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Black Lights: "Ser mulher é um combate"

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"Black Lights", da coreógrafa francesa Mathilde Monnier, é um espectáculo-manifesto sobre a violência contra as mulheres. Dos silêncios que gritam, à música que exorciza silêncios, os corpos de oito intérpretes desarticulam-se, caem e libertam-se pela palavra e pela dança. Em palco, elas são vítimas e guerreiras, junto a troncos calcinados de onde sai fumo. A peça esteve em Paris e a RFI falou com a bailarina moçambicana Mai-Júli Machado para quem "ser mulher é um combate".

Peça "Black Lights" de Mathilde Monnier.
Peça "Black Lights" de Mathilde Monnier. © Marc Coudrais/Mathilde Monnier
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A peça "Black Lights", da coreógrafa francesa Mathilde Monnier, é um espectáculo-manifesto contra a violência sobre as mulheres: do assédio quotidiano à violação e ao femicídio. A peça esteve no Festival de Avignon este ano e passou por Paris, no Théâtre de la Cité Internationale de 29 de Novembro a 2 de Dezembro.

A obra inspira-se nos textos de autoras de diferentes nacionalidades e gerações que foram escritos para a série H24, produzida pelo canal franco-alemão ARTE. Dos silêncios que gritam à música techno que exorciza silêncios, os corpos das oito intérpretes deixam ler o impacto mental e físico que vivem constantemente as mulheres, as meninas, as adolescentes...

Em palco só estão elas, vítimas e guerreiras, com botins de  salto ou descalças, no meio de troncos gigantes calcinados de onde sai fumo. Os corpos desarticulados e quebrados libertam-se pela música, pelas vozes e pela dança. Entre elas, estão a moçambicana Mai-Júli Machado e as portuguesas Isabel Abreu e Carolina Passos Sousa. A RFI falou com a bailarina Mai-Júli Machado para quem "ser mulher é um combate".

17:21

Entrevista a Mai-Júli Machado

RFI: Como é que nos pode descrever esta peça?

Mai-Júli Machado, bailarina: É uma peça muito forte, é uma peça que fala sobre mulheres. Para mim, além de ser uma peça que eu admiro bastante pelo elenco, pelo tema que a Mathilde [Monnier] decidiu colocar na mesa, mas também por cada mulher que interpreta. É muito forte também porque é um grupo de mulheres que não se conhecia e que se juntou para a mesma causa, então é uma peça que eu realmente gosto. E acho bastante interessante estar a fazer a peça.

Há diferentes coreografias em palco nos diferentes momentos dos relatos contados. Algumas remetem para a gestualidade da violência, outras para gestos mecânicos de bonecas, corpos quebrados, desarticulados. O que é que significam estes gestos e estas coreografias?

Tem realmente partes muito diferentes na peça. A parte das bonecas é aquele lugar da perfeição que nós procuramos quebrar. Aquele lugar que é que para a mulher trabalhar num escritório, tem que estar sempre perfeita, de saltos. Tem também a parte da dança que chamamos dança da lavagem, que é uma dança muito sensual, mas não só, que nós fomos desenvolvendo e achamos interessante também. E tem a parte dos textos fortes, de muita fisicalidade. A peça realmente tem vários blocos interessantes que nós fomos procurando e deu esse resultado mágico que eu acho que foi o resultado muito bom da peça.

Tem momentos em que as oito intérpretes em palco têm as pernas abertas em posição de violência, de opressão. Também o quiseram mostrar…

Sim, quisemos mostrar isso. No início era meio difícil e a Mathilde disse que era mesmo para quebrar aquilo que é o padrão. Temos as pernas abertas, mas o nosso estar é muito forte, é muito presente. Nós encaramos as pessoas, então assumimos também este lugar da não perfeição, de um corpo que é não perfeito aos olhos do mundo.

Vocês não são só vítimas, são também guerreiras. A Mai-Júli é um corpo em ebulição em palco, interpreta um dos textos mais duros e fala até na situação de Moçambique, algo que não está no texto original criado para a série televisiva H24. Porquê esta contribuição pessoal? Porquê falar de Moçambique?

Porque para mim foi um bocadinho difícil no início porque eu não falo francês, eu falo português, e deram-me um texto em francês e estava-se bem. Mas, na verdade, até pode parecer engraçado, eu não conseguia dizer o nome original no texto porque era muito complicado. Então, ela disse no ensaio: “Põe Moçambique, põe Moçambique” e eu coloquei Moçambique assim mesmo e ajudou-me bastante porque é um texto também forte.

