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História

Amílcar Cabral 1973, assassínio em Conacri [2/3]: as ramificações de um complot

Há 50 anos, o líder separatista guineense de ascendência cabo-verdiana Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri, então base de rectaguarda do seu movimento, o PAIGC. De imediato, o poder guineense apontou o dedo ao “imperialismo” que “acabava de cometer um dos crimes mais hediondos e ignobéis na República da Guiné”. O que sabe, cinquenta anos depois, destes autores do complot da operação? É o que descobrimos neste segundo episódio desta série.

Amílcar Cabral, iniciador da luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
Amílcar Cabral, iniciador da luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. LEHTIKUVA / AFP
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Morte, conspiração, traição. Durante as décadas de 1960 e de 1970, os líderes africanos progressistas ou revolucionários vivem a olhar constantemente para o fundo do espelho, para os fantasmas da insegurança. Lumumba, Um Nyobé, Moumié foram assassinados. Nkrumah foi derrubado. O moçambicano Eduardo Mondlane morreu numa explosão com uma carta armadilhada.

A 13 de Maio de 1972, enquanto Conacri presta homenagem a Kwame Nkrumah - o pai da independência do Gana que acaba de morrer num hospital em Bucareste - Amilcar Cabral declarava: "Que ninguém nos venha dizer...", afirma em francês, "...que Nkrumah morreu com um cancro na garganta ou de outra doença. Não, Nkrumah foi morto pelo cancro da traição que devemos erradicar, cujas raízes devemos erradicar de África se realmente quisermos acabar, definitivamente, com a dominação imperialista neste continente".

O cancro da traição corrói o PAIGC, o movimento de independência da Guiné-Bissau, há algum tempo. “A partir de meados da década de 1960”, escreve um dos biógrafos de Amílcar Cabral, António Tomás, “os elementos do partido começam a ver Cabral como um problema, como fica evidenciado pelo grande número de conspirações contra ele”. [1] Em 1967, explica este autor, um julgamento condenou à pena de morte os activistas Honório Sanches Vaz e Miguel Embaná, acusados ​​de terem tentado matar Cabral.

Em 1969, um militante apelidado de "Jonjon" é detido no secretariado quando se preparava para atirar uma granada contra o líder independentista. Um ano depois, uma operação denominada “Amílcar Cabral” foi lançada pela polícia secreta do Estado Novo, do regime do ditador português António de Oliveira Salazar [PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do Estado] com base num cabo-verdiano chamado "Lachol", residente em Dacar. “Estes planos ficaram marcados pelo amadorismo, escreve António Tomás, e não preocupavam Cabral".

No entanto, a ameaça está bem presente. Em Março de 1972, Amilcar Cabral redigiu um memorando no qual explica que os portugueses conseguiram infiltrar-se no PAIGC para eliminar os seus principais dirigentes. Ele detalha os passos desse plano: primeiro ,a infiltração de agentes africanos vindos de Bissau que dirão querer juntar-se à luta. Alguns deles teriam saído, recentemente, de prisão onde terão sido treinados pela PIDE com técnicas para desestabilizar a organização. Depois de integrarem o movimento, iriam tentar dividi-lo, criariam uma direcção paralela para se tentar impor para destruir a autoridade de Cabral, permitindo a sua saída ou eliminação física.

Cinquenta anos depois, os arquivos da PIDE e da sua sucessora, a Direcção-Geral de Segurança (DGS, nota do editor) confirmam que o PAIGC conseguiu, efectivamente, infiltrar-se com agentes ligados a Lisboa. O jornalista de investigação José Pédro Castanheira cita relatos transmitidos por três destes agentes aos serviços portugueses e ilustra a proximidade de um deles a Cabral [2].

Investigação documental de Bruno Crimi

No entanto, será possível dizer-se que os serviços portugueses organizaram os acontecimentos de Janeiro de 1973? Dois anos depois do assassínio, o jornalista Bruno Crimi assinou, nas colunas da revista Jeune Afrique, um dos artigos mais completos (nessa altura) sobre o caso. Bruno Crimi diz ter conseguido ter acesso, depois da Revolução dos Cravos de Abril de 1974, “a documentos guardados zelosamente nos arquivos da PIDE-DGS, na rua António Maria Cardoso, na capital”. Descreve com rigor, citando nomes e datas, o papel desempenhado pela polícia política portuguesa na morte de Cabral. O seu relato, que a RFI pôde confirmar tendo acesso a novas fontes, avança com dados precisos que merecem ser resumidos.

