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#Molière/Cabo Verde

“Molière crioulo” deu lição ao “machismo estruturado” de Cabo Verde

O “machismo estruturado” retratado por Molière no século XVII teima em manter-se actual. Em Cabo Verde, o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo apropriou-se da peça “Escola de Mulheres”, de 1662, e mostrou que é hora do empoderamento feminino. A actriz Janaína Alves conta como se reinterpretou Molière numa sociedade aparentemente matriarcal, mas em que quem manda são os homens.

Janaína Alves. Centro Cultural Português do Mindelo, na ilha de São Vicente. 21 de Março de 2022.
Janaína Alves. Centro Cultural Português do Mindelo, na ilha de São Vicente. 21 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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Numa altura em que se celebram os 400 anos do nascimento de Molière, continuamos em busca de encenações lusófonas que se apropriaram do dramaturgo francês de forma original. Em Cabo Verde, o encenador João Branco e o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo realizaram a “crioulização cénica” das obras “Médico à Força” e “Escola de Mulheres”, nos anos 2000, 2013 e 2019, e criaram o “Molière cabo-verdiano”.

As peças foram traduzidas para o crioulo, adaptadas à realidade local e musicadas com ritmos de Cabo Verde, a ponto de a língua francesa, conhecida como a língua de Molière, ter originado um “crioulo molierano” e alguns dos diálogos do século XVII terem sido cantados em mornas.

Fomos à ilha de São Vicente conversar com o encenador, mas também com Janaína Alves, Fidélia Fonseca, Rank Gonçalves e Zenaida Alfama, alguns dos actores que interpretaram personagens tão “molierescas” quanto “mindelenses”. Nesta entrevista, regressamos ao palco com Janaína Alves que interpretou a criada Georgette em “Escola de Mulheres”.

Era a primeira vez que Janaína Alves entrava num espectáculo escrito pelo mestre do teatro francês, mas o desafio foi bem mais longe porque o encenador João Branco estava a realizar aquilo que teorizou como "crioulização cénica", ou seja, uma espécie de “antropofagia cénica” que consistia em “mastigar bem os clássicos, digeri-los” e criar algo cabo-verdiano. A receita deixou água na boca.

“Este foi o meu primeiro espectáculo de Molière. Quando a gente fala da crioulização cénica, que é pegar num clássico, mastigá-lo e depois se apropriar dele, é muito mais do que uma adaptação, é muito mais do que uma tradução, é uma apropriação forte. Quando o encenador nos diz: ‘Vai ser no Mindelo e além disso tens de trazer o teu sotaque mais o crioulo’ - na época eu não falava crioulo muito bem - então, ter que actuar numa língua que não é minha, isso deu uma certa dificuldade mas deu um prazer muito grande de compor essa personagem”, recorda.

Graças à “crioulização cénica”, o público identificou-se com a peça, apesar de esta ter sido escrita há mais de três séculos. Além da adaptação ao mundo do Mindelo do início do século XX, deu-se naturalmente a transposição das críticas sociais do século XVII para situações paralelas no século XX. É que a peça trata fundamentalmente do "machismo estruturado” e “as pessoas sentiram-se identificadas”.

O encenador João Branco foi ainda mais longe ao alterar o final do espectáculo. Na obra de Molière, Inês estava destinada a casar com Arnolfo, que a escondeu da sociedade para moldar uma esposa fiel e obediente, vigiada pelos criados Georgette e Alain. Porém, os planos vão por água abaixo quando Inês conhece Horácio e cai nos seus braços. Ora, João Branco decidiu que bastava de “machismo estruturado” e que era tempo de “empoderar as mulheres”.

Ele [encenador] fala de tudo isso, do machismo, da coisa de a mulher se casar com um homem mais velho, a coisa da princesa que tem de se casar... E ele muda. Ele dá poder à personagem da Inês. No final, ela não fica nem com um nem com outro. Ela vai embora sozinha! O final é muito inesperado. É um choque muito grande para o público porque vai indo no ritmo que parece que ela vai ficar com um, depois com o outro e, de repente, ela vira uma empoderada e vai à sua vida. É muito interessante”, explica Janaína Alves.

