizam de associações de portugueses, se achares que é oportuna e que pode ser necessária e que pode ser integrada a minha participação, eu estou à disposição”.

E era isso que acontecia muitas vezes. O Zé Mário comunicava-me: “Tal dia temos uma sessão, estás livre?”. E eu sempre que podia, estava a fazer justamente aquilo que eu não podia fazer em Portugal e que gostava de fazer  que era cantar para os emigrantes, essencialmente para os emigrantes, além de depois ter participado também noutras actividades, tanto políticas como culturais mais vastas. Participação num ou noutro programa na televisão francesa, como o Mosaïque, que era um programa centrado na divulgação das actividades da emigração e participei em duas emissões desse programa.

Como era a reacção das pessoas aos concertos?

As reacções das pessoas eram muito diversas. Vamos lá ver. Há associações de portugueses em França e dependia muito de quem estava à frente dessas associações de imprimir às manifestações colectivas, culturais, desportivas, etc, um certo cunho também que não fosse exclusivamente para a diversão pura e simples das sardinhadas, do futebol, dos ranchos folclóricos, etc. Tentavam justamente contribuir com o seu dinamismo e com o seu empenho político em dar aos emigrantes qualquer coisa mais para além daquilo que é o mais banal que se lhes dê, que é o fado e o folclore.

E conseguia que a cantiga fosse uma arma, como diria o José Mário Branco?

Nessas alturas, o nosso objectivo, através das músicas e através daquilo que dizíamos, era contribuir para que na emigração se estabelecesse uma outra dimensão política que não fosse exclusivamente ligada ao interesse perfeitamente legítimo das pessoas realizarem economicamente a sua vida. E contribuir para abrir um pouco os olhos para a situação que se vivia em Portugal, da qual muitas vezes as pessoas, se calhar até legitimamente, queriam esquecer o mais possível porque a vida de sofrimento lá em Portugal era tão grande, tão grande, tão grande, que o que queriam era deixar para trás, não é?

Tentávamos contrariar um pouco e fazer um contra-vapor, dizendo que afinal o país precisa do empenho de todos, que as reservas dos emigrantes vão para lá, mas a gente não pode ser só mandar dinheiro e ter lá uma vida feliz, que temos que pensar um pouco colectivamente, etc, etc.

As reacções eram diversas. Havia gente para quem isso dizia qualquer coisa, enfim, penso que podemos contribuir para abrirem os olhos para um outro tipo de realidade, uma outra dimensão da emigração.

Mas havia outras pessoas que não ligavam nenhuma a isso. Eu lembro-me, uma vez, estava com o Zeca a cantar, o Zeca a falar de todas estas situações, mesmo depois do 25 de Abril, dizendo o que se tinha passado em Portugal, a Revolução, o ambiente que se vivia em Portugal, etc, etc. E estava um emigrante português encostado a uma coluna a ouvir aquilo e, se calhar, não estava a concordar nada ou estava-se perfeitamente nas tintas para aquilo que o Zeca estava a dizer e disse com um ar muito enfastiado: “Eh pá, canta-me um fado!” Eu olhei para o Zeca, o Zeca olhou para mim e ficámos os dois, assim como quem diz, “Eh pa, anda a gente aqui assim a dar o corpo ao manifesto, a tentar dar qualquer coisa mais do que o simples 'Fátima, folclore e futebol' e parece que é tempo perdido!” Mas não era, temos que insistir.

As reacções das pessoas eram diversas. A força e a animação que punham na participação com que cantavam significava que aquilo que nós estávamos a sentir, estávamos a conseguir passar-lhes essa sensação.

E a mensagem.

E a mensagem.

A “Cantata da Paz” é uma das músicas que marcou uma geração. Quais foram, para si, as suas músicas mais marcantes?

Esta música, “Cantata da Paz”, está associada a um episódio que é o seguinte. A primeira vez foi cantada foi numa igreja, na passagem de ano de 1968 para 1969. O dia 1 de Janeiro é o Dia da Paz. Estávamos em Lisboa e houve uma cerimónia oficial na Igreja de São Domingos para celebrar o Dia Mundial da Paz. Estava o Cardeal Cerejeira, que era o bispo de Lisboa na altura, as autoridades civis e militares também. Isso foi numa igreja e para grande escândalo de um grupo de cristãos que lá estávamos, não houve uma única referência - num país em guerra - não houve uma única referência à situação que se vivia na guerra colonial. O que para nós era extremamente escandaloso e inaceitável.

