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Antigo membro da LUAR conta a fuga de Palma Inácio da prisão no Porto

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Fernando Pereira Marques ajudou o histórico líder da LUAR, Hermínio da Palma Inácio, a fugir da prisão da PIDE no Porto, em Maio de 1969, graças a umas serras que lhes chegaram dentro de uma agenda almofadada e que depois esconderam em latas de leite em pó, mas também em pão e pantufas. Nos 50 anos do 25 de Abril, o autor de “Uma Nova Concepção de Luta” conta-nos a história dessa evasão e recorda momentos-chave desta organização de luta armada contra a ditadura portuguesa.

Fernando Pereira Marques. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024.
Fernando Pereira Marques. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos Fernando Pereira Marques, antigo membro da LUAR, Liga de União e de Acção Revolucionária, e autor, nomeadamente, de “Uma Nova Concepção de Luta”.

“Era preciso serrar mais uma grade. E mesmo assim, ainda hoje me interrogo como é que ele conseguiu sair? Porque foi por um buraco minúsculo, não é?”, começa por contar Fernando Pereira Marques que ajudou Hermínio da Palma Inácio, líder histórico da LUAR, a fugir da cadeia da PIDE do Porto, em 1969. À luz dos dias de hoje, serrar grades de prisão parece algo fílmico, mas aconteceu. 

Esta história foi mais uma tremenda derrota para a PIDE e a segunda vez que Hermínio da Palma Inácio fugia de uma prisão. Algum tempo depois, ele seria descrito como “o homem mais procurado da Europa” pelo jornal Sunday Times. Palma Inácio é um símbolo da luta antifascista e fundador da LUAR, em 1967. Vinte anos antes, tinha sabotado aviões militares na tentativa do Golpe dos Generais e, em 1961, desviou um avião da TAP para lançar sobre Lisboa e outras cidades panfletos contra o regime ditatorial. A bordo do aparelho estava também Camilo Mortágua que participara no assalto ao paquete Santa Maria, no mesmo ano, e que viria a acompanhar Palma Inácio na primeira acção da LUAR: o assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, em 1967.

A LUAR foi uma das organizações de luta armada contra a ditadura portuguesa e algumas das suas acções fizeram tremer o regime. Foi também o caso da própria fuga de Palma Inácio da prisão, depois da tentativa frustrada, em Agosto de 1968, da tomada da cidade da Covilhã.

A detenção aconteceu por acaso e a polícia estava a léguas de imaginar que ia capturar Palma Inácio. O objectivo da acção era, mais uma vez, expor as fragilidades do regime, distribuir propaganda, ocupar a rádio local, neutralizar os postos da GNR e da PSP, levando as armas, e recuperar fundos nas agências bancárias. Mas os planos não correram como previsto e vários operacionais foram presos.

Na prisão, Palma Inácio pede à irmã para lhe fazer chegar uma dúzia de serras, recorrendo à ajuda de um membro da LUAR, Ernesto Castelo Branco, que afinal era informador da PIDE. Apesar de a polícia estar a par, as lâminas acabam por entrar na prisão de Caxias, na capa almofadada de uma agenda. Em Caxias, as grades eram muito grossas, mas na prisão da PIDE no Porto, a história era outra... e a ajudá-lo a serrar as grades da cadeia estava Fernando Pereira Marques que nos contou essa fuga.

As serras acabaram por lhes chegar às mãos, ainda que a PIDE estivesse a par, algo que deixa Fernando Pereira Marques ainda estupefacto pela “total incompetência” da polícia política. Primeiro, a agenda foi entregue na prisão de Caxias e depois de a recuperar e retirar as serras escondidas, a dupla arranjou formas de as dissimularem: um lote em latas de leite em pó, outro lote dentro de pães. Depois, aquando da transferência para a prisão da PIDE no Porto, levaram as serras numas “pantufas artesanais que o Palma tinha” e também nas latas de leite em pó.

Quando foram transferidos para a cadeia da PIDE no Porto para serem julgados, ficaram os dois numa cela com um motorista que tinha simplesmente prestado serviços sem estar directamente implicado na LUAR. Fernando e Palma Inácio perceberam que a fuga era possível e fizeram o necessário. A evasão deu-se em Maio de 1969. [Oiça o podcast em que Fernando Pereira Marques conta alguns detalhes da preparação da fuga.] Foi precisa toda uma estratégia quase cinematográfica para ir serrando as grades diariamente, depois de retirarem os parafusos de uma janela de bandeira com um utensílio que servia para carregar o tabaco do cachimbo de Palma Inácio.

