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“Misantropo”: Um clássico de alma contemporânea

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Nos 400 anos do nascimento de Molière, quisemos perceber porque é que o dramaturgo francês continua a inspirar os criadores contemporâneos.  Fomos conversar com o encenador Nuno Carinhas que estreou, este ano, “O Misantropo” do contemporâneo Martin Crimp, inspirado no clássico de Molière. Nuno Carinhas preferiu a versão de Crimp e aí viu a “transposição para o nosso tempo” e a“dilaceração muito bem-disposta” no mundo das artes do espectáculo.

"O Misantropo" de Martin Crimp, encenado por Nuno Carinhas. Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada, Maio de 2022.
"O Misantropo" de Martin Crimp, encenado por Nuno Carinhas. Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada, Maio de 2022. © Companhia de Teatro de Almada
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Os 400 anos do nascimento de Molière continuam a levar-nos até às releituras em língua portuguesa do dramaturgo francês. Em Lisboa, fomos conversar com Nuno Carinhas, encenador, cenógrafo e figurinista, que foi também Director Artístico do Teatro Nacional São João entre 2009 e 2018. Este ano, Nuno Carinhas levou a palco “O Misantropo” de Martin Crimp, a partir de Molière, para a Companhia de Teatro de Almada. O espectáculo estreou no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, a 28 de Abril.

“O Misantropo” é um dos textos mais duros de Molière. Apresentada em Junho de 1666, a peça é uma sátira de costumes à arrogância das classes dominantes do seu tempo, mas é também uma história de amor e de ciúme. Alceste odeia a humanidade e até defende a sua extinção, como única forma de acabar com a hipocrisia e o tráfico de influências. Porém, ele ama Celimene que orbita no centro dessa mesma sociedade que ele tanto abomina.

Nuno Carinhas foi buscar a versão contemporânea de “O Misantropo” escrita pelo dramaturgo britânico Martin Crimp, em 1996, e que é uma réplica à sociedade de hoje, nomeadamente no mundo do espectáculo, marcada por uma generalizada decadência dos valores humanos e por um crescente individualismo. Anos depois de ter levado a palco “O Resto Já Devem Conhecer do Cinema”, o encenador português voltou ao universo das apropriações de Crimp porque quis continuar “a explorar esse lado reinterpretativo ou interpretativo-criativo do Martin Crimp”.

Eu aproximei-me de O Misantropo precisamente por ser o Martin Crimp. Eu nunca fiz Molière nem tinha pensado fazer, mas O Misantropo é, com o Dom João, provavelmente as peças que eu prefiro do Molière. Quando vi que existia este Misantropo - que já não é novo, já é dos anos 90 - decidi fazê-lo por ser uma transposição para o nosso tempo absolutamente extraordinária, uma dilaceração muito bem-disposta sobre a convivialidade das pessoas do espectáculo e das artes do espectáculo, do cinema, da comunicação social, à mistura com agentes profissionais, com professores de representação, etc. Havia ali toda uma escola do teatro na versão do Crimp que me interessava”, explica Nuno Carinhas.

Muda-se o cenário e muda-se o tempo, “o tempo é hoje, o lugar Londres”. Muda-se também o nome das personagens, menos o de Alceste, mas a história continua a mostrar um homem que está mal com o mundo inteiro e ama uma mulher que adora ser adorada por esse mundo que ele detesta.

É simultaneamente uma crítica a esta micro-sociedade do espectáculo, mas é obviamente também uma maravilhosa história de amor que, como sempre, teria que acabar mal, sobretudo na versão de Martin Crimp porque ele para ser coerente não se poderia, de maneira nenhuma, aproximar de uma jovem que está no pico do seu sucesso juvenil, que tem 21 anos, é americana, está em Londres de passagem também pelo seu sucesso no cinema. Portanto, para ele se poder aproximar dessa jovem, tem que abrir mão da sua misantropia, tem que abrir portas à sociedade e isso ele não quer por coerência própria”, descreve o encenador.

