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Revolução dos Cravos

“Peniche foi uma grande escola” contra a ditadura

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“As cadeias eram centros de organização política” durante o Estado Novo e “Peniche foi uma grande escola”. Quem o diz é o historiador Fernando Rosas que conheceu as prisões do regime ditatorial português e contou à RFI os tempos de luta política contra o regime que tentava calar, prendia e torturava os opositores políticos. A repressão intensificou ainda mais a revolta dos presos que, atrás das grades, se prepararam “para continuar a luta”.

Fernando Rosas, Historiador. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024.
Fernando Rosas, Historiador. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos o historiador Fernando Rosas.

"Peniche foi uma grande escola. A prisão do Forte de Peniche”, conta-nos o historiador Fernando Rosas que esteve preso, vários meses, em Peniche em 1972. Esta prisão política do salazarismo foi um marco do autoritarismo do Estado Novo, mas também um símbolo da oposição política. A cadeia do Forte de Peniche acabou por reforçar o que o salazarismo quis abafar. A resistência foi uma escola para muitos, como para Fernando Rosas, que se viria a tornar num dos mais reputados especialistas da história do Estado Novo.

Fernando Rosas foi levado para a prisão do Forte de Peniche, depois de ter sido preso em Agosto de 1971 e condenado a 14 meses de prisão correccional. Esta era a segunda vez que o regime o prendia devido à sua actividade política. Um ano antes tinha fundado o partido MRPP e tinha participado na criação do Movimento Esquerda Democrática Estudantil.

Quando foi para Peniche, encontrou João Pulido Valente, um dos fundadores da FAP [Frente da Acção Popular] que lhe disse que a prisão estava dividida entre os presos do Partido Comunista Português, de um lado, e os presos que não eram do PCP do outro. Por isso, ele só teria de pedir para ir para “o 2°B”. E avisou-o: "É aí que estão os homens do Golpe de Beja, os tipos dos movimentos de libertação nacional das colónias e os grupos de extrema-esquerda. E tu chegas lá e dizes: 'Daqui só saio para o 2°B', o segundo andar do pavilhão B. E foi exactamente o que eu fiz!"

Foi no 2°B que Fernando Rosas entrou no que diz ser “uma espécie de universidade organizada”, com “grupos de trabalho, grupos de estudo”, em que se estudava “a história das revoluções, economia política, filosofia”, em que havia grupos de história e “cada um inscrevia-se no grupo que queria”.

Aquilo era um colectivo plural de gente. Eram os homens do assalto ao Quartel de Beja, eram os homens do MPLA, eram os homens da Frelimo, eram os homens da FAP. Eu era do MRPP e, portanto, aquilo era um colectivo relativamente plural, muito solidário, com muita vontade de aprender. Foi um tempo extremamente frutuoso, até porque tínhamos tempo para estudar, para ler, para nos documentarmos, havia grupos de discussão. E, depois, quando havia lutas a fazer, nós uníamo-nos. (...)  As cadeias eram centros de organização política.  Quer dizer, nas cadeias, nós preparávamo-nos para continuar a luta a seguir, para nos informarmos, para nos documentarmos. Um ou outro desistia, mas a maioria das pessoas que saíam dali era para continuar. E assim foi comigo.

Antes de ser levado para a cadeia do Forte de Peniche, Fernando Rosas passou pela tortura do sono nas novas instalações da PIDE, no reduto sul do forte de Caxias.

Eu entrei directamente na tortura do sono e fiz logo oito dias seguidos sem dormir. Depois deixaram-me dormir. Deixaram-me ter uma visita com a família da parte da manhã e, mal acaba a visita, segunda vaga de tortura do sono! E depois a mesma coisa. Deixa dormir um dia, vem a família e terceira! Tive três sessões de tortura do sono. A que durou mais tempo foi essa de oito dias, e depois eles largaram-me.

