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Aumenta a efervescência a cerca de duas semanas das presidenciais na Turquia

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Quando faltam pouco mais de duas semanas antes das eleições presidenciais e legislativas de 14 de Maio na Turquia, aumenta a efervescência política no país. Após vinte anos no poder, como chefe do governo e em seguida como Presidente, Recep Erdogan, candidato à sua própria sucessão, encontra-se numa encruzilhada, com uma situação económica já difícil e agravada pelo terramoto de Fevereiro, uma sociedade dividida e uma posição a nível internacional delicada, entre a Nato e o bloco pro-russo.

Basílica de Santa Sofia ou Hagia Sophia em Istambul.
Basílica de Santa Sofia ou Hagia Sophia em Istambul. Wikipedia
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Estes elementos e também o factor religioso, com o recente anúncio por um dos principais candidatos às presidenciais, Kemal Kilicdaroglu, de que pertence à comunidade muçulmana moderada Alevi, são dados a ter em conta do ponto de vista de Dejanirah Couto, especialista do Médio Oriente ligada à Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, que por outro lado recorda que a etiqueta de "muçulmano moderado" que Recep Erdogan tinha quando chegou ao poder, só chegou a convencer no exterior da Turquia.

RFI: Quando chegou ao poder, Erdogan foi "vendido" como sendo "muçulmano moderado", mas com o passar do tempo, este figurino alterou-se.

Dejanirah Couto: A etiqueta "muçulmano moderado" foi mais "vendida" para o exterior do que para o interior da Turquia. Na Turquia propriamente dita, toda a gente sabe de onde é que ele vinha, quais eram as suas influências, a quem é que estavam ligadas, inclusivamente porque ele foi uma figura popular, ele foi jogador de futebol. Portanto, isso deu-lhe uma visibilidade que provavelmente se fosse só um pequeno político, não teria tido no início dos anos 2000 quando chegou ao poder. Ele foi "vendido" como "muçulmano moderado" a nível internacional, mas na Turquia, toda a gente sabia praticamente que ele não era assim tão moderado como isso. Aliás, veio-se a verificar que há gente ainda muito menos moderada do que ele no interior da Turquia, inclusivamente o partido nacionalista liderado por Devlet Bahçeli que é ainda menos moderado que ele. Mas de qualquer modo, é evidente que ele transmitiu ou recriou um Islão, em termos internacionais, pouco moderado. Mas obviamente que a questão religiosa e esta questão do "acting out" do líder da oposição (Kemal Kilicdaroglu, um dos favoritos para as presidenciais) que veio revelar pela primeira vez -é uma coisa extraordinária, de grande peso político- que é de religião Alevi, é inconcebível. é evidente que muita gente na Turquia sabia que ele era de religião Alevi, mas não publicamente. Ele veio afirmar isso publicamente. Isto quer dizer que o factor religioso vai de novo pesar nas eleições.

RFI: Há também eventualmente o factor económico. Em que estado está neste momento a Turquia em termos económicos?

Dejanirah Couto: Está mal, está muito mal. Está pessimamente. Quer dizer que o governo mantém um optimismo de fachada que não engana ninguém. Há por um lado a questão da inflação que é absolutamente monstruosa e, por outro lado, isso vê-se bem na desvalorização contínua da Libra. Portanto, economicamente, isto tem sido uma descida para o abismo. Por outro lado, ele mantém contra ventos e marés a sua política que ele "islâmica" -mas é uma coisa muito discutível- de não subir as taxas de juro, despediu literalmente três directores do Banco Central, nenhum satisfazia os requisitos que ele queria. E o principal problema na Turquia agora, não é só a questão da inflação, é a questão do investimento estrangeiro que realmente fugiu completamente. Os investidores estrangeiros perderam a confiança. Já perderam a confiança há um certo número de anos mas têm vindo cada vez mais a perder a confiança. Há uma cris económica muito generalizada com um número muito elevado de desempregados com um cabaz de compras que já ninguém sabe como é que vai resolver. Portanto, essa crise económica é verdadeiramente um facto e há coisas que escapam às notícias internacionais. Há outros sinais preocupantes. Os russos vão dar a primeira central nuclear à Turquia. A Rússia faz tudo. A central nuclear deve ser entregue dentro de muito pouco tempo e deve ser inaugurada antes do verão. Mas pela primeira central nuclear turca de construção russa, os russos obtiveram contrapartidas. Entre essas contrapartidas está um certo número de concessões, pelo menos duas. Uma, tenho a certeza que já está assinada, a segunda não sei se já está assinada ou não, mas trata-se de concessões portuárias. Essas concessões portuárias com concessões a nível do comércio marítimo, mas também de instalação, um pouco como a China tem andado a fazer no oceano Indico, nomeadamente no Bangladeche e no Paquistão, vai dar de novo aos russos uma posição-chave no Mediterrâneo. Porque quando se falou em todas estas questões diplomáticas da Turquia como mediador na questão dos cereais (ucranianos) -que foi realmente um mediador eficaz- é claro que isto tem contrapartidas. A central nuclear já estava programada há bastante tempo, muito antes da guerra da Ucrânia, mas, de qualquer modo, esta situação política e económica liga-se também a uma questão diplomática que tem como pano de fundo a Rússia e a guerra na Ucrânia, mas que vai pesar também na dinâmica económica da Turquia. A Turquia está cada vez mais presa economicamente a toda uma série de situações e poderes políticos ali no Mediterrâneo oriental que estão cada vez mais complicados.