A crítica fundamental à sociedade é feita tanto por Alceste, o misantropo, quanto por Jennifer, a nova Celimene, que também reconhece a frivolidade geral da sociedade do espectáculo, mas usa-a de forma pragmática. “Alguém disse que o Martin Crimp tinha criado uma Alceste ao fazer a Jennifer. O misantropo tem razão quando diz que ambos são rápidos de espírito e têm uma visão crítica sobre os outros. Só que ela ainda não está farta, digamos assim, tão farta e tão batida na vida como o Alceste. Ela tem outros recursos para sobreviver e continuar a viver nessa relação hipócrita com os outros, mais ou menos festiva, sem grandes compromissos”, continua Nuno Carinhas.

Alceste ainda tenta, em vão, convencer Jennifer a fugir desse mundo e a instalarem-se algures no campo. “Um dos grandes problemas dos profissionais do espectáculo quando são misantrópicos – e somos muitas vezes misantrópicos, estou a falar de mim e de todos em geral – há momentos em que o que as pessoas do cinema, do teatro e da televisão querem é estar sozinhas, isolarem-se, viverem fora dos estúdios, dos teatros e fora dos outros. Temos momentos de reclusão quase fisicamente impostos e isso nem sempre é possível”, acrescenta.

O encenador também assinou a cenografia e os figurinos, com Ana Vaz. Para recriar a suite de um hotel de luxo, onde se aloja a diva em ascensão, ele fez “uma caixa preta, um lugar mais ou menos sinistro entre a caixa de bombons e um sarcófago chique”, com “uma grande parede ‘capitonée’ no fundo, o chão de carpélio preto” e “chaises longues de veludo preto”. No final, havia um “baile de máscaras” com “trajes do século XVIII” e um lustre a fechar a composição.

Nuno Carinhas usou a tradução de Daniel Jonas, de 2021, do texto de 1996 de Martin Crimp, o qual trabalhou o texto de Molière de 1666. Para o encenador, “todos os textos que resistem ao tempo são intemporais” e apesar de se viver numa época que “faz uma espécie de terra de ninguém do que é a herança cultural”, ainda há peças que resistem e se o fazem “é porque há alguma coisa de absolutamente indispensável e universal”. A contracorrente da aparente marcha contemporânea em direcção a “um deserto linguístico”, surgem dramaturgos que traduzem versos antigos, como Daniel Jonas que “tem um arrojo e uma maneira de compor entre o arcaico e o quotidiano nosso, o contemporâneo, de uma forma muito expressiva e livre”.

Quatro séculos depois, Molière continua a inspirar criadores. Para Nuno Carinhas, talvez seja porque “ele trata de uma forma risível os seus argumentos, mas toca em coisas que hoje em dia as pessoas continuam a assumir”. Além disso, “é um criador fascinante e fascinante sobretudo relacionando a sua obra com a época em que viveu”.

É muito interessante nós pensarmos também que a época que o criou e que o deixou fazer foi a mesma época que depois o criticou e que o censurou. Isso é muito interessante para nós percebermos a natureza da criatura. Ele não se deixou ficar por ser um simples mestre de cerimónias de Luís XIV, à beira da corte, a fazer pequenas comédias só por divertimento. Não. É óbvio que ele tirou partido dessas situações.

Ele, enquanto pessoa, é um personagem trágico também por natureza e eu creio que ele acabou mesmo misantropicamente, mas é um período fascinante da história do teatro. Se falamos de Shakespeare, falamos de Molière. Se falamos de Molière, falamos de Gil Vicente… Enfim, em todos os países há épocas que proporcionam o aparecimento e a resolução de determinados génios da escrita e do teatro que aparecem alimentados também por essa sociedade e por essa maneira de viver”, conclui Nuno Carinhas.

Para ouvir a conversa integral com o encenador Nuno Carinhas no podcast desta emissão.

17:02

Convidado Encenador Nuno Carinhas

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