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Documentário sobre Sita Valles dá voz às vítimas silenciadas do 27 de Maio

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O documentário “Sita: a vida e o tempo de Sita Valles”, da realizadora Margarida Cardoso, parte da história de uma das vítimas mais conhecidas do 27 de Maio de 1977 em Angola para falar de toda uma geração destruída e calada à força. O filme devolve-lhes a voz e vai ter a primeira exibição pública no festival IndieLisboa, a 6 de Maio, estreando nos cinemas portugueses a 12 de Maio.

Imagem do documentário “Sita: a vida e o tempo de Sita Valles”, da realizadora Margarida Cardoso.
Imagem do documentário “Sita: a vida e o tempo de Sita Valles”, da realizadora Margarida Cardoso. © Midas Filmes
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É um documentário esmagador e desconcertante. “Sita: a vida e o tempo de Sita Valles”, da realizadora Margarida Cardoso, parte da história de uma das vítimas do 27 de Maio de 1977 em Angola, Sita Valles, para lembrar todos os que foram assassinados nos dois anos que se seguiram a esse dia.

A 27 de Maio, manobras militares e apelos a manifestações populares a favor de uma mudança ideológica no seio do MPLA são reprimidas pelas forças leais ao presidente Agostinho Neto. A versão oficial que perdurou no tempo é que foi uma tentativa de golpe de Estado. Seguiram-se dois anos de perseguição brutal aos chamados fraccionistas ou nitistas, com milhares de mortos.

O silêncio começou a ser quebrado há poucos anos, há um processo de reconciliação nacional em curso, o Presidente de Angola pediu perdão em nome do MPLA em 2021, há promessas de entrega de ossadas e certificados de óbito, mas a luta continua. É o que mostra o último plano do filme. A luta continua. Porquê? É por esta pergunta que começamos a conversa com Margarida Cardoso.

RFI: “A luta continua” é a frase que se lê no último plano do filme, acompanhado pelo discurso do Presidente a pedir desculpas às vítimas dos conflitos políticos, nomeadamente do 27 de Maio. Por que escolheu terminar com este plano?

Margarida Cardoso, Realizadora: A luta continua tem um significado muito especial porque eu acho que esta luta para se descobrir a verdade, para se tentar a reconciliação, não está fechada com um pedido de desculpas. Eu acho que este processo de tentativa de reconciliação de um povo, do próprio povo com os seus irmãos, é uma coisa que tem que continuar. E já num filme anterior que eu tenho, “Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema”, eu também termino com essa frase.

Os acontecimentos de 27 de Maio de 1977 provocaram uma purga em Angola que levou à morte de mais de 30.000 pessoas, de acordo com a Amnistia Internacional, mas os números variam e o filme aponta que possam ter sido até 70.000. Porque é que escolheu partir da história desta mulher, Sita Valles, na altura com 25 anos, mãe há poucos meses, que segundo vários relatos estaria novamente grávida quando desapareceu e que foi acusada de ser uma das cabecilhas do alegado golpe?

Eu encontrei a história da Sita quando fazia a investigação para um filme de ficção que fiz, “Yvone Kane”, e eu estava muito interessada em como as pessoas nessa altura, sobretudo nos anos 60 e 70, se empenhavam tanto nas lutas ideológicas e como esses conflitos ideológicos tinham uma importância tão grande nessa geração. Encontrei a figura da Sita e, claro, quis logo fazer alguma coisa com a história dela. Era um personagem bastante contraditório, quer dizer, para uns era uma revolucionária que levou a luta política até ao extremo, para muitos que a levou longe demais. Interessou-me muito essa questão tão complexa da própria personalidade da Sita e de como ela, no fundo, também tinha passado por três fases.

Foi uma pessoa que viveu no tempo colonial, numa sociedade colonial em Angola muito cheia de regras e ela até era de uma família bastante burguesa, estava bem ali com os brancos apesar de ser goesa. Depois, ela também veio para Lisboa e passou uma fase da luta anticolonial em Lisboa. E, depois, o seu fim em Angola, nos primeiros anos da independência. Portanto, o facto de ela ter atravessado estas três fases interessou-me também muito porque são fases que ando a estudar há muito e que me interessam nos filmes.

O processo foi muito longo porque o assunto ainda era tabu em Angola quando fui a primeira vez e comecei a entrevistar pessoas. Também porque era muito difícil contar esta história sem contar outras coisas, mas penso que consegui uma coisa que muitas pessoas podem aderir sem conhecerem os pormenores da história que são muitos.

Como disse e vemos no filme, muitos testemunhos descrevem Sita Valles como uma revolucionária profissional, uma agitadora, uma temerária, uma activista que desafiava o perigo. Ela lutou contra o regime fascista em Portugal, era comunista, lutava na clandestinidade dos bancos da faculdade de medicina e depois da Revolução dos Cravos foi para Angola e integra o MPLA. Por que é que ela foi uma das principais visadas pela repressão e como é que hoje a descreve? Um fantasma incómodo?

