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Artes

História da emigração portuguesa para França chega a Avignon

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A peça “Saudade, ici et là-bas” conta a história da emigração portuguesa para França nos anos 60 e 70 e como os lusodescendentes cresceram com uma dupla cultura. É também uma história de transmissão, de memória e de heranças afectivas. O espectáculo está no Festival Off Avignon de 7 a 29 de Julho e a RFI falou com a sua autora Isabel Ribeiro e com o músico Dan Inger dos Santos.

Peça “Saudade, ici et là-bas” de Isabel Ribeiro.
Peça “Saudade, ici et là-bas” de Isabel Ribeiro. © Carina Branco/RFI
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RFI: O espetáculo fala de emigração portuguesa mas abre com a saudade da cabo-verdiana Cesária Évora. Porquê?

Isabel Ribeiro: Nessa canção, eu acho que há uma dimensão que reflete bem o que é a saudade e que possa ser transmitida a pessoas que não sabem a definição exacta da palavra saudade. Eu até acho que só os portugueses é que entendem mesmo o que saudade quer dizer e fora já não, eles querem uma coisa mais específica, mais detalhada. Essa canção tem essa atmosfera que traduz a definição dessa palavra.

Qual é a história de “Saudade, ici et là-bas”?

Isabel Ribeiro: É uma viagem de dois irmãos, o Idálio e a Joana, que estão em Portugal para vender a casa da família porque os pais faleceram e eles tiveram que tomar essa decisão de vender a casa. Então, estão lá em Portugal, com o sobrinho deles que vem da Bélgica. Aí começam a falar da casa, das lembranças que eles têm, da ligação que eles têm com essa cultura portuguesa, da lembrança dos pais. Na segunda parte da peça de teatro, vamos ao passado e aí vemos os pais antes de irem embora de Portugal. A vida deles em Lisboa e essa tensão antes de irem embora.

Porque decidiu escrever e levar a palco um espectáculo sobre os portugueses que vivem em França? É um texto biográfico?

Isabel Ribeiro: Sim. Há muitas coisas que são da minha história e outras que são coisas que eu ouvi porque tive a oportunidade de fazer entrevistas a pessoas. Escutando as histórias todas, pensei que é mesmo uma parte histórica de França e que temos que transmitir porque não falamos muito nesse tema. É muito importante. É um tema que me tocava desde sempre mas, crescendo, tinha essa vontade de falar e de testemunhar o que é ser um filho ou uma filha de emigrante e como é que vivemos essa situação de ver os pais partilhados entre a vida que eles vivem em França e as lembranças todas e a vontade de irem embora para Portugal.

Qual é a mensagem do espetáculo? Uma homenagem aos emigrantes?

Isabel Ribeiro: É. Porque é uma geração que falávamos deles com uma comunidade silenciosa e, para mim, é uma comunidade que teve muito muita força, muita coragem de ir embora do país deles e não falamos muito neles. Eu queria justamente agradecer-lhes a todos, aos meus pais, à família e também aos outros à volta, por esse sacrifício porque graças a eles nós temos uma vida diferente e mais fácil.

A peça também quer mostrar o que é viver entre dois mundos, em busca de raízes, mas também a tentar transmitir essas mesmas raízes às gerações de agora e às futuras?

Dan Inger dos Santos: As novas gerações não sabem muito porque a primeira ficou com pudor. Esse pessoal queria esquecer o salto [passagem clandestina para França] e a vida dura desse momento quando chegaram nos bairros de lata. Para mim é um reconhecimento que é dado ao povo português, mas que pode ser uma mensagem também muito universal e tocar também o coração dos italianos, dos espanhóis, dos argelinos…

Ambos são franco-portugueses e o tema da dupla cultura dos filhos de portugueses que vivem em França é-vos intrínseco. O tema já foi tratado – antigamente menos, mas agora começa - em filmes, em livros, em fotografia… O que acrescenta o teatro a esta história?

Dan Inger dos Santos: Até agora, o teatro português é muito elitista, só toca o pessoal que conhece mesmo o âmbito do teatro. Penso que a nossa ideia era dar coisa mais popular. Muitas pessoas vêm depois do espectáculo dizer que era a história deles que estava no palco. Não conheço todas as peças de teatro, mas acho que é a primeira, de facto, em França a ser um pouco mais popular e acessível.

Isabel Ribeiro: Também é verdade que, pelo facto de estar em palco, há uma coisa que se passa em directo com as pessoas. No cinema, o ecrã traz um relacionamento diferente à situação que se está a passar mas no teatro é tudo ao mesmo tempo. Nós queríamos tocar as pessoas em directo e o teatro tem essa possibilidade.

Este é um espectáculo musical. A Isabel escolheu fazê-lo com o Dan Inger dos Santos para trabalhar consigo. Como é que construíram essa parte musical? Como fizeram a escolha do repertório?

Isabel Ribeiro: Primeiro, eu escolhi as canções. Um certo número de canções que me tocavam, mas que tinham, não é bem um relacionamento com o tema, um pouco, mas era uma coisa que se passava em mim e que até me ajudava na escrita. E depois eu escrevia à volta dessa canção e via que tinha coisas na canção que podiam ligar-se. Depois disso ao Dan: “Quero essas canções. Que pensas tu?” E ele até gostou!