A actriz acrescenta que o facto de o final ser diferente do texto de Molière foi algo “muito” revolucionário porque foi como se “jogasse à cara das pessoas: ‘Vocês, mulheres, não precisam mais disso. Vocês podem empoderar, podem dar o vosso clique e seguir a vossa vida’”.

Por isso, Molière continua a ecoar hoje e a fazer sentido em Cabo Verde porque “ele traz muitas coisas que, de certa forma, a gente ainda vai vivendo”.

A questão da própria ‘Escola de Mulheres’, o machismo estruturado que tem ali, infelizmente, em 2022, a gente ainda tem muito. Embora a sociedade cabo-verdiana seja totalmente matriarcal – as mulheres aqui vão trabalhar, as mulheres emigraram – ainda tem um machismo muito forte na própria sociedade. Ainda tem uma imposição muito grande com a mulher, um preconceito muito forte, as mulheres ainda não têm muitos pontos de poder. Os pontos de poder que têm ainda são muito maquilhados, embora todo o mundo diga que não, que a mulher tem força, mas ainda é um processo muito difícil. As pessoas sentiram-se muito identificadas com tudo aquilo”, resume a actriz, que é também diretora da Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo (ALAIM).

Além disso, a “Escola de Mulheres” foi encenada como se se desenrolasse na cidade do Mindelo, nos tempos áureos do Porto Grande, e como se fosse uma comédia a preto e branco, em homenagem ao cinema mudo. Janaína Alves teve, ainda, a responsabilidade da maquilhagem dos actores e ajudou na composição dos figurinos, algo fundamental para dar essa impressão de um filme a preto e branco, com tudo a condizer com o cinema mudo da época.

Imagina entrares no espectáculo e veres todas as personagens a preto e branco porque a maquilhagem foi super carregada nesse sentido. A gente tinha mesmo essa noção, tivemos muito cuidado plástico de as coisas serem totalmente a preto e branco: os adereços, os figurinos, o cenário, a pele dos actores, a maquilhagem toda carregada nesse sentido, as expressões bem marcadas como no cinema mudo. Entrar numa sala de espectáculo e ter aquele impacto visual, claro que já causa uma comoção”, descreve.

Os actores que incarnaram os criados tiveram um papel de relevo porque, como é comum nos textos de Molière, estas são as personagens mais astutas e também “a parte cómica mais cómica”. Por isso, foi decidido dar a estas personagens composições “clownescas” com “muita mímica”.

Janaína Alves conta que um dos maiores desafios de interpretar uma personagem de Molière acabou por ser a crioulização dessa figura e a sua transposição para o tempo e o espaço cabo-verdiano. Ela agarrou na personagem do século XVII e pô-la a falar em crioulo de São Vicente com um sotaque brasileiro, visto que todas as personagens tinham sotaques internacionais que remetiam para o tempo em que o Porto Grande era um vai e vem de culturas e nacionalidades. “Foi uma experiência muito forte”, recorda.

A gente teve um estudo de mesa muito forte para fazer o espectáculo, o que ajudou bastante. Para compor a personagem, estive a ler muito Germano Almeida porque ele fala muito das empregadas e de como é que as empregadas aqui se movimentam dentro da casa...

Tal como o cinema mudo era acompanhado por concertos ao vivo, também a música percorreu toda a peça, igualmente numa homenagem ao Mindelo e aos seus ritmos. Em palco, esteva sempre o pianista Khali Angel, mas também havia mornas e coladeiras de compositores locais, jazz, samba e até “chanson française”.

A gente tinha música ao vivo. Tínhamos piano a acompanhar o espectáculo a tempo inteiro. Isso dava um gás mais forte ao espectáculo, dava para compor com as personagens, a gente sentia mesmo que estava a fazer um cinema mudo. Foi muito interessante fazer esse espectáculo e foi bem desafiador também”, conclui.

Oiça aqui a entrevista.

09:45

Molière deu liçao ao machismo de Cabo Verde

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