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Revolução dos Cravos

Helena Pato e a “noite mais longa de todas as noites”

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Helena Pato é a autora de “A Noite Mais Longa de Todas as Noites”, um livro em que conta a sua experiência de resistente antifascista durante o obscurantismo que dominou Portugal até à “Revolução dos Cravos”. Durante a ditadura, foi militante do PCP, dirigente estudantil, presa política e fundadora do Movimento Democrático de Mulheres, entre outras lutas. Depois do 25 de Abril de 1974, o seu combate é pela memória para que “essa noite não volte”.

Helena Pato em sua casa. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2024.
Helena Pato em sua casa. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos Helena Pato, co-fundadora do Movimento Democrático de Mulheres, que também conheceu a prisão, os interrogatórios da PIDE e o exílio.

Foi a noite mais longa de todas as noites. E porquê? Porque não há no mundo, não houve nunca no mundo, uma ditadura tão prolongada no tempo. 48 anos. Foi em Portugal. Foi a noite mais longa de todas as noites. E acho que nós temos que fazer tudo para que não volte a noite.

“Fazer tudo para que não volte a noite” passa por um trabalho de memória.  Aos 84 anos, Helena Pato continua a contar a sua história em escolas, em museus, na imprensa, nas redes sociais e no seu livro “A Noite Mais Longa de Todas as Noites”, publicado em 2018. Na obra, Helena Pato conta a sua experiência de resistente antifascista. Escreveu-a para que as pessoas não esqueçam e as gerações mais novas conheçam “a face mais tenebrosa desse regime” que é, para ela, “uma parte da História de Portugal que alguns tentam ignorar e outros procuram enterrar”.

Por isso, Helena Pato faz da memória uma causa e uma luta. No Facebook, criou e coordena a página “Antifascistas da Resistência” e o grupo “Fascismo Nunca Mais”. É também dirigente do movimento cívico “Não Apaguem a Memória”.

E há coisas que não se podem mesmo esquecer. Helena Pato foi presa em Junho de 1967. Tinha 28 anos, era do Partido Comunista Português e tinha sido dirigente estudantil. Foi presa devido a “um erro conspirativo” porque atendeu, em casa, o telefonema de uma camarada que lhe pedia ajuda. Foi ao seu encontro e ela precisava de alguém para lhe guardar uma mala – que tinha explosivos na fase de preparação da ARA [Acção Revolucionária Armada, que viria a ser o braço armado do PCP]. Helena conseguiu alguém para guardar a mala, mas quando ia buscar a dita mala, a amiga já tinha sido detida. Ela seria presa no dia seguinte e encarcerada em Caxias, em regime de isolamento durante seis meses.

As grades da minha cela estavam a um metro de uma barreira de terra. Portanto, eu não tinha vista sobre coisa nenhuma. Olhava a grade e era uma barreira de terra. E, lá em cima, andava para trás e para a frente um guarda-republicano que fazia a vigilância das mulheres, não fossemos nós fugir. Habituei-me, ia para a beira das grades e via na terra as formiguinhas, as florzinhas que cresciam, “esta já está mais crescida”. Habituei-me...

Habituou-se ao isolamento, mas o seu maior medo era a tortura do sono. Passou por ela, “cinco dias e cinco noites”, resistiu, não denunciou ninguém e negou sempre qualquer envolvimento em actividades políticas.

Ao fim de alguns dias de lá estar, quando começaram as alucinações, comecei o meu sossego. Aquela minha preocupação de que eu não posso falar, eu não posso dizer nada, eu não posso ceder, isso tudo desapareceu porque eu passei a uma fase como se fosse uma espécie de limbo porque estava consciente e não estava. Estava com alucinações. E, ao mesmo tempo, comecei a ficar calma e a pensar “não durmo, nem falo, nem coisa nenhuma”.

De repente, começo a descobrir que na parede em frente havia um filme lindíssimo com uma moradia extraordinária. Nevava e havia um camarada vestido com o fato-macaco com um saco enorme que subia pela parede da moradia e despejava 'Avantes' e 'Militantes', a imprensa do partido, por aquela chaminé abaixo. E eu olhava e pensava assim: “Estes tipos não prendem o camarada e o camarada ali a fazer aquilo?!” Portanto, havia uma confusão entre uma coisa e outra, mas aquilo era de tal ordem que quando interrompiam - quando eles vinham para interrogatório, entravam os agentes e o inspector, aquilo tudo e a máquina de escrever - eu ficava danada porque me interrompiam o filme!

Helena Pato saiu da prisão de Caxias ao fim de quase seis meses porque a PIDE não arranjou provas contra ela.

Durante aqueles meses, eles andavam de interrogatório em interrogatório, a tentar que eu confirmasse, para me poderem levar a julgamento. Eu fui ver o meu processo à Torre do Tombo, fui com a historiadora Irene Pimentel e, a dada altura, a Irene comentou: “Olha para isto, olha para isto!” Vi uma carta do inspector responsável pelo meu processo, dirigida ao ministro do Interior, a pedir um prolongamento do período de instrução, que eram seis meses. O período a partir dali terminava. Eles tinham que levar a julgamento ou pôr na rua obrigatoriamente. O inspector Mortágua pedia para aquele período ser prolongado porque, e o argumento era, estavam quase a obter provas! Simplesmente foi recusado e, portanto, ao fim de cinco meses e 20 dias eu fui libertada.