Há Amália Rodrigues, Zeca Afonso, António Variações, Cesária Évora, Mayra Andrade… Vocês interpretam estas músicas em palco. Como foi esse trabalho?

Isabel Ribeiro: Quisemos trazer a lusofonia para o palco e tivemos ensaios.

Dan Inger dos Santos: De facto, era dar os temas à nossa maneira e que podiam entrar na história. E foi a escrever a história, mesmo o nosso colega belga por ser belga há coisas que foram escritas quase para ele.

Depois, há a própria escolha dos instrumentos. Há concertina, guitarra e um instrumento de cordas em que se dá também à corda. Que instrumento é?

Dan Inger dos Santos: É um instrumento medieval que a gente pode encontrar também na música tradicional portuguesa. O último tema, por exemplo, “Horizonte”, dá uma piscadela aos navegadores e não é um instrumento que a gente ouça todos os dias.

Em termos cénicos, quais foram as escolhas para sustentar essa ideia de viver entre dois mundos? Há o desenho de som com os sinos da igreja que me remetem imediatamente para as aldeias portuguesas com melodias reconhecíveis, mas também há projecção de fotografias dos bairros de lata de Gérald Bloncourt. Porquê essas escolhas?

Isabel Ribeiro: Eu queria que esse espetáculo fosse em muitas dimensões. Queria imagens, queria som, queria música, queria o texto claro, queria dança também. Eu queria que os franceses, os portugueses também, mas os franceses - porque estamos, por enquanto, em França a fazer essa peça - descobrissem quem é esse povo português. Quem ele é, de onde vem, o que é que ele viveu chegando em França. Para mim, era importante mostrar essas fotografias que são um tesouro de documentação para essa parte da história. Esses sons eram uma viagem que eu queria fazer, uma viagem em Portugal para nós porque temos essa saudade do país e para os que descobrem a nossa cultura. Uma viagem ali no teatro.

Disse que por enquanto o espectáculo está em França. Há o objectivo de o levar a Portugal?

Isabel Ribeiro: Ai gostaríamos muito! Sim, claro! Há muitas pessoas que já estão reformadas lá. Há pessoas francesas que moram lá e também fazer descobrir essa parte da história aos portugueses.

O espectáculo já andou em digressão. Como surgiu a oportunidade de o apresentarem no Festival Off Avignon e quais foram as dificuldades?

Isabel Ribeiro: Nós nunca tínhamos pensado vir cá, mas parece que tudo foi posto para nós virmos cá, sem que nós pedíssemos qualquer coisa. Houve uma pessoa que se interessou pela nossa peça e disse gostaria de nos ter no seu teatro e de nos ajudar em tal e tal aspecto da publicidade. Então, tudo foi posto assim, como estrelas que ficassem todas alinhadas. Agora nós trabalhamos para que esse trabalho todo tenha resultado.

Dan Inger dos Santos: Como a gente esteve com a peça em Paris, houve alguns amigos que fizeram também uma aposta sobre esta nossa história, que é a história de cada um, e alguns empresários vieram a ajudar. Há uma fé nesta peça que esperamos levar a Portugal, mas também à Bélgica, Canadá, Luxemburgo, onde a gente pode falar em francês e dar essa história.

O espetáculo fala da emigração clandestina portuguesa em massa para França nos anos 60 e 70 para fugir à guerra colonial, à ditadura, mas também fala das esperanças goradas. No espectáculo dizem: “Lá é a liberdade”, “Um dia vamos voltar” mas acabam por não voltar. Este tema é intemporal quando vemos que a emigração forçada continua a ser um drama de tantos povos. Também querem passar essa mensagem?

Isabel Ribeiro: Sim, é claro que falámos dessa emigração, das esperanças, das desilusões também. Vemos que a história se repete, não é? O que se passa agora no mundo é exactamente a mesma coisa e muitas populações de outros países vivem a mesma coisa. Chegam também de maneira clandestina ou não e depois eles têm essa vontade de voltar para o país deles também. É uma história universal mesmo. É isso que é importante nesta peça. Há uma frase do Tolstoi que eu encontrei quando estive a começar a escrita da peça e para mim queria dizer tudo. Era: “da tua história tu podes fazer uma coisa universal e para falar do universal tens de falar de ti primeiro”. A frase não é exactamente esta, mas é esse o sentido. É universal esta história, é igual para todos.

Ou seja, o íntimo acaba por ser político… Ambos nasceram em França e cresceram com esta dupla cultura franco-portuguesa. Como é que ela vos construiu?

Isabel Ribeiro: Está por todo o lado! Não sei, quando somos mais pequenos não nos toca assim muito e queremos ser como os outros, mas crescendo, a personalidade construindo-se, vemos bem que há outra coisa dentro de nós que está a querer mais espaço na nossa vida e que nos dá essa riqueza e é o que nos diferencia também dos outros.

Dan Inger dos Santos: Quando se chega a uma certa idade e quando familiares se vão embora, há um um apelo das raízes, não sei, é uma coisa natural. Posso pensar que sou francês, mas não posso esquecer essa parte portuguesa.

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