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Corpos queimados em Cabo Delgado: "Não pode ser a SANIM a investigar-se a si própria"

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Moçambique continua em estado de choque depois de terem sido recentemente divulgadas imagens de militares presumivelmente sul-africanos a queimar cadáveres de supostos jihadistas em Cabo Delgado, no norte do país. Para além dos protagonistas da acção, é também possível ver no vídeo soldados que filmam esta cena que segundo primeiros elementos do inquérito entretanto encetado pela SADC, poderá ter acontecido em Novembro do ano passado.

Militares sul-africanos da South African National Defence.
Militares sul-africanos da South African National Defence. © AFP
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Desde Outubro de 2017, Cabo Delgado tem sido palco de ataques que em alguns casos têm sido reivindicados pelo grupo Estado Islâmico, com um balanço de pelo menos 4 mil mortos, segundo o projecto de registo de conflitos ACLED, e um milhão de deslocados, de acordo com a ONU.

Desde Julho de 2021, as forças ruandesas e contingentes regionais vindos nomeadamente da África do Sul estão presentes no terreno para apoiar o exército moçambicano no combate aos terroristas, mas do ponto de vista de Adriano Nuvunga, director executivo do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD), o conflito ameaça eternizar-se.

Ao reclamar uma investigação independente sobre os últimos acontecimentos, o activista considera que estas violações dos Direitos Humanos podem não ter sido somente cometidas pelas forças estrangeiras.

RFI: Segundo as informações recolhidas pelo CDD, há indícios de que as forças de defesa nacionais possam ter cometido actos semelhantes àqueles que foram recentemente atribuídos às forças sul-africanas?

Adriano Nuvunga: Claramente. Se se notar que desde que em finais de 2021 entraram tropas estrangeiras, tem-se assaltado bases dos terroristas mas não se tem apresentado vítimas, nem se tem apresentado prisioneiros, o que pode pressupor a ideia de que se estejam a queimar os corpos das pessoas que são atingidas e pode até ser corpos de civis mantidos no cativeiro por estes terroristas. Isto é crime, isto é violação dos Direitos Humanos e tem que ser responsabilizado.

RFI: Lá está, relativamente aos corpos calcinados, presume-se que sejam jihadistas mas também podem ser civis. Que indícios a sua organização tem relativamente a esta situação?

Adriano Nuvunga: Já chamamos a atenção em variadíssimas situações. Em todas as missões, se reparar, nos primeiros dois ataques feitos pelas tropas estrangeiras, falou-se de civis que foram recuperados das mãos dos terroristas e chamamos a atenção de que era preciso envolver uma terceira parte para acompanhar a transparência desse processo. Desde esse momento até hoje, nunca mais se apresentou civis que foram recuperados das mãos dos terroristas. Isto pode estar a levar-nos a um entendimento de que há um uso desproporcional da força que atinge civis em situação de cativeiro, e por outro lado, se estejam a queimar esses corpos para disfarçar situações de crimes que estejam a ser perpetrados pelas pessoas que estão a liderar as operações militares.

RFI: A confirmar-se que efectivamente estas violações dos Direitos Humanos são perpetradas em maior escala do que se poderia imaginar, quais são os efeitos que isto pode ter relativamente ao conflito que se vive em Cabo Delgado e junto da própria população da província?

Adriano Nuvunga: Há duas situações. A primeira é de engendrar mais radicalização. Isto está confirmado até em documentos oficiais do Estado moçambicano: há uma dimensão nacional deste conflito, com recrutamentos feitos em muitas daquelas regiões dos distritos mais a norte da província de Cabo Delgado. Por outro lado, tem a dimensão de facilitar o recrutamento. Em face de uma comprovada violação dos Direitos Humanos, isto engendra, por um lado, maior radicalização e, por outro, facilita novos recrutamentos. São os recrutamentos que alimentam o conflito e fazem com que seja mais difícil o seu controlo e o seu combate. Neste sentido, isto pode resultar numa intratabilidade do conflito.

RFI: Desde que surgiram estas imagens, as próprias autoridades sul-africanas e também as forças regionais dizem ter encaminhado uma investigação. Julga que isto é suficiente? Esta investigação tem a possibilidade de ser efectivamente objectiva?