Segundo Bruno Crimi, o destino de Cabral estava traçado no início de 1972. O primeiro-ministro português, Marcelo Caetano, precisava de um impulso para contra-balançar as vitórias dos independentistas nas colónias portuguesas em África. Marcelo Caetado recorre a determinados serviços para o efeito. Um homem, explica Bruno Crimi, ocupa o centro das atenções: Barbieri Cardoso, que depois de ter sido vice-director da PIDE se tornou, em meados dos anos 60, o chefe dos serviços de informação dos "territórios ultramarinos". Foi ele quem organizou o rapto e depois o assassínio do general Humberto Delgado, opositor ao regime de Salazar. O caso Cabral foi-lhe confiado. Trabalha no arquivo com o seu colaborador Ernesto Lopes Ramos. O objectivo é afastar com sucesso Amilcar Cabral e Aristides Pereira. Para tal vai ser preciso explorar a clivagem que existe dentro do PAIGC entre cabo-verdianos e guineenses do continente.

"Barbieri Cardoso, escreve Crimi, vai várias vezes a Bissau. Encontra-se com Spínola [general António de Spínola, governador militar da Guiné-Bissau - nota do editor] que, embora conhecendo o caso, não quer ser o responsável directo. O governador confiou a operação a um dos seus homens de confiança, o comandante Mário Firmino Miguel, então responsável pelo COE (Centro de Operações Especiais). (…) Nos meses que antecederam o assassínio, o Comandante Firmino Miguel aplicou um dispositivo da polícia política, com vários homens - africanos - com  o objectivo de se infiltrarem nas fileiras do PAIGC. Em Conacri, o braço direito do comandante chama-se... Inocêncio Cani".

Os detalhes desta operação, prossegue Crimi, foram acertados no final de 1972. "Os botes do PAIGC vão-se embora de Conacri, levando Cabral e Pereira amarrados para os entregar aos portugueses". Uma unidade naval portuguesa vai cobrir a retirada. A primeira data fica marcada para 15 de Janeiro. A operação é depois adiada para o dia 20. “No final da tarde do dia 20, no porto de Bissau, um navio português solta as amarras. O navio é comandado pelo oficial Marcelino da Mata que mantém contacto rádio com Inocêncio Cani, na localidade de Ratoma", em Conacri.

Como sabemos, hoje, Cabral é assassinado e apenas Pereira está a bordo dos dois barcos-patrulha do PAIGC que saem do porto de Conacri. "Inocêncio Cani, que assumiu o comando, pede instruções por rádio a Marcelino da Mata, que estava em contacto com Bissau. Ainda por rádio, as ordens são enviadas de Bissau ao navio de cobertura português e aos dois barcos-patrulha do PAIGC, que comunicam aos homens que ficaram em Ratoma". Bruno Crimi descreve inúmeras interacções entre o poder colonial de Bissau e os conspiradores que esta sua versão não dá espaço para muita ambiguidade sobre quem são os principais arquitectos da operação. Há 50 anos, porém, que os especialistas debatem o papel da PIDE-DGS neste assassínio.

Há quem, como o investigador Patrick Chabal, valide esta narrativa. "O assassínio de Cabral, considera no seu livro sobre o líder revolucionário[3], é resultado de uma operação iniciada pela polícia secreta, a PIDE-DGS, em 1971-1972, como demonstrou o jornalista de investigação, Bruno Crimi, no seu artigo de 1975”. Outros, como António Tomás, defendem a tese de tensões dentro do próprio PAIGC, que teriam degenerado e minimizado as ligações entre os conspiradores e a polícia política portuguesa: "Mais do que a PIDE", escreve, "o que acabou por juntar os autores do complot foi o facto de existirem problemas dentro do partido. Cabral tinha razão ao acreditar que a traição foi sempre motivada pelos sucessivos erros. »[4]

Por outro lado, o historiador guineense Julião Soares Sousa alerta para a possibilidade de existirem ligações mais amplas. Ele acredita que nas décadas de 1960 e 1970 existia um terreno fértil para que surgisse uma conspiração internacional. Os interesses por parte de vários serviços secretos de diferentes países puderam convergir em torno de objectivos comuns, como o aniquilamento de Cabral ou, ainda, a queda do regime de Conacri. Segundo ele, seria "um erro metodológico dissociar o 20 de Janeiro de 1973 [assassínio de Cabral] do velho projecto de destituir Sékou Touré [5]".

Estes dois alvos distintos mobilizaram "alguns países (Senegal, Costa do Marfim, Libéria, RFA [República Federal da Alemanha, Nota da redacção], África do Sul, Portugal e França no topo) e organizações secretas como a SDECE francesa, o "Dragão Marinho" [serviço de espionagem português - nota da redacção], a PIDE/DGS e a Aginter Press [agência noticiosa que trata de operações de informação, treino militar e operações mercenárias a nível mundial para regimes autoritários de direita - nota da redacção]; também instaladas em Portugal desde meados da década de 60".

