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2023: o ano de todos os "mal-estares" em França

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A França foi abalada em 2023 por várias crises sociais, em que sociedade civil e Governo se viram frente a frente, levando a um mal-estar generalizado tanto na âmbito da reforma do sistema de pensões, como nos motins dos jovens devido à violência policial e ainda em relação à nova lei da imigração.

Algumas das manifestações contra a reforma do sistema de pensões juntaram mais de um milhão de pessoas e, durante vários dias, paralisaram o país.
Algumas das manifestações contra a reforma do sistema de pensões juntaram mais de um milhão de pessoas e, durante vários dias, paralisaram o país. AP - Lewis Joly
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Em 2023, a França voltou a viver um ano de grande agitação social. A 10 de Janeiro, o Governo apresentou a há muito prometida pelo Presidente Emmanuel Macron reforma do sistema de pensões que visava suprimir vários regimes especiais que vigoravam há décadas para certas profissões, fazer uma nova contagem dos descontos para a reforma e ainda aumentar a idade da reforma de 62 para 64 anos. 

Logo a partir do início de Janeiro, os sindicatos começaram a mobilizar os trabalhadores promovendo um período de greve intermitente que se prolongou durante cerca de dois meses. Desde logo, a mobilização mostrou-se inédita já que juntou as principais centrais sindicais francesas, algo que não acontecia há mais de uma década, e bate recordes nas ruas de Paris e de todas as cidades francesas. A jornada de greve do dia 7 de Março foi mesmo considerada histórica por ter conseguido juntar nas ruas 1,28 milhões de manifestantes segundo a polícia, e 3,5 milhões segundo a central sindical CGT. 

Uma das consequências das greves contra a reforma do sistema de pensões foi a acumulação de lixo nas ruas.
Uma das consequências das greves contra a reforma do sistema de pensões foi a acumulação de lixo nas ruas. AP - Thomas Padilla

Enquanto aas ruas os franceses pediam o fim desta reforma, nos corredores do poder e especificamente no Palácio do Eliseu, a maioria relativa do Presidente tentava encontrar apoios à esquerda e à direita para aprovar esta lei impopular. Tendo maioria relativa na Assembleia Nacional e precisando de uma maioria absoluta, os membros do Governo tentavam freneticamente recolher apoios, causando mesmo clivagens especialmente à direita, no partido Os Republicanos, onde muitos não viam com bons olhos um apoio ao Presidente Emmanuel Macron e à primeira-ministra Elisabeth Borne. 

Com o diálogo quebrado com os sindicatos, mas também sem confiança para uma maioria sólida no Parlamento, a primeira-ministra acabou por anunciar no dia 17 de Março, na Assembleia Nacional, o recurso ao artigo 49.3 da Constituição, que permite que o Governo aprove em força reformas consideradas essenciais para a continuação da governação. 

Nas ruas, ficou o dissabor de um protesto que não adiantou e que se juntou a um sentimento de mal-estar e menosprezo que já se faz sentir na sociedade francesa pelo menos desde o início do mandato de Emmanuel Macron, como explicou Diogo Sardinha, filósofo, em entrevista à RFI. 

"O que fica desta reforma é uma espécie de dissabor, um mal-estar, de uma luta social e política que não deu os resultados esperados. É um dos elementos que contribui para a decepção em relação à política governamental e para um mal-estar de uma camada da população que até agora era relativamente protegida e que beneficiava do Estado social", declarou Diogo Sardinha.

A constestada reforma do sistema de pensões acabou por ser aprovada e entrou em vigor em Setembro de 2023.
A constestada reforma do sistema de pensões acabou por ser aprovada e entrou em vigor em Setembro de 2023. AP - Jean-Francois Badias

A lei da reforma do sistema de pensões em França foi promulgada no dia 14 de Abril e entrou em vigor no início de Setembro.

Motins e destruição após violência policial

Alguns meses depois, um episódio violento volta a agitar a França. Um jovem, Nahel Merzouk, de 17 anos, é morto pela polícia numa operação stop em Nanterre, nos arredores de Paris. A primeira versão da polícia dá conta de uma fuga ou tentativa de atropelamento dos agentes que conduziam esta operação, mas um vídeo que começou a ser difundido nas redes sociais, gravado por um outro condutor, conta uma história diferente. Nahel, que era menor e não tinha carta, tentou fugir após ser parado pela polícia, mas recebeu quase instantaneamente uma bala no peito, que o feriu mortalmente. 

Este foi um episódio de violência policial que veio adensar um passivo das forças de ordem e segurança francesas que não para de crescer desde as manifestações dos coletes amarelos entre 2018 e 2019, passando pelas manifestações da reforma do sistema de pensões e pelo qual a França já foi condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e criticada pelas Nações Unidas e pelo Conselho da Europa. 

