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Revolução dos Cravos

As lutas estudantis contra a ditadura

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Em vários momentos, os estudantes enfrentaram o Estado Novo e as suas forças repressivas. Reclamaram liberdade de expressão e de associação, criticaram o autoritarismo do regime e pediram o fim da guerra colonial. Neste programa, ouvimos algumas pessoas que participaram nas crises académicas de 1962, de 1965 e no movimento contestatário dos liceus no início da década de 70.

Cartaz sobre lutas estudantis. Museu do Aljube - Resistência e Liberdade. Lisboa, 5 de Fevereiro de 2024.
Cartaz sobre lutas estudantis. Museu do Aljube - Resistência e Liberdade. Lisboa, 5 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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A luta estudantil é outro dos capítulos da resistência ao regime ditatorial português. Foi na década de 1960 que conheceu maior intensidade, radicalização e repressão.

O Estado Novo teve, em 1962, um ano negro de agitação universitária e a crise académica constituiu o baptismo político de muitos jovens. O Governo de Salazar tinha proibido as comemorações tradicionais do Dia do Estudante a 24 de Março e, nesse dia, a polícia de choque invadiu a Cidade Universitária de Lisboa, carregando sobre centenas de jovens. Em reacção, os estudantes declaram luto académico, na prática, greve geral às aulas.

Presente nas lutas estudantis de 1962, esteve Isabel do Carmo, que viria a ser co-fundadora das Brigadas Revolucionárias, uma das organizações de luta armada contra a ditadura portuguesa. Tinha entrado para o Partido Comunista Português com 17 anos e era dirigente estudantil. No meio dos plenários essencialmente masculinos, mostrou que as mulheres também contavam.

Eu atrevi-me. Havia os grandes plenários no Estádio Universitário, onde falavam só os rapazes, rapazes meus amigos, que eu conheço bem. E eu pensei: “Isto não pode ser, isto não pode ser”. E então subi ao palanque e pedi a palavra. Fui realmente a única, com rapazes muito aflitos e eu um bocado stressada, não é? Mas cheguei-me à frente e falei de lá de cima e disse que as mulheres não eram só o repouso do guerreiro, que as mulheres eram o guerreiro também.

Isabel do Carmo, Co-fundadora das Brigadas Revolucionárias. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024.
Isabel do Carmo, Co-fundadora das Brigadas Revolucionárias. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
Helena Pato em sua casa. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2024.
Helena Pato em sua casa. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI

Em Lisboa, a 9 de Maio de 1962, um plenário de estudantes aprovou uma greve de fome colectiva na cantina da Cidade Universitaria. A 11 de Maio, chegou a polícia de choque e os estudantes foram detidos, cerca de 1200 no total, segundo Helena Pato, que foi parar aos calabouços do Governo Civil junto com um grupo de 50 alunas, enquanto as centenas de rapazes foram para o quartel da PSP.

Aquilo começou a encher, a encher, a encher. Era estudantes por todo o lado, sentados nas cadeiras, à beira das mesas. Lá em cima, aquilo tem uma galeria com cadeiras e mesas, montes de estudantes sentados no chão porque já não havia mais espaço. Eram 1200 e foram todos presos. Tudo preso, tudo preso!

A repressão de 1962, em Lisboa e em Coimbra, acabou por aumentar a politização dos estudantes portugueses e a consciencialização de que a luta ia para além dos interesses meramente estudantis e associativos. Surgia a defesa de uma "nova Universidade" que rompesse com a perpetuação de uma elite moldada pelos interesses da ditadura e que pusesse em causa o próprio regime. Os estudantes começaram a criticar o fraco índice democrático na frequência das universidades, a guerra colonial e o autoritarismo do regime.

A participar nas lutas estudantis de 1962 esteve também Fernando Rosas que, em 1965, viveu outro momento de força do movimento académico e foi preso pela primeira vez quando o governo ordena à PIDE a detenção dos principais líderes estudantis. Andava no segundo ano da Faculdade de Direito e fazia parte da direcção do sector universitário do Partido Comunista Português para o qual tinha sido recrutado em 1961. Tinha 18 anos e completou 19 na cadeia. A repressão acabaria por ser um tiro no pé do próprio regime, desencadeando uma onda de protestos no meio universitário português e com ecos fora de fronteiras.

 

Nós fomos julgados. Foi um grande processo. Foram 30 e tal, não me lembro bem, mas 36 ou 37 estudantes presos. Juntaram-se todos os principais advogados que defendiam presos políticos em Portugal, e que trabalhavam “pro bono”, juntaram-se na defesa e o julgamento transformou-se num grande episódio da denúncia do regime, da polícia política, da situação na universidade. Depuseram, como testemunhas de defesa dos presos, figuras como Maria Barroso, o professor Lindley Cintra, uma série de personalidades ligadas à cultura e, portanto, foi um momento político que se virou contra a própria polícia política, contra o regime. Até porque combinámos entre nós, cada um de nós, denunciar na sala de audiências, apontando-os a dedo, os polícias que nos tinham torturado e, portanto, isso teve um grande impacto.