Disfarçávamos o corte com uma mistura de miolo de pão e cinza. Houve até uma noite em que o Palma tentou, mas chegámos à conclusão que não era suficiente, que era preciso serrar mais uma grade. E mesmo assim, ainda hoje me interrogo como é que ele conseguiu sair porque era por um buraco minúsculo, não é?

Fernando Pereira Marques era menor de idade – na lei da altura – e teria provavelmente uma pena menor. Por isso, optou por não fugir para voltar a dissimular tudo dentro da cela e para garantir o sucesso da fuga do líder da LUAR.

Como já estava preso quase há um ano, não valia a pena eu estar a arriscar levar uma carga de metralhadora ou, ainda mais grave, pôr em causa o êxito da fuga do Palma. Por outro lado, era preciso que ficasse alguém dentro quando o Palma saiu (...) Depois, a minha missão era ganhar o mais tempo possível. É que não havia apoio exterior, não tínhamos carro à espera. Ele ficou entregue a ele próprio (...) Então, eu pus a bandeira no sítio para que, quando eles olhassem pelo judas, vissem um vulto. Pus um caixote de lixo que nós lá tínhamos dentro da cama, a fingir que era o vulto dele deitado e deitei-me.

Só horas depois é que os guardas se aperceberam da fuga, mas já o dirigente da LUAR estava longe. Depois da evasão, Fernando Pereira Marques acabou por ser condenado por “actividades contra a segurança do Estado” a uma pena de dois anos e meio de prisão e ainda cumpriu mais seis meses das chamadas “medidas de segurança”. Esteve na cadeia do forte de Peniche, de onde saiu em Agosto de 1971.

Em 1973, Fernando Pereira Marques voltou para o exílio em França e dirigiu o jornal da Luar, Fronteira, que falava sobre a situação no país e as guerras de libertação (e onde também trabalharam outros operacionais da LUAR como Joaquim Alberto e Rafael Galego).

Algum do tempo em que tinha estado em Portugal, depois da cadeia, serviu-lhe para constatar, mais uma vez, que a segurança não era muito eficaz. E outra das grandes acções previstas por Palma Inácio era o sequestro de uma alta personalidade do regime que seria trocada por presos políticos. A execução do projecto ficou comprometida com a nova detenção, em Portugal, de Palma Inácio, em Novembro de 1973.

O dirigente histórico da LUAR apostava em grandes acções que pudessem ter impacto a nível nacional e internacional e que tivessem uma leitura política imediata. Por isso, Palma Inácio era irredutível na determinação em não fazer vítimas.

Havia essa preocupação de que nunca se entrasse naquilo que pudesse ser considerado terrorismo, ou seja, a violência gratuita e, sobretudo, que não provocasse vítimas. Ainda por cima vítimas inocentes. E isso sempre foi uma grande discussão também no interior da própria LUAR, porque o Palma Inácio - que era a figura de referência, era e continua a ser - a concepção dele era de criar grandes acções com grande impacto e com uma leitura política imediata.

Numa altura em que decorriam as guerras de libertação em três colónias portuguesas, o objectivo da LUAR foi criar uma quarta frente para debilitar o esforço de guerra e o regime em Portugal. Por outro lado, a LUAR tinha “uma nova concepção de luta”, como resume o título de uma das obras de Fernando Pereira Marques.

A partir de 1961, tinha começado a guerra colonial. Quando a LUAR surgiu, de facto, com a primeira operação do assalto ao banco de Portugal na Figueira da Foz, já havia três frentes e o nosso objectivo estratégico era o de criar uma quarta frente que viesse debilitar o esforço de guerra e o regime em Portugal.

A LUAR resistiu até à Revolução e a revolução acabaria por ser feita pelos militares a 25 de Abril de 1974. Vários membros da organização saíram, depois, das cadeias, incluindo Palma Inácio, descrito como o “último grande herói romântico” pela escritora Natália Correia. Morreu em 2009, com 87 anos, e a pensão que recebia pelos serviços prestados à democracia não era suficiente para pagar o lar onde acabou os seus dias.

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