A violência policial em França tem sido muito contestada nos últimos anos não só pela sociedade civil francesa, mas também por instâncias e organizações internacionais.
A violência policial em França tem sido muito contestada nos últimos anos não só pela sociedade civil francesa, mas também por instâncias e organizações internacionais. AP - Michel Spingler

A morte de Nahel, também por se tratar de um menor, veio inflamar a situação face à polícia e deu origem a uma vaga de violência e de motins que durou desde a noite do dia da morte do jovem, 27 de Junho, até dia 5 de Julho, levando à instauração de recolheres obrigatórios em muitos subúrbios das grandes cidades. Várias câmaras municipais foram incendiadas, assim como equipamentos públicos, eleitos locais foram agredidos e muitas lojas foram pilhadas em Paris e noutras cidades francesas. 

Foram destacados para travar os motins cerca de 45 mil polícias, um número recorde e terão sido detidos mais de 1.000 participantes nestes eventos violentos.  

A mãe de Nahel liderou o movimento de contestação pela morte deste jovem de Nanterre.
A mãe de Nahel liderou o movimento de contestação pela morte deste jovem de Nanterre. AP - Michel Euler

Estes motins mostram as dificuldades de inserção de muitos jovens franceses, abandonados pelo sistema de educação e frustrados por não conseguirem um trabalho que lhes permita ascender socialmente, como explicou Diogo Sardinha. 

"Há manifestações mais virulentas que tornam patente o ma-estar de uma certa camada da juventude, deixada, como se costuma dizer, ao 'Deus dará' e que é muito jovem e está afastada das instituições republicanas, seja a escolas ou a educação no sentido lato. São pessoas que estão excluídas do próprio sistema. O sistema educativo em França é um sistema que é, por natureza, elitista, mas que tem, nos últimos anos, acentuado essa separação entre os filhos das famílias que podem dar um certo acompanhamento e as famílias que não têm isso e não podem dar isso aos filhos", indicou o filósofo, condenado este fosso.

Uma lei de imigração que é "uma vitória" para a extrema-direita

Já o fim do ano ficou marcado pela lei da imigração, que teve uma grande reviravolta nos últimos dias. Esta é uma lei que o Governo queria implementar rapidamente e um projecto assumido quando as eleições legislativas de 2022. Seria uma lei que serviria principalmente para regularizar o trabalho não declarado nos sectores que precisam de mais trabalhadores em França como a restauração ou o sector da construção civil, onde muitos estrangeiros trabalham, mas sem serem declarados ao Estado e sem direitos sociais. Outro ponto fulcral era também acelerar a expulsão de quem se encontra em França em situação irregular e que tivesse cometido crimes.

No entanto, devido à instrumentalização deste tema no debate político, especialmente pela direita e extrema-direita, esta foi uma lei que ganhou contornos mais abrangentes que passaram também a tocar nas prestações sociais dadas aos estrangeiros ou os cuidados de saúde para quem não está legalizado. A Assembleia Nacional aprovou uma moção de rejeição a 11 de Dezembro desta lei, mostrando novamente a fragilidade da maioria relativa no poder, com uma forte oposição da extrema-esquerda, mas também da direita e extrema-direita que queriam que a lei fosse mais longe nas restrições aos estrangeiros.

O Governo acabou por encaminhar a lei para uma comissão paritária mista entre Senado e Parlamento, onde a direita fez valer as suas exigências, nomeadamente a retirada de nacionalidade aos binacionais que cometam homicídios voluntários, passando também a ser impossível pedir nacionalidade caso se tenha cometido qualquer crime em França, a imposição de uma caução de milhares de euros para os estudantes estrangeiros que venham estudar para França ou um período de espera de dois anos e meio para benefícios sociais para os trabalhadores estrangeiros.

Esta lei acabou assim por ser aprovada e Marine Le Pen, líder da extrema-direita, regozijou-se com o endurecimento das regras para os estrangeiros.

Marine Le Pen disse que a nova lei da imigração foi uma vitória para o seu partido.
Marine Le Pen disse que a nova lei da imigração foi uma vitória para o seu partido. © AP - Michel Euler

Apanhados de surpresa pela narrativa da extrema-direita que esta lei do Governo serve os interesses dos apoiantes de Le Pen, o Governo vive um momento desconfortável num altura em que se preparam eleições europeias em 2024 e também se projectam já candidatos para as eleições presidenciais de 2027, às quais Emmanuel Macron não pode concorrer por já ter feito dois mandatos consecutivos.

Para Diogo Sardinha, a imigração é mais um sintoma do mal-estar dos franceses e que se pode traduzir na vitória de partidos que têm a presença de estrangeiros em França como principal tema de campanha nas próximas eleições.

"De há vários anos a esta parte, existe uma demande social cada vez mais forte, com ou sem razão, para uma política de imigração cada vez mais restritiva e isto é possível constatar porque há 30 anos, havia manifestações contra a Frente Nacional, ou seja, o partido de Le Pen, hoje assistimos a manifestações no sentido contrário. Uma mudança deste tipo não acontece sem factores, é claro que o terrorismo e a pequena criminalidade contribuem e podem ser usados de forma abusiva para difundir certos valores. A imigração é uma outra faceta deste mal-estar, sentido na população francesa, mas que no momento de eleições se pode converter numa massa suficientemente forte para fazer passar um partido ou um certo candidato para a presidência", concluiu Diogo Sardinha.

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