Fernando Rosas, Historiador. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024.
Fernando Rosas, Historiador. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
Octávio Espírito Santo, Militante antifascista. Paris, 7 de Janeiro de 2024.
Octávio Espírito Santo, Militante antifascista. Paris, 7 de Janeiro de 2024. © Carina Branco/RFI

Enquanto a luta se fazia em Portugal, de França vinham os ventos da contestação do Maio de 68, em que participaram muitos exilados portugueses. Nesse ano, em Portugal, a PIDE ocupou a Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico de Lisboa, acusada pelo regime de ser subversiva, e desencadeando novo “luto académico”. Em 1969, a crise académica continua e tem como epicentro a Universidade de Coimbra.

Em 1971, a reforma educativa promovida por Veiga Simão determinou o encerramento de quase todas as associações de estudantes e a colocação de elementos do Ministério do Interior nas universidades, que viriam a ficar conhecidos como "gorilas". Um ano depois, a 12 de Outubro de 1972, um estudante universitário era assassinado por um agente da PIDE durante um protesto contra a repressão e o imperialismo em Económicas (actual ISEG), em Lisboa.

Ainda que tenha havido uma certa fragmentação do movimento estudantil, houve lutas que continuaram, nomeadamente no ensino secundário.

Octávio Espírito Santo fez o Liceu Passos Manuel, em Lisboa, onde iam parar os estudantes e professores considerados mais problemáticos para o regime. Esta foi uma escola que ele descreve como “um sítio de revolução”. Aí circulavam vários jornais, de mão em mão, a denunciar a política repressiva do ensino. Octávio integrou a CEDL, Comissão de Estudantes Democratas de Lisboa, que era uma organização ligada à CDE, Comissão Democrática Eleitoral, em tempo de eleições. Pertenceu também à organização clandestina da União de Estudantes Comunistas.

Fazíamos documentos e, pronto, eu tinha a responsabilidade de encontrar contactos e falar com malta de liceus. Cada um tinha as suas tarefas (…) Por exemplo, lembro-me que depois da morte do Amílcar Cabral, sozinho, entrei à noite no Passos Manuel. Os liceus estavam fechados, mas como havia treinos da Associação de Andebol do Passos Manuel, entrei com o argumento de ir assistir a um treino. Entrei no recinto e, no outro dia, estava tudo pintado. “Contra a guerra colonial, a denunciar a morte do camarada Amílcar Cabral, contra o fascismo, por um ensino igualitário e popular.

Naquela altura, havia uma multiplicidade de tendências estudantis que alimentavam a contestação nas escolas e que se movimentavam no MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa), criado em 1967, depois da desagregação da Comissão Pró-Associação dos Estudantes do Ensino Liceal de Lisboa.

A 16 de Dezembro de 1973, a polícia do Estado Novo prendeu 151 estudantes do ensino secundário de Lisboa que se reuniam na Faculdade de Medicina. Tinham entre 13 e 18 anos e foram levados nas carrinhas da polícia para os calabouços do governo civil naquela que ficou conhecida como “a noite da carecada”. Durante a noite, 12 estudantes do ensino secundário e cinco do ensino superior são conduzidos à prisão de Caxias.

Octávio Espírito Santo não foi preso porque, como era filho de um oposicionista, tinha sido aconselhado a não participar na reunião. Em contrapartida, esteve nos chamados “acantonamentos” criados para receber os camaradas que tinham estado detidos.

Cada um de nós teve os seus acantonamentos para receber os camaradas que sofreram essa humilhação. Era à estudante, quer dizer, a polícia, às tantas, com aquela coisa toda, controlava certamente. Por exemplo, o meu foi na praia, ao pé da Trafaria, de noite, com fogueiras, com tendas na praia, a receber os camaradas, vindos da prisão, com canções.

A resistência dos estudantes de liceu, entre 1970 e 1974, foi tema de uma exposição na Torre do Tombo, em Lisboa, intitulada “Há Sempre Alguém Que Diz Não! A oposição estudantil à ditadura no ensino secundário de Lisboa (1970-1974)” entre Dezembro e Fevereiro. A exposição vai estar, até final de Maio, na câmara municipal de Grândola. O tema é também tratado no livro “A Urgência da Palavra Impressa – A imprensa dos “intrépidos adolescentes” contra a ditadura (1970 – 1974)" de Rui M. Gomes e Jorge Ramos do Ó.

Torre do Tombo, Lisboa, 9 de Fevereiro de 2024.
Torre do Tombo, Lisboa, 9 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI

Em vários momentos, os estudantes enfrentaram o Estado Novo e as suas forças repressivas. Reclamaram liberdade de expressão e de associação, criticaram o autoritarismo do regime e pediram o fim da guerra colonial. E, acima de tudo, fizeram tremer a matriz ideológica da ditadura que estava inculcada em todo o sistema de ensino português.

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