Para responder à primeira questão eu acho que temos de contar que, no fundo, de todas estas vítimas dos acontecimentos do 27 de Maio, a Sita foi a pessoa que acabou por ter mais projecção penso que pelo facto de ser uma mulher. No filme vê-se a lista dos cabecilhas e das pessoas que o MPLA procurava na altura como os cabecilhas do alegado golpe e a Sita é a única mulher. A família dela também fez um grande esforço para não se esquecer a história dela.

No filme, mostra, por exemplo, alguns planos em que lemos: “É preciso apanhar já estes assassinos” e em que se vêem os rostos de Nito Alves, José Van Dunem, Bakalof, Sita Valles, Luís Passos…

Sim, sim, sim.

Isso eram panfletos ou era no Jornal de Angola?

Não, era do Jornal de Angola, mas também havia muitos panfletos e havia inclusivamente panfletos à porta das lojas e tudo, mas disso não tenho imagens. Há muito poucas imagens disponíveis destes acontecimentos, o que é natural.

Mas respondendo à questão anterior, eu acho que a Sita foi muito mais visada porque foi considerada uma figura quase diabólica, de certa forma. Eu acho que foi porque nunca a consideraram angolana. Apesar de a Sita ter nascido em Angola, ela nunca teve a nacionalidade angolana, nunca lhe foi concedida essa nacionalidade e foi sempre considerada a estrangeira que se intrometeu um pouco nos assuntos internos - o que é absolutamente injusto visto que ela nasceu em Angola mas nunca conseguiu a sua nacionalidade pós-independência. Depois, eu acho que o facto de ser mulher foi um dos factores para que ela fosse uma das figuras mais perseguidas e mais diabolizadas, de certa forma.

E como é que hoje a descreve, como é que olha para ela? Uma heroína trágica?

Sim. Eu olho com todas as contradições do que é uma heroína trágica, como dizes. Ela tinha uma série de qualidades imensas, de conseguir juntar pessoas, de conseguir modificar as coisas, pôr coisas a andar, uma capacidade oratória muito grande.

Mas, ao mesmo tempo, tinha também dentro dela um lado um pouco de uma falta de abertura em relação a outras coisas, tinha um lado demasiado focado nalgumas coisas. Eu acho que é isso, que é uma heroína trágica e que traz com ela, dentro da tragédia da sua muito curta vida, toda a tragédia de uma certa geração. Sobretudo as questões identitárias, aquilo que eu referi no início de ela nunca ter conseguido ter a sua nacionalidade. Aconteceu com muita gente e aconteceu com muitas pessoas que estão a ser entrevistadas no filme. Esse problema, essa divisão que houve nessa altura, essa confusão que havia num mundo numa turbulência incrível, eu acho que marca muito não só a personagem da Sita mas também a personagem de uma geração. Por isso, o filme se chama, talvez de uma forma um pouco pomposa, “A vida e o tempo de Sita Valles” porque ela também representa um tempo.

O tempo em que é mostrado este filme é um tempo em que se quebra o silêncio em torno do 27 de Maio. O filme estreia em ano de eleições gerais em Angola. É uma coincidência ou há uma parte de activismo e de reparação de o fazer em ano de eleições?

Em relação ao filme, não coordenei nada. Realmente o filme sai agora porque foi a altura em que eu acabei. Curiosamente, eu já tinha acabado o filme quando o Presidente João Lourenço fez aquele pedido de desculpas do 27 de Maio, que aparece no final do filme, porque juntei-o ao final. Sai agora, numa altura em que realmente vai haver eleições, mas não foi com nenhum propósito.

Como há tantas forças e tantas coisas tão sensíveis, eu tentei focar toda a história muito na biografia da Sita. Claro que me posiciono do lado em que temos que denunciar a purga que se seguiu a este alegado golpe, que foi uma coisa brutal – é considerada até hoje a maior purga ideológica em África – e eu estou do lado de apoiar todas as pessoas e todas as associações que ainda lutam pela verdade e, sobretudo, para se continuar a falar deste assunto. Mas sei que há várias formas de pensar, várias formas de abordar este assunto que ainda tem tantos segredos, tantas coisas escondidas.

As pessoas entrevistadas têm alguma expectativa em torno do processo de reconciliação nacional? Uma das pessoas que fala diz que é apenas uma forma de "passar uma esponja sobre o assunto"…

Sim, quem diz isso é o próprio irmão da Sita. Aquele anúncio da devolução das ossadas ou da identificação das ossadas de certas pessoas que são nomeadas como cabecilhas do alegado golpe… Eu não tenho seguido muito pormenorizadamente porque tenho estado a filmar em São Tomé já há mais de quatro meses e estou um bocadinho fora das últimas notícias, mas penso que esse processo também não está a correr muito bem, está a correr de uma forma sempre um pouco obscura e pouco transparente. Eu acho que, sinceramente - e também há uma pessoa no filme que diz isso, a Maria Eugénia Varela Gomes - talvez isto seja um pouco como a guerra civil de Espanha, nunca se consegue realmente chegar a uma reconciliação, isso não existe, é difícil.

