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Casal “revolucionário” da ARA lembra história do braço armado do PCP

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Raimundo Narciso, um dos fundadores da ARA, o braço armado do PCP que esteve em actividade entre 1970 e 1973, e Maria Machado, a esposa que ajudava a preparar os engenhos explosivos na cozinha, contaram à RFI algumas das histórias desta organização de resistência armada à ditadura. Cinquenta anos depois do derrube da ditadura em Portugal, o casal “revolucionário” recorda, ainda, como era viver na clandestinidade e na luta permanente.

Maria Machado e Raimundo Narciso. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024.
Maria Machado e Raimundo Narciso. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos Raimundo Narciso, fundador da Acção Revolucionaria Armada (ARA), e Maria Machado, que já era combatente antifascista antes de se juntar ao futuro marido.

Raimundo Narciso e Maria Machado, conheceram-se em Moscovo, nos anos 60, e escreveram juntos uma história de resistência armada à ditadura portuguesa. Hoje, aos 85 e 74 anos, contam-nos alguns desses episódios.

Maria Machado trabalhou, desde jovem, na tipografia clandestina dos pais, depois integrou a Acção Revolucionária Armada, em que Raimundo Narciso era um dos membros do comando central, com Jaime Serra e Francisco Miguel. A ARA foi o braço armado do Partido Comunista Português e esteve em actividade entre 1970 e 1973. O objectivo era lutar contra a guerra colonial, derrubar a ditadura e conquistar a liberdade.

“O objectivo da ARA era acções armadas contra o esforço da guerra colonial, mas com a preocupação de não atingir pessoas, de não matar pessoas. Não fazer terrorismo, nem atingir objectivos civis e, portanto, atacar apenas o aparelho militar, a estrutura militar, mas não os militares porque a ARA não queria matar ninguém”, começa por contar Raimundo Narciso.

A 26 de Outubro de 1970 surgiu um comunicado que reivindicava a primeira acção armada da ARA contra o navio Cunene, em Lisboa, que era usado no transporte de tropas, armamento e mercadorias para a guerra colonial. O navio, o mais moderno cargueiro das linhas de África, foi então alvo de duas explosões.

“Eles aqui tentaram abafar um pouco, mas lá fora houve repercussões”, recorda Maria Machado.

Uma das maiores operações da ARA, e com enorme impacto político, foi a sabotagem na base aérea de Tancos, na madrugada de 8 de Março de 1971. A operação "Águia Real" destruiu ou danificou 28 aeronaves e helicópteros destinados às guerras nos territórios colonizados.

“Foi a acção de Tancos. Fomos lá destruir os helicópteros quase todos que havia na base aérea. Aquilo foi uma coisa portentosa”, exclama Raimundo Narciso, acrescentando que se destruíram mais helicópteros do que o esperado porque estavam todos no mesmo hangar. Maria Machado recorda que a preparação dessa acçao começou na cozinha de casa.

Eram bombas incendiárias que eles depois espalharam pelos helicópteros. Essas bombas fizemos nós lá em casa, com pó de alumínio, nós os dois. Fiquei toda prateada!

Houve ainda, a destruição de parte do Quartel-General da NATO, em Oeiras, o Comiberlant, em Outubro de 1971, nas vésperas da sua inauguração. Era aí que passaria a funcionar um sofisticado centro de comunicações da NATO, algo que a ARA considerava como um acto de provocação e uma prova da colaboração dos países da NATO com a ditadura portuguesa e a guerra colonial. O objectivo da acção era alertar a atenção da comunidade internacional para os problemas políticos portugueses, dada a presença da comunicação social estrangeira na inauguração. Na preparação, o casal levou, inclusivamente, a filha para as imediações do local.

A nossa filha também andou connosco a vigiar. Ela era pequenina, ia no carrinho e a gente andava ali, junto à estrada, a olhar para lá, para ver como é que aquilo andava, que vigilância é que aquilo tinha. Ninguém desconfiava.