Além disso, explica, estivemos ainda na presença de “vários grupos exilados de oposição ao regime de Sékou Touré, mormemente em Paris, Lisboa, Bissau, Dacar, Abidjan e Genebra”. Esta rede não estaria completa sem “os movimentos ou grupos opositores ao PAIGC e à liderança de Amílcar Cabral (o PAIG, fundado em Conacri em 1972 e a FULGB, que aparece à luz do dia em Novembro de 1972)”.

Uma implicação da Guiné-Conacri?

Neste apuramento de responsabilidades, é preciso integrar também aquele que encorajaram, apoiaram ou simplesmente deixaram que este plano de eliminação acontecesse. Diferentes especialistas questionaram-se sobre o jogo de Sékou Touré e de certos altos funcionários guineenses. A estrela em ascensão, Amílcar Cabral, começava a incomodar Sékou? Esta ascensão punha em risco o projecto da Grande Guiné sobre o qual o Presidente guineense alimentava uma grande esperança?

Testemunhos inquietantes foram recolhidos pelo jornalista de investigação, José Pedro Castanheira, autor de uma longa e metódica investigação com o título “Quem matou de facto Amílcar Cabral”. Alcides Évora “Batcha”, membro do PAICG, que serviu de intérprete quando os conspiradores foram interrogados, lembra-se desta cena: “A um certo momento, um dos assassinos disse que certos altos responsáveis do Governo da República da Guiné estavam a par desta conspiração. O comissário que estava a dirigir o interrogatório ainda tentou mudar de assuntos dizendo: ‘Ah, estás a dizer mentiras, vamos à cabine [nome dado à sala de tortura durante o regime de Sékou Touré] para te refrescar a memória”. Quando voltaram, a versão tinha mudado.

O meio-irmão de Amílcar Cabral, Luís, lembra-se por seu lado da confissão de um dos conspiradores, Aristides Barbosa: “Ele falou de elementos da administração da República da Guiné que tinham estado presentes em várias reuniões de conspiração em Conacri”. Interrogada pela RFI, Ana Maria Cabral, viúva de Amílcar, reafirmou a sua convicção de que Sékou Touré não teve qualquer papel na morte do seu marido: “Sékou Touré, não acredito. Mas é possível que tenha havido por detrás alguns responsáveis da Guiné-Conacri”.

Qualquer que tenha sido o papel de Sékou Touré ou das pessoas que o rodeavam nesta conspiração, o chefe de Estado da Guiné-Conacri quis assumir um papel de liderança na luta do PAIGC após a morte de Cabral. Isto ficou claro logo a partir das primeiras tomadas de posição de Sékou Touré após o assassínio. Um estudo secreto do Governo guineense, citado por Castanheira, aponta em Outubro de 1973 para “a influência decisiva do líder guineense sobre a política interior deste partido a partir da morte de Amílcar Cabral”.

Os acontecimentos que ocorreram na noite de 20 de janeiro de 1973 e que culminaram na morte de Cabral teriam como fim diversas ambições e projectos? José Pedro Castanheira decide deixar várias opções em aberto, que se ligam entre elas: a luta entre cabo-verdianos e guineenses no seio do PAIGC, os projectos da PIDE, mas também os militares portugueses, uma aposta dos altos quadros de Sékou Touré. “Na noite de 20 de Janeiro de 1973”, escreve o jornalista, “muitas destas quatro vontades, convergiram. Isto é o mais provável. Conscientemente ou não, elas aproveitaram-se umas das outras, criando cumplicidades tácitas e alianças bastardas para atingir o mesmo objectivo: afastar da cena um inimigo comum”.

 

[1] TOMAS Antonio, Amilcar Cabral. The life of a reluctant nationalist, Londres, Hurst Publishers, 2021,  p. 257 Traduit par nos soins

[2] CASTANHEIRA José Pédro, Qui a fait tuer Amilcar Cabral ?, Paris, L’Harmattan, 2003, Pp 109-118

[3] CHABAL Patrick, Amilcar Cabral. Revolutionary Leadership and People’s war, Africa World Press, 2003, p. 133

[4] TOMAS Antonio, Amilcar Cabral. The life of a reluctant nationalist, op. cit. Pp. 261-262

[5] SOARES SOUSA Julião, Amílcar Cabral (1924-1973) – Vida e morte de um revolucionário africano, Coimbra, edição de autor, 2016, p 556

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