O perdão e a reconciliação, nestes casos, pode-se fazer muitas coisas mas vai ser difícil essa reconciliação. Eu acredito sinceramente que se houvesse mais transparência nos processos, tudo seria melhor. Se não houvesse tentativa de calar as pessoas, de manipular aquilo que elas dizem ou questionam.

Eu sei que este filme vai ser um filme que muitas pessoas vão dizer que “não foi assim” ou que “isto não é assim”. Eu sei esse tipo de coisas. Mas estes filmes e estas abordagens têm que continuar a existir. Eu comecei o filme há dez anos e hoje consegue-se falar do 27 de Maio. Acho isso muito importante.

Escolheu fazer um filme em forma de documentário, recorreu a fotografias, a imagens de arquivo e foi buscar testemunhos de sobreviventes do 27 de Maio e o irmão de Sita Valles. Isto corresponde a uma tentativa de se aproximar um pouco mais daquilo que pode ter acontecido? Em vez de fazer uma ficção, por exemplo?

Eu acho que não estamos na altura ainda de ficcionar uma coisa em que ainda há tantas coisas para se saber, para se ouvir e tudo isso. Para mim é a forma de dar a voz às pessoas que estiveram caladas tantos anos. Eu tenho também entrevistas antigas feitas há quase 11 anos em que as pessoas ainda tinham um certo receio de dizer algumas coisas e, para mim, faz todo o sentido que o filme tenha essa forma de testemunho, de dar a voz.

Tenho também pessoas que morreram entretanto mas que tiveram a hipótese de falar sobre isto e de dar entrevistas e essas entrevistas, mesmo que eu as use 5 ou 10 minutos, pelo menos fiquei com um espólio sobre o 27 de Maio, com entrevistas longuíssimas que às vezes têm três e quatro horas. Eu valorizo muito ter ouvido essas pessoas, ter gravado e ter registado.

Até porque o filme fala de Sita Valles mas é “o tempo” de Sita Valles, ou seja, está omnipresente o 27 de Maio de 1977 e, com ele, todas as vítimas da repressão. Depois de todas as suas investigações e de ter realizado o filme, como é que resume o 27 de Maio de 1977 e os dois anos que se seguiram?

A percepção que eu tenho – e acho que passa um pouco no filme – é que é como se se tivesse criado uma espécie de tempestade perfeita para se conseguir aniquilar tantas pessoas, por vezes de uma forma mais sistemática e mais organizada e, depois, dentro desse espírito da tempestade perfeita, houve milhares de pessoas que foram assassinadas por nada, porque alguém queria a casa, por intrigas pessoais, etc. Por várias razões, criou-se ali uma tempestade perfeita a nível de violência, de vingança.

Eu não tenho nenhuma explicação, também não me cabe a mim fazer esse tipo de julgamentos, mas eu queria dar no filme a ideia disso. Eu sei que a história nunca se corrige e nós vimo-lo hoje com a guerra na Ucrânia. Nós continuamos sempre a cometer os mesmos erros históricos, mas eu gostava muito que o filme transmitisse isso, transmitisse a ideia que tenhamos sempre cuidado porque estas tempestades podem acontecer. Aconteceram nessa altura, mas podem acontecer hoje em qualquer sítio. Essa explosão de violência aleatória é uma coisa que a mim me assusta muito porque me faz desacreditar muito na natureza humana. Gostava que o filme funcionasse como um pequeno aviso para que isso não volte a acontecer.

O que resta da Sita Valles em nós? 

Ela resta em nós como uma espécie de pedra no sapato. Qualquer coisa que está ali, que não foi resolvida e que nos faz sempre pensar em como as pessoas podem ser apanhadas em mecanismos históricos com vários links porque também no momento em que ela foi para Angola todas as forças geopolíticas que estavam em jogo eram extraordinárias, eram terríveis. Eu acho que o que resta dela em nós é isso. O facto de ela ter desaparecido, e ter desaparecido naquelas circunstâncias, faz com que ela seja hoje para nós esse grãozinho de areia que nos faz sempre pensar no que correu mal, no que se poderia ter sido feito melhor e no que se pode fazer melhor para o futuro.

O filme tem estreia prevista em Angola?

Não sei, francamente não sei. Vai estrear em Portugal, temos a estreia no Indie, depois uma estreia em sala no Cinema Ideal. O filme vai passar na RTP2 em duas partes nos dias 26 e 27 de Maio deste ano e também vai estar disponível depois na plataforma Filmin logo a partir do momento da estreia. Espero que seja uma forma de poder divulgar o filme. Se não houver uma estreia em Angola, há muitas maneiras de ver o filme e quem estiver interessado pode aceder ao filme. Tenho muita esperança que mesmo que não haja estreia, as pessoas possam aceder ao filme.

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