Então, no fim da cerimónia, houve um grupo de pessoas que fomos falar com o bispo e disseram: “Nós agora vamos continuar a vigília à nossa maneira" e fizemos a ocupação da Igreja de São Domingos. Estivemos lá até às cinco da manhã.

Eram cerca de 150 pessoas cantando, rezando porque somos cristãos, lendo cartas de soldados e de pessoas que estavam na guerra, testemunhos directos em primeira mão, falando em tribuna livre, cada um falava e dizia o que lhe ia na alma sobre a guerra colonial e sobre essa vigília que estávamos a celebrar. Estava lá muita gente conhecida na altura, entre elas a autora da “Cantata da Paz” que é a Sophia de Mello Breyner. Foi aí que pela primeira vez, foi cantado o “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. É um refrão simples de fixar. Eu continuo sempre a cantá-lo e é aquele a que as pessoas mais aderem.

Falou da Sophia de Mello Breyner. Há uma canção sua que também é incontornável: “Porque”.

“Porque os outros se mascaram e tu não”, essa eu gosto sempre de cantar também.

Nessa altura, uma que foi muito conhecida também é o poema do Sebastião da Gama, “Cortaram as asas ao rouxinol”. É um poema que se chama “Cantilena”.

Depois disso, canto coisas minhas, canto coisas do José Afonso. Gosto muito de cantar “Menino do Bairro Negro” sempre porque foi a primeiríssima música que eu ouvi do Zeca e traz-me à memória situações vividas em que conheci famílias com crianças que não puderam continuar a estudar porque não tinham dinheiro, mas eram inteligentes.

Estou-me a lembrar de um episódio nessa fase em que estava proibido dessas três coisas. Apoiei momentaneamente, episodicamente, a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Uma vez, com mais duas pessoas amigas, fomos visitar uma senhora que morava numa barraca ao pé da Costa da Caparica. O marido estava preso em Peniche e a senhora trabalhava a noite inteira a coser à máquina com um candeeiro de petróleo ao lado porque não havia luz eléctrica na barraca. Trabalhava para uma fábrica de camisas e ela tinha dois filhos: uma miúda com dez anos que estava na quarta classe e um miúdo que tinha seis ou sete anos. E perguntámos à senhora se quando a miúda acabasse a quarta classe, a miúda ia continuar a estudar. E ela disse-nos: “Como é que vocês querem que eu ponha a minha filha a estudar se aquilo que eu ganho aqui a noite inteira a coser a máquina mal me dá para pagar a renda da barraca? Para ir ver o meu marido todos os domingos a Peniche para que ele não se sinta abandonado pela família, para que ele continue firme nas suas convicções, para a alimentação dos miúdos, para os trazer limpinhos, asseados, etc. O dinheiro não dá para tudo. Quando ela acabar a quarta classe, ela vem trabalhar comigo para arredondar o orçamento familiar”.

Os irmãos estavam a brincar em cima da cama, uma sala pequena, uma barraca pequena e pensávamos que eles estavam alheios à conversa. E qual não foi o nosso espanto quando a miúda, ao ouvir a mãe dizer “Como é que vocês querem que eu a ponha a estudar? O dinheiro não chega para tudo”, ela dá um grito em cima da cama a dizer “Oh mãe, mas eu sou inteligente!” Isso foi uma coisa que me marcou para o resto da vida porque eu nunca ouvi ninguém tão pequenino a gritar por justiça como essa miúda. Nunca ouvi ninguém.

São situações que as pessoas sentiam na sua vida, como pessoas e como colectivo, como nação, como país, como um pássaro a quem cortaram as asas e o bico.

Eram mensagens muito claras contra o fascismo e contra a guerra colonial…

Sim, sim, sim. Um dia eu estava a cantar esta no Alentejo, a “Cortaram as asas ao rouxinol” e no fim estava lá um homem: “Oh amigo, podes ter a certeza de uma coisa: é que não há aqui ninguém que não tenha percebido o que é que tu querias dizer!”

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