No início, eu não percebia muito bem o texto e preferi não perceber porque no início era muito complicado. Eu vi as minhas colegas a chorarem porque os textos são muito fortes, muito fortes mesmo. Eu disse: “Não, eu não quero saber o que é que o meu texto fala, eu prefiro interpretar”. Então, só depois de começar a perceber algumas palavras em francês foi quando eu já fui procurando entender mais. Então, é incrível porque acontece também em Moçambique, é uma coisa que não é só em França. É uma coisa que acontece também em Moçambique, então é interessante para mim e foi interessante falar sobre Moçambique e sempre, quando saio do palco, as pessoas perguntam: “De onde é que és?”. Eu digo: “Sou de Moçambique”.

Nesse texto, quando o diz, também o acompanha de uma gestualidade muito forte, muito mecânica. Há quase como uma luta e uma libertação ao mesmo tempo, você mete a mão à frente da boca, à frente dos seios, depois tira essa mesma mão do agressor da boca. Como é que foi essa criação?

É interessante a forma como a Mathilde distribuiu os textos e é interessante como cada texto é super para cada mulher ali. Para mim foi assim - ela disse: “Eu gostava que tu fizesses esse texto com muita força, muita”, porque ela sabe que eu danço, eu não faço teatro, é a minha primeira experiência com texto, com esse lugar do teatro. E para mim foi muito difícil no início, não só guardar um texto na cabeça, achei complicado, um texto em francês, a dançar e a correr. Então é interessante também porque dá-me muita liberdade porque o texto é muito forte, mas ela deu-me a liberdade de deixar o texto mais leve e estar a brincar, estar a falar com movimentos fortes, mas ao mesmo tempo estar à vontade para falar aquilo que eu quero falar. Então é super interessante.

A outra liberdade é o facto de a peça ter intérpretes de diferentes nacionalidades, como as escritoras que contribuíram para o livro H24 e a série. Depois vocês também, a dada altura, formam uma espécie de coro de piropos selvagens em várias línguas, incluindo em português e a Mai-Júli também diz alguns muito violentos. Porque é que escolheu justamente dizê-los em português?

Realmente o elenco é uma mistura: tem intérpretes de Moçambique, da Argentina, de Portugal, da França. A Mathilde deu-nos a liberdade de ter um momento na peça em que nós vamos lançando provocações, aquilo que eu particularmente passo em Moçambique, dia a dia, que é estar na rua e as pessoas a chamarem nomes. Ali também é um lugar de libertação, também é este lugar de pôr a consciência naquilo que acontece. Eu, em Moçambique, era normal andar na rua e as pessoas a me chamarem nomes. Era normal, mas quando entrei neste processo, eu fui percebendo que não, aquilo não é normal, é um assédio. Por isso é que ela disse que como na plateia também tem gente de todo o mundo, seria interessante cada uma a falar aquilo que ouve realmente no seu país. Por isso é que nós vamos lançando essas palavras em português, outras na língua que puder. Então essa peça realmente é muito libertadora. Por isso eu realmente gosto muito dela porque é única mesmo.

É interessante a Mai-Júli admitir que para si esse tipo de momentos na rua, o assédio, era quase uma normalidade. A peça mostra que é algo constante. É uma peça que revela a violência sexista mais básica, mas também a violação e os feminicídios. Qual a importância, para si, de ser também, de certa forma, a voz deste movimento contra a violência feita às mulheres?

Para mim é uma oportunidade única porque nunca tive esta oportunidade, nunca pensei sequer neste lugar. Os textos são histórias reais, é o mais incrível, e são muito fortes. Ter-me juntado a oito mulheres, nove com a Mathilde, e podermos ter liberdade de falar sobre este tema, de gritar… Em Avignon, por exemplo, as pessoas choravam mesmo, diziam obrigada. E aí, tu sentes realmente a importância ou a necessidade de falar mais sobre esses assuntos e, em alguns momentos, também tinha homens no meio da peça que abandonavam o teatro e era super interessante ver como é.

Para mim é uma grande responsabilidade e é uma honra mesmo estar a carregar este tema. Estar a falar disso, estar a aprender, porque a minha realidade é totalmente diferente do que acontece aqui. Então é importante para mim também ver e poder levar este aprendizado para Moçambique também, para as meninas jovens de Moçambique. Isto que está a acontecer, não podemos deixar, isto não é normal, não podemos deixar. Para mim, para além de ser uma responsabilidade estar a falar sobre isso, também é um grande aprendizado que vou levar para a vida e para o meu país.

Uma das frases-chave do espectáculo é “Este é o meu corpo”. Em Moçambique há realidades também muito violentas, como é o caso da excisão das meninas. A Mai-Júli está implicada também nesta luta...