A ARA foi, ainda, responsável por várias outras acções que pretendiam fragilizar o regime ditatorial. A 12 de Janeiro de 1972, a organização fez nova operação contra a guerra colonial, tendo como alvo equipamento pronto para embarcar para África no navio Muxima, no Cais de Alcântara, em Lisboa. A 9 de Agosto, no dia de tomada de posse de Américo Tomás, a ARA consegue cortar a energia no país com acções de sabotagem.

Todas as acçoes estão descritas no livro ARA: Acção Revolucionária Armada. A História Secreta do Braço Armado do PCP, que Raimundo Narciso publicou no ano 2000. A obra conta também o tormentoso processo da criação da ARA, a perseguição da PIDE e mostra como “as pessoas que iam para a clandestinidade” não eram “heróis, loucos ou mártires”, apenas “pessoas como as outras”, mas “talvez mais informadas, mais indignadas ou mais trituradas pelo sistema”.

Enquanto preparavam e realizavam as operações, Raimundo Narciso e Maria Machado tiveram de mudar várias vezes de casa. Estavam a viver juntos, na clandestinidade, desde 1968. Em 1972 e 1973, a PIDE procurava intensamente a direcção da ARA e colocou a fotografia dos três membros do Comando Central nos jornais e na televisão, oferecendo um prémio a quem ajudasse a encontrá-los. O casal revolucionário seguia à risca as regras da clandestinidade. Ainda que Maria tenha participado no reconhecimento de várias acções e na preparação técnica de outras, muita coisa ela não sabia. Ainda assim, na cozinha, ela estava aos comandos.

Ele tinha trabalho de organização, reunia com fulano, beltrano, sicrano, mas eu não. Eu estava em casa. Eu só tinha contacto com os camaradas que iam a casa reunir com ele. Reunir para discutir as coisas das acções armadas em que eu não participava também. Eu ajudava, mas, por exemplo, nem essa do Comiberlant eu desconfiei, quando andei lá a verificar as coisas com a minha filha. Eu ajudava [a preparar os engenhos explosivos], mas não tinha que saber quais eram os objectivos. Imagine, sei lá, se fôssemos presos?

Estar grávida na clandestinidade foi outro desafio. O parto da filha acabou por acontecer numa maternidade pública, com muitas peripécias pelo meio e invenções de moradas e dados biográficos. Quanto ao filho, foi das últimas crianças a nascer na clandestinidade no Estado Novo, pouco tempo antes da revolução que derrubou a ditadura, a 25 de Abril de 1974.

Maria Machado “mergulhou” na clandestinidade aos 11 anos. Os pais eram funcionários do PCP e tinham uma tipografia clandestina, onde ela e a irmã imprimiam, por exemplo, o Avante! e O Militante. Os pais e a irmã acabariam por ser presos meses depois de ela ter saído de casa.

Eu escapei quando me juntei com ele [Raimundo Narciso] porque até à altura em que me juntei com ele, eu estava com os meus pais e a minha irmã mais nova na clandestinidade. E eu juntei-me com ele em Março de 68 e os meus pais e a minha irmã mais nova foram presos nesse ano, em Agosto. A casa deles foi assaltada e tinha uma tipografia.

Por sua vez, Raimundo Narciso entrou na clandestinidade em 1964. Deixou o curso e adoptou uma identidade falsa e uma residência secreta para criar o braço armado do PCP. Nessa altura, um amigo ofereceu-lhe uma bússola para ele se orientar e, de facto, durante os dez anos de clandestinidade nunca foi preso.

Ele disse: toma lá esta bússola que é para te orientares na clandestinidade.

Sessenta anos depois, Raimundo Narciso mostra-nos a bússola que o orientou na luta contra a ditadura até à Revoluçao dos Cravos. Um objecto que quer doar ao Museu do Aljube, Resistência e Liberdade para que não se perca o rumo da democracia e porque “não há futuro sem memória”.

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