 

"Eram 1200 e foram todos presos!

Helena Pato envolveu-se, desde cedo, na luta contra o regime. Em 1962, participou activamente nos protestos estudantis. Na madrugada de 11 de Maio, 1200 estudantes eram detidos na cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Os rapazes foram para o quartel da PSP e Helena fez parte do grupo de 50 alunas que encheram os calabouços do Governo Civil nessa noite.

Era estudantes por todo o lado, sentados nas cadeiras, à beira das mesas, lá em cima. Aquilo tem uma galeria com cadeiras, mesas e depois montes de estudantes sentados no chão porque já não havia mais espaço. Eram 1200 e foram todos presos! Tudo preso, tudo preso! Começam a chegar de madrugada. Já tinha nascido o sol e começam a chegar autocarros da Carris e estacionarem, a estacionarem. Pipas de autocarros para meter 1200.

Nesse ano, Helena teve de fugir para Paris com o marido Alfredo Noales, que tinha sido denunciado e enfrentava nova ameaça de prisão, depois de ter estado preso e sob tortura em 1958. Alfredo era membro do PCP, jornalista do República e tinha sido secretário-geral da RIA [Reunião Inter Associações], um órgão de coordenação do movimento associativo. Em Paris, o seu círculo de amigos incluía nomes como António José Saraiva, Silas Cerqueira, Jorge Reis, José Mário Branco, Manuel Alegre e Maria Lamas. Foi precisamente a autora de “As Mulheres do Meu País” que lhe incumbiu a tarefa de lançar um movimento de mulheres em Portugal. Seria o MDM, Movimento Democrático de Mulheres.

O MDM nasceu em 1969, finais, quase 1970. Como é que começou isso? Tem piada por estar relacionado com Paris, com aqueles anos que eu estive de exílio em Paris. Eu morava ali ao pé do Boulevard Saint-Michel, ao pé do Jardim do Luxemburgo, e, portanto, ia buscar a Maria Lamas, que estava no Grand Hotel Saint-Michel, e ia buscá-la quase todos os dias, ao fim da manhã, para irmos um bocadinho apanhar sol para o jardim porque eu só trabalhava de tarde. Conversávamos imenso, aprendi imenso com ela. Ela contou-me imensas coisas do que tinha feito, que a tinham levado à cadeia, etc. E eu tinha com ela uma relação de grande proximidade, de grande amizade, ao ponto de ela estar no hotel e eu estava naquele pequeno estúdio e, no entanto, algumas vezes, fiz comidinhas portuguesas para lhe levar. Nestas nossas conversas sobre a situação política em Portugal, preocupava-a muito, e também a mim, a situação das mulheres portuguesas.

A ideia da Maria Lamas era poder se arrancar com um movimento unitário de mulheres que envolvesse mulheres de todas as tendências e mulheres sem tendências. (...) Entretanto, eu vim para Portugal e lembro-me que nas vésperas, quando me fui despedir dela, das últimas palavras que ela me disse, foi: “Não te esqueças do nosso movimento de mulheres agora que vais para Portugal!”. E assim foi.

Criar um movimento de mulheres não foi fácil e o problema não vinha só do contexto político da ditadura que calava qualquer iniciativa da oposição. O problema era simplesmente ser-se mulher num mundo em que mandavam os homens.

As primeiras reuniões de mulheres são feitas nesta sala, aí com umas 15 mulheres, todas que chegavam aqui clandestinamente, como se viessem para vender caixas de 'tupperwares'. No princípio tivemos imensa dificuldade em mobilizar, em trazer as mulheres às reuniões porque os maridos não as acompanhavam nisso. Como é que eu hei-de dizer? Não se solidarizavam e, portanto, não ficavam com as crianças. Por exemplo, diziam: “Ai, queres ir para a reunião? Então levas a criança.” E elas iam.

Em 1969, já a seguir às eleições ou mesmo durante a campanha eleitoral, nas reuniões maiores, as mulheres começaram a atrever-se a participar. Nos primeiros tempos não falavam, iam, mas não abriam a boca. Depois começaram a falar, a intervir, a querer intervir, mas frequentemente com as crianças no colo. E quando, nas reuniões à noite, a gente perguntava: “O Zé, o António, o marido não quer ficar com a criança?”. E respondiam: “Diz que é eu ou ele. Isto é, ele está na política e eu não tenho nada que estar porque estamos a prejudicar a criança."

Contra tudo e todos, houve mulheres que quiseram ser mais do que “as companheiras da sombra” dos maridos. Durante a ditadura, Helena Pato foi casada com dois resistentes antifascistas, Alfredo Noales e José Tengarrinha, mas também impôs a sua voz. Lutou no seio do PCP, foi dirigente estudantil, presa política, fundadora do Movimento Democrático de Mulheres e membro do núcleo de professores que dirigiu o movimento associativo docente, entre muitas outras coisas que fizeram com que se inscrevesse na história da resistência “à noite mais longa de todas as noites”.

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