Sim, sim, com certeza estou. “Este é meu corpo” realmente é a declaração de que este é o meu corpo e eu não quero que tu o toques. Eu não quero. Quem decide o que deve ser feito ou não sou eu. Claro, sim, eu sinto que estou dentro deste lugar das mulheres que defendem os seus direitos e gritam que este é o meu corpo e ninguém pode tocar, não só na violência do homem para mulher, mas também na violência da mulher para a mulher. Eu tenho uma peça em que falo sobre a mutilação genital feminina. A mutilação genital feminina é feita de mulher para mulher, então é uma coisa interessante que não é só do homem para a mulher, mas também da mulher para a mulher, da mãe para a filha, da avó para a filha.

Mas todo o edifício que sustenta essa violência da mulher contra a mulher é o próprio patriarcado...

Exactamente. Eu fui percebendo também neste tema que esta prática, a mutilação genital feminina é feita de mulher para mulher mas para defender fundamentos machistas, que é para a mulher não trair o marido e ela deve ser submetida a essa prática.

Mais uma vez, a Mathilde Monnier vai beber aos textos para criar um espectáculo de dança. A Mai-Júli admitiu que não é uma mulher dos textos ou do teatro, que é da dança. Este espectáculo foi atirar-se para um território desconhecido ou, pelo contrário, finalmente apercebeu-se que é tudo palco?

Realmente eu fui descobrindo que realmente é tudo palco porque ali dentro, se fores a perceber a Isabel [Abreu] não dança, não dançava… Agora dança, então é incrível. É incrível como cada mulher ali é única e eu também nunca falei textos, mas estou ali e é normal. O espectáculo quando começa e a Isabel entra é como se eu viajasse no mundo dela, cada mulher ali, cada história me toca a mim dentro também. E os movimentos, por exemplo, a parte das botas, para mim era um desafio. Eu não tenho muita elasticidade, eu faço danças tradicionais de Moçambique, mas eu disse: ‘”Não, eu vou assumir este lugar" e está-se bem. E é incrível. Eu acho que agora vou começar a me desafiar também no mundo de teatro, porque não?

As bailarinas e as actrizes fazem tudo, menos uma. Há uma que não fala, só dança. Porquê?

Sim, ela até já ganhou o nome de “la femme qui tombe”, é a mulher que cai. Porquê? Porque ela interpreta um texto também, mas a Mathilde preferiu que não fosse falado, que fosse assim mesmo do corpo. Mas é um texto que há lá. É interessante também porque quando estávamos a fazer a criação, percebemos que era muito texto, parecia muito texto, não é? Então, achámos que seria interessante uma mulher que não falasse, que só fizesse o texto mas não falado, em movimento. É por isso. Acho que foi uma boa ideia, gosto da ideia do texto corporal.

Um grito pode também ser de silêncio.

Exactamente.

Em palco, só estão vocês e alguns elementos: uns troncos de oliveiras calcinados e a deitarem fumo. O que é que significam?

Dizem que as mulheres que sofrem um trauma, elas têm um lugar na mente, por isso é que o nome da peça é “Black Lights” que é um lugar da mente que apaga, que é o lugar do trauma que as mulheres sofrem, que fica preto, fica apagado como uma chama que vai soltando.

Mas das cinzas também se pode renascer, não é? Também tem esse duplo significado…

Sim, sim. A peça é toda tensa e , no fim, tem um lugar que nós assumimos que somos bruxas e estamos ali. Sim, das cinzas pode-se renascer.

Aquele final é uma revolução dançada?

Sim. Com certeza, com certeza.

A peça esteve no Festival de Avignon este ano e denunciou a violência de que são vítimas as mulheres, tal como o fez a peça por exemplo, “A Noiva e o Boa Noite Cinderela” de Carolina Bianchi que também esteve em Avignon. Em 2023, ainda é urgente continuar a falar disto, a levar isto a palco. Como é que é possível?

Sim, é urgente. Nós estamos aqui mesmo para fazer isso. Estamos comprometidas para continuar a falar, continuar a expressar aquilo que são os nossos ideais, aquilo que nós pensamos sobre este tema e vamos continuar em 2023, 2024, 2025 e até quando der, porque é um assunto urgente e que não pode ser ignorado e que vivemos dia após dia.

Aliás, há uma frase dita pela Carolina Passos Sousa, que dança e imita os movimentos do boxe. Ser mulher em 2023 ainda é um desporto de combate?

É, é. Eu acho que sim, principalmente no país em que eu vivo. Falo mais das experiências que eu tenho que é lá porque aqui eu só venho para trabalhar. É um combate sim. É um combate pela liberdade, para fazer arte, para poder ser mãe, para poder ser mulher e também fazer arte, então é um combate. É sim.

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