Mas eles queriam-me mesmo prender e queriam-me prender por muito tempo. Acusavam-me de estar ligado à fundação do MRPP, acusavam-me também de ligações à Esquerda Democrática Estudantil, mas não tinham elementos... Quer dizer, eu não tinha dito nada. Mas levaram-me a julgamento na mesma e eu fui julgado em Outubro de 1971 e fui condenado a 14 meses de prisão correccional. Ou seja, não me puderam aplicar a pena maior porque não conseguiram provar que eu tinha actividade clandestina e a actividade da Esquerda Democrática Estudantil era uma actividade estudantil. Ou seja, era ilegal, mas não visava derrubar “por meios violentos e não consentidos a ordem constitucional” como dizia a lei.

Fernando Rosas envolveu-se, bem cedo, na luta contra a ditadura. Em 1960, participou na fundação da Comissão Pró-Associação dos Liceus; com 15 anos, em 1961, aderiu ao Partido Comunista Português e, em 1962, participou nas lutas estudantis. A primeira vez que foi preso foi no âmbito da crise académica de 1965, quando a PIDE deteve vários líderes estudantis a 21 de Janeiro. Tinha 18 anos e completou 19 na cadeia, depois de ter sido condenado a um ano e três meses de prisão correccional. Andava na Faculdade de Direito e estava na direcção do sector universitário do Partido Comunista, tendo, a seu cargo, as células do PCP na Faculdade de Direito e na Faculdade de Letras.

Todos os estudantes foram torturados, quase todos. Tortura do sono, tortura da estátua, espancamentos e conseguimos fazer passar a informação. Nós fomos presos na cadeia do Aljube, que hoje é o Museu da Resistência e da Liberdade, e isso fez com que houvesse um grande movimento de solidariedade na universidade, um movimento mesmo de greve em Lisboa, Coimbra, greve de solidariedade com os estudantes presos. E fez com que houvesse muitas publicações nessa altura a denunciar estruturas da polícia.

Houve uma manifestação, junto ao Aljube, de estudantes a pedirem a libertação dos estudantes presos. Houve um movimento muito grande, mesmo com repercussão internacional, nessa altura, e o regime resolveu tentar acabar rapidamente com a agitação, organizando um julgamento mesmo no período das férias judiciais, ou seja, em Agosto de 1975, com os tribunais fechados.

O julgamento acabou por se revelar como um grande momento de denúncia de toda a repressão e violência do regime, das prisões, dos torcionários e da falta de liberdade em geral. Tudo perante o olhar de observadores internacionais, o que desencadeou ainda uma maior solidariedade académica e fez crescer o movimento estudantil.

Nós fomos julgados. Foi um grande processo. Foram 30 e tal, não me lembro bem, mas 36 ou 37 estudantes presos. Juntaram-se todos os principais advogados que defendiam presos políticos em Portugal, e que trabalhavam “pro bono”, juntaram-se na defesa e o julgamento transformou-se num grande episódio da denúncia do regime, da polícia política, da situação na universidade.

Depuseram como testemunhas de defesa dos presos figuras como Maria Barroso, o professor Lindley Cintra, uma série de personalidades ligadas à cultura e, portanto, foi um momento político que se virou contra a própria polícia política, contra o regime. Até porque combinámos entre nós, cada um de nós denunciar na sala de audiências, apontando-os a dedo, os polícias que nos tinham torturado e, portanto, isso teve um grande impacto.

Em 65, foi uma crise mais politizada porque foi a primeira crise académica em que se defendeu o direito que os estudantes tinham a ter opiniões políticas contrárias ao regime e a não serem presos e torturados por causa disso. É uma luta que decorre já com um cunho político antifascista muito marcado que é: “Nós temos o direito de ter opiniões diferentes e ninguém tem o direito de nos perseguir, torturar, prender, por causa das opiniões políticas que temos”. E houve denúncia da polícia política, denúncia dos métodos da polícia política, denúncia do regime. Nesse sentido, foi um episódio de grande significado político.

No julgamento, Fernando Rosas foi condenado a 15 meses de prisão correccional efectiva, com “um grupo de cinco ou seis”, e cumpriu a pena na prisão do Forte de Caxias.

