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Cabo Delgado: População denuncia movimentação dos grupos terroristas

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A população do distrito de Macomia, no centro da província de Cabo Delgado, denunciou já no início deste mês de Abril a movimentação de grupos terroristas nas zonas de produção agrícola, criando medo na comunidade e precipitando mesmo a fuga de alguns camponeses. Carlos Almeida, coordenador da Helpo, fala num “clima de apreensão” acrescido pelo facto dos ataques recentes terem ocorrido a cerca de 80km da cidade de Pemba.

Depois de alguma aparente acalmia, o ano de 2024 chegou com uma nova onda de ataques na província de Cabo Delgado.
Depois de alguma aparente acalmia, o ano de 2024 chegou com uma nova onda de ataques na província de Cabo Delgado. AFP - ALFREDO ZUNIGA
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A população do distrito de Macomia, no centro da província de Cabo Delgado, denunciou já no início deste mês de Abril a movimentação de grupos terroristas nas zonas de produção agrícola, criando medo na comunidade e precipitando mesmo a fuga de alguns camponeses.

Depois de alguma aparente acalmia, o ano de 2024 chegou com uma nova onda de ataques na província de Cabo Delgado que há quase sete anos enfrenta uma insurgência armada.

Carlos Almeida, coordenador de projectos em Moçambique da ong portuguesa Helpo desde 2010, fala num “clima de apreensão” acrescido pelo facto dos ataques recentes terem ocorrido a cerca de 80km da cidade de Pemba e de se ter constatado “uma movimentação por parte destas forças insurgentes terroristas”, deslocando-se do norte para o sul da província de Cabo Delgado.

RFI: Qual é o actual retrato do terreno?

Carlos Almeida: A Helpo trabalha em Cabo Delgado desde 2009. Eu sou coordenador nacional da Helpo desde 2010, por isso tenho acompanhado bem as últimas circunstâncias na província.

Neste momento sentimos, efectivamente, um clima de apreensão, nomeadamente na cidade de Pemba. As pessoas não vivem com receio nem vivem em terror, mas têm uma grande apreensão pelo facto de ultimamente terem ocorrido ataques nos arredores - a cerca de 80 quilómetros, 100 quilómetros. As pessoas têm a noção que estes ataques são muito localizados em zonas de mata muito densa e que dificilmente podem chegar à cidade. Mas há sempre um receio que alguma coisa possa acontecer.

Neste ano de 2024, a principal alteração - e isso mudou muito a percepção que as pessoas estão a ter - é o facto de desde Janeiro ter havido ataques a sul da capital da província, Pemba. Ou seja, há uma movimentação por parte destas forças insurgentes terroristas que vieram fazer alguns ataques mais a sul. Isso deixa sobretudo as pessoas numa grande apreensão. 

Depois de um período intenso de ataques, registou-se uma acalmia e, agora, uma nova onda de ataques. Isto altera o cenário da região?

Estes ataques começaram a 05 de Outubro de 2017, na vila de Mocímboa da Praia e desde então não têm parado. Há ataques que são mais mediáticos do que outros. Por exemplo, agora, mais recentemente, o facto de terem atacado umas aldeias que tinham umas missões católicas e que obrigou a que os missionários fugissem, causou esta onda de maior mediatismo. No entanto, os ataques têm ocorrido de forma contínua, embora sem merecer este destaque na comunicação social.

Aquilo que aconteceu, neste ano de 2024, foi pelo facto de ter entrado numa zona mais a sul ter provocado uma grande onda de deslocados nos dois distritos mais a sul, nomeadamente Mecúfi e sobretudo em Chiure.

No distrito de Chiure houve um número [de deslocados] que, de repente, ultrapassou os 100.000. Na verdade, este número de deslocados tem vindo a subir e a descer. Já ultrapassou um milhão de deslocados internos, 1.066.000, se não estou em erro. Entretanto tinha vindo a diminuir, porque as pessoas estavam a regressar em massa, sobretudo para a zona de Palma, Mocímboa da Praia e Moeda. 

Agora estes últimos ataques tiveram essa nota forte pelo facto de serem ataques em zonas onde nunca tinham ocorrido antes. Provocou esta movimentação muito grande de populações, grande parte dela tendo fugido para a província a sul, para Nampula. 

Houve também outra nota que foi marcante: foi o facto de, pela primeira vez, ter ocorrido um ataque na Estrada Nacional número um, que a estrada que liga Maputo até Pemba, capital da província de Cabo Delgado. Atacaram um camião cisterna. No entanto, no dia seguinte a estrada foi reaberta e os militares estavam a controlar. 

Voltando à questão dos deslocados, têm estado a receber o apoio necessário? Os ataques em Cabo Delgado começaram em 2017, entretanto, o mundo mudou, há a guerra na Ucrânia e em Gaza. Estas pessoas têm estado a receber ajuda ou o facto de esta situação perdurar no tempo acaba por cair no esquecimento? 