Adriano Nuvunga: É insuficiente e essa investigação não é propriamente credível. Em situações similares, o que se faz é uma comissão independente constituída por uma terceira parte para fazer a investigação. Não pode ser a SANIM (Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique) a investigar-se a si própria perante crimes hediondos como estes. Portanto, nós, como sociedade civil, como CDD, fazemos o chamamento para uma comissão independente para investigar com mais profissionalismo e seriedade estes incidentes.

RFI: Que formato deveria ter o inquérito a seu ver? Deveria ser um inquérito internacional ? Dveria haver alguma organização tal como a ONU, por exemplo, que deveria intervir neste caso?

Adriano Nuvunga: Compreendendo que se trata de forças estrangeiras com comportamento criminoso em território nacional e porque autorizadas a operar em Moçambique, sim, tinha que haver um organismo internacional. Poderia começar pela União Africana, por exemplo. Poderia ser o primeiro passo, mas claramente com o envolvimento de 'expertise' das Nações Unidas, porque estamos diante de um crime que tem o potencial de exacerbar a violência. Neste sentido, maior seriedade e profissionalismo se impõem nesta comissão que nós estamos a pedir que seja formada.

RFI: Quais podem ser as explicações do relativo silêncio do executivo moçambicano perante esta situação? Não será uma espécie de reconhecimento de que perdeu completamente o controlo da situação?

Adriano Nuvunga: Sem dúvida. Há um certo ignorar da crise em Cabo Delgado. Há cada vez mais indiferença em relação ao sofrimento da população, a crise humanitária e o deflagrar do conflito em Cabo Delgado. Mas também há a dimensão de capacidade mesmo. Apesar do esforço que o Ministro da Defesa tem estado a empreender, há claramente a questão da capacidade aqui. E ainda que eu reconheça a dimensão da capacidade, tratando-se de violação dos Direitos Humanos, tinha que haver um pouco mais de determinação do Estado, nem que se tenha que ir buscar capacidade onde ela existe, porque o Estado moçambicano pode ser criminalizável.

RFI: Como é que poderíamos qualificar a situação actualmente em Cabo Delgado? Ainda há dias, foi anunciada a reabertura de cerca de 200 escolas, considerando-se que a situação está a ser controlada. Acha que efectivamente a situação está controlada como afirmam as autoridades moçambicanas?

Adriano Nuvunga: Há uma evolução positiva da situação em termos de redução da frequência dos ataques e a sua magnitude. Compreendendo que estamos a sair de uma situação em que os extremistas violentos tinham ocupado a sede do distrito de Mocímboa da Praia, se partirmos desta base, podemos dizer que há uma evolução positiva. Mas, ao que nos parece, pode se estar a transformar este conflito de grandes proporções para pequenos grupos muito mais dispersos em largas áreas dos mesmos e de outros distritos que criam instabilidade de uma dimensão também psicológica mas diária na vida da população. Dessa maneira, poderá se estar com maior preocupação de um controlo da área onde vão actuar os grandes projectos e um cada vez maior negligenciar daquilo que é a área maior da província de Cabo Delgado onde reside a população. Portanto, pode haver cada vez mais um cenário de 'dois Cabos Delgados'. Um da área controlada pelas tropas estrangeiras, mormente os ruandeses, e a outra mais larga entregue à capacidade das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique com o apoio aqui e acolá da SADC mas que na realidade está um pouco ao Deus dará.

RFI: Várias organizações da sociedade civil em Moçambique apelaram as autoridades a investir massivamente em Cabo Delgado para favorecer o emprego e para de certa forma também travar a tentação de se ser recrutado nas fileiras jihadistas. Houve iniciativas. Elas são efectivas ou não?

Adriano Nuvunga: Não são. Chega-se à cidade de Pemba (capital provincial), há um movimento desusado de organizações internacionais que movimentam viaturas, muitos recursos humanos etc... Mas 30 quilómetros depois de Pemba, não acontece muita coisa. Então, há um repetir-se dos mesmos erros que na maior parte das vezes nos levaram aonde estamos, que é a incapacidade em levar projectos de desenvolvimento para a comunidade, levar projectos onde a população está. Isso não está a acontecer. Se está a acontecer é muito mínimo, de forma descoordenada e sem adequada supervisão.

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