O historiador recorda que a polícia política “tinha poderes praticamente irrestritos”, com escutas telefónicas, violação de correspondência e uma vasta rede de informadores e de agentes. Podia prender preventivamente, sem interferência dos tribunais, e aplicar medidas de segurança que permitiam prolongar por tempo quase indeterminado a estada do preso na cadeia. Também nesta primeira vez em que esteve preso, Fernando Rosas não escapou, como tantos outros, aos temíveis interrogatórios da PIDE.

A tortura do sono é uma tortura que visa despersonalizar o preso porque, ao fim de duas ou três noites sem dormir, os pés já não cabem dentro dos sapatos porque os pés incham e a pessoa começa a ter alucinações, começa a ver coisas. Isso passa-se com os presos. Aquilo eram umas mesas de fórmica e o que eu via nas mesas de fórmica era um jornal aberto. Tentava até folheá-lo.

E como uma pessoa começava a cambalear, com o sono, a não se aguentar, eles tiravam-nos a cadeira para nos obrigar a estar a estar de pé. Quando nós não nos aguentávamos nas pernas, chamavam os pides que nos seguravam pelos braços e nos passeavam à força na sala e deitavam-nos água por cima, etc.

Depois, de vez em quando, havia sessões de agressão, sessões de violência. Eu não fui objecto de formas de violência particularmente violentas, a não ser a tortura do sono e da estátua, mas houve alguns presos que foram sujeitos a espancamentos brutais.

Depois dos 15 meses em Caxias e dos 14 meses em Peniche, Fernando Rosas quase voltou a ser preso novamente em Março de 1973, após ter dinamizado a campanha de denúncia pública do assassínio de Amílcar Cabral. Escapou às garras da PIDE e teve de mergulhar na clandestinidade até ao 25 de Abril de 1974.

Eu tinha saído da cadeia em Novembro de 72 e em Março de 73, princípio de Março de 73, vão prender-me outra vez. Não conseguiram. Logo que esse meu camarada foi preso, eu saí de casa como prevenção, era uma regra, mas fiz o disparate, que podia ter sido fatal, de como precisava urgentemente de uma coisa que tinha em casa, fui a casa. Vi um PIDE na rua, perto da porta da minha casa. Eu meto-me no carro e reparo que eles vêm atrás de mim. Aliás, ao lado do condutor vinha um chefe de brigada que me tinha interrogado. Depois eu meto ali pelo Bairro Azul, aquilo estacionava-se em espinha. Tento ainda estacionar o carro, mas quando eu estou a tentar estacionar, eles avançam com o carro deles e põem-se à minha frente e saem do carro de pistola na mão. Eu tinha um 4L. Era um carro muito bom para isso porque era estreitinho, era mole e eu avanço com o carro e consigo passar pelo intervalo que eles tinham deixado aberto, mesmo amolgando um bocado o carro. Aquilo passa!

A fuga continuou, com os polícias atrás do 4L que ganhou algum avanço passando os semáforos e, junto à maternidade Alfredo da Costa, Fernando Rosas sai do carro, entra pelas urgências e consegue fintar os agentes. Depois, ligou a um antiga camarada de prisão, do MPLA, que o alojou durante “duas ou três noites” e que o ajudou a encontrar um quarto para ficar na clandestinidade. E assim ficou, entre Março de 1973 e o 25 de Abril de 1974.

Fernando Rosas acabou por dedicar a sua vida profissional à história contemporânea portuguesa e nunca deixou o combate político. Inicialmente formado em Direito, doutorou-se em História Contemporânea e a sua investigação centra-se na história do Estado Novo. Quis compreender os mecanismos que fizeram com que Portugal tivesse vivido a mais longa ditadura europeia do século XX, tendo entre tantas obras, publicado “Salazar e o Poder, A Arte de Saber Durar”. Em termos políticos, foi fundador do Bloco de Esquerda, deputado e candidato à Presidência da República. Foi, ainda, feito comendador da Ordem da Liberdade pelos serviços prestados à causa da liberdade.

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