Este conflito, efectivamente, corre o risco de passar para um conflito esquecido.

Há pessoas que estão deslocadas em centros de reassentamento há anos. Algumas delas conseguem refazer as suas vidas no novo local, porque não têm vontade de voltar ao local de origem. 

Muitas delas - da nossa experiência de trabalho - quando fogem para um sítio onde têm acesso a mais escolaridade para os filhos, não voltam ao local de origem onde viviam, em aldeias onde as escolas secundárias estavam 50, 60 quilómetros e os filhos não tinham possibilidade de estudar. Essa tem sido uma das razões que levam a que as famílias fiquem além, obviamente, da questão da segurança. 

O Programa Mundial da Alimentação tem estado a receber grandes cortes de financiamento. Não fazem entregas como faziam há uns anos.

Quando acontecem estas situações agudas, como foi agora, as instituições governamentais moçambicanas através do INGD têm a possibilidade de dar algum apoio, mas é simplesmente um “penso-rápido” para resolver o problema na hora. Aquilo não vai curar nada. Ninguém consegue sobreviver durante um largo período de tempo com essa ajuda. 

As pessoas estão muito cansadas desta situação, desta precariedade, quando já se deslocaram para um sítio, ainda têm de se deslocar para outro. Há muitas pessoas que não têm grande escolha.

Outra situação que é muito importante, é que aqui, normalmente, metade dos agregados familiares são crianças. Quando há esta movimentação, metade dos números normalmente correspondem a crianças, porque a taxa de natalidade é muito grande e, por isso, os números são sempre muito pesados no que diz respeito ao número de crianças que são vítimas destas situações. 

E também provavelmente as mulheres? 

Sim, as mulheres sofrem de uma grande fragilidade. No norte de Moçambique temos, quer por questões religiosas, quer também por questões culturais apesar de serem a força da família - as mulheres são vistas com um papel secundário. 

Há muitos homens que pura e simplesmente fazem um filho e abandonam. Há muitas mulheres solteiras com crianças. Há sempre relatos de mulheres que estão numa situação de fragilidade porque se não têm uma protecção familiar, facilmente se vêem a braços com situações ainda mais graves, nomeadamente de abuso sexual.

 

Há muitas crianças envolvidas no meio disto tudo. Como é que essas crianças, esses jovens, olham para o futuro? Eles que acabam por nascer ou crescer numa região que supostamente prometia tudo e que neste momento não lhes promete absolutamente nada? 

A Helpo tem estado muito atenta a esta situação, inclusive eu estou a fazer um mestrado em Estudos Africanos e a minha tese de mestrado tem a ver com isso, com o impacto destas calamidades, entre as quais o terrorismo nos percursos escolares dos jovens de uma aldeia específica, de Mocímboa da Praia onde a Helpo trabalha desde 2011. 

Aquilo que nós podemos sentir é que se calhar este é o problema - é uma causa e acaba por ser a raiz do problema - os jovens hoje em dia têm muita dificuldade em perceber o real valor da escola. Ou seja, há muitos jovens que não têm acesso à escola e aqueles que têm acesso à escola sentem que, mesmo estudando, mesmo concluindo a escola secundária, não há oportunidades de emprego. Sentem que estudam e que não lhes serve de nada. 

Aquilo que acontece normalmente é que estes jovens ficam sem esperança, ficam sem objectivos e por isso são, facilmente, aliciados para integrarem estas forças de insurgentes. Porque sabemos que tem sido assim que têm funcionado. Mais do que questões religiosas, é sobretudo a falta de perspectivas de futuro, o facto de estarem muito zangados com aquilo que acontece no país, não terem perspectivas sobretudo na parte da educação.

Para quem conhece Cabo Delgado tem cerca de 2.600.000 habitantes. É uma área vasta e é uma província que apenas tem duas cidades, Nampula e Montepuez. Depois o resto são vilas, o que faz com que em muitos dos distritos de Cabo Delgado apenas haja uma ou duas escolas secundárias, ou seja, há pouca distribuição de escolas secundárias. 

Há pouco Estado na província, porque há muita zona rural. Há muito mato, muita floresta, que são coisas boas, são ricas, mas é difícil conseguir-se emprego. O único emprego que as pessoas conseguem é o de subsistência, que é conseguir ter uma machamba, um campo agrícola, onde vão cultivar para sobreviver e vender alguma coisa. 

Mas os jovens hoje em dia já ambicionam coisas diferentes, todos os jovens têm acesso às redes sociais, vêem como vivem os jovens em Maputo, vêem como vivem os jovens na Europa e ambicionam coisas diferentes. Por isso, aquilo que antigamente era o passaporte para uma vida melhor - o acesso à educação - neste momento, não garante que esse passaporte permita o elevador social.

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