RFI: O jogo de equilibrismo da Turquia relativamente à questão da Ucrânia pode ter um reverso, que é de ter de se alienar pelo menos de uma parte dos seus parceiros?

Dejanirah Couto: Completamente. Como todas as acrobacias, as acrobacias podem durar um certo tempo. O regime tem estado a dar mais cartas a um parceiro que é a Rússia que é quem está a ganhar pontos verdadeiramente ali na região. Não se pode igualmente esquecer que há outra dinâmica que tem também um impacto político e económico: desde a fase final da guerra da Síria, a Turquia ocupa uma parte do norte da Síria, é preciso também não esquecer isso. Portanto, está realmente numa posição muito difícil, entre vários poderes políticos e isto resulta numa maior dependência. A situação económica é já muito difícil, aliás a oposição pensa que vai poder talvez aumentar os seus votos devido à crise económica. Mas a crise económica, devido a toda esta conjuntura, penso que ela vai agravar-se mais. Se virmos os jornais turcos, é a análise de toda a gente. Isto chegou a um tal ponto que o governo fez, com fins eleitorais, promessas completamente irrealistas à população dizendo, não só que ia transpor toda uma parte da população das zonas que foram destruídas pelo sismo para outras regiões, o que é uma velha táctica Otomana de deslocação das populações durante guerras ou em sítios onde há problemas, como também que ia proceder a um plano de reconstrução absolutamente faraónico nessas zonas afectadas. Na Turquia, toda a gente diz "com que dinheiro é que ele vai levar a cabo o transplante das populações e as construções?" Não esqueçamos que neste momento, as pessoas estão a levar muito a sério toda esta dinâmica. Nas grandes cidades, sobretudo na costa oeste, não estou só a falar de Istambul mas em todas as zonas sísmicas, é incrível. As pessoas que têm poucos meios mudam de casa, vão para outras regiões. Isto não está a ser falado. Há pessoas que reforçam os alicerces dos seus prédios. Há toda uma dinâmica de um certo pânico social, porque as pessoas têm medo que se repita. Estas promessas que o governo acaba de fazer de deslocação da população e simultaneamente de construção faraónica nas zonas afectadas, não sei até que ponto é que isto vai dar. Por exemplo, os proprietários e as empresas de obras públicas em Istambul receberam comunicados do governo a dizer que parassem durante este verão com todas as construções que estavam a ser levadas a cabo porque os materiais que são normalmente aplicados às construções privadas, o cimento, o ferro, iam ser todos utilizados para a reconstrução dessas casas, desses prédios das zonas afectadas. Isto é uma coisa recentíssima. Portanto, está-se num ambiente um pouco surrealista.

RFI: Desde 2016 há uma espécie de clima de desconfiança que se gerou depois da tentativa de golpe e da série de detenções de militares mas também de civis suspeitos de terem algo a ver com esta tentativa de desestabilização.

Dejanirah Couto: Esse clima de desconfiança existe. Quando se vê a história da Turquia, durante o período Atatürk e pós-Atatürk, o país tem uma experiência do autoritarismo. Está habituado a regimes autoritários e o próprio Atatürk tinha uma mão de ferro. O clima de desconfiança acentuou-se desde 2016, sem dúvida nenhuma, sobretudo nas classes mais educadas porque foram aquelas que estavam mais ligadas ao exército. Houve todas aquelas vagas de detenções dos militares, os académicos foram aqueles que afinal mais sofreram com a pós-tentativa de golpe de 2016. Portanto, a há sectores da população onde realmente essa desconfiança se instalou de maneira completamente evidente. Há outros sectores em que não. A Turquia tem 87 milhões de habitantes, é um país muito grande, tem uma dimensão agrícola ainda muito grande e portanto, quando se vai para as zonas rurais no centro como no leste do país, essa desconfiança em relação ao partido, ao governo e ao que sucedeu em 2016, não se instalou. Daí o facto de a Turquia viver permanentemente numa espécie de clivagem sociológica total entre uma população que não podemos negligenciar porque ela é numerosa, porque continua a apoiar o governo, porque continua a apoiar toda uma série de medidas locais, regionais e nacionais tomadas pelo governo. Depois, temos um outro grupo da população com outro tipo de educação, com outro tipo de vivência, que é aquela franja da costa mediterrânica da Turquia europeia. Portanto, esta clivagem sociológica continua a existir. Aliás, já se viu nas anteriores eleições que davam um espectro de quase 50/50. Não sei até que ponto é que este esquema vai perdurar. é claro que no leste, sobretudo devido à gestão muito complexa deste terramoto, até que ponto é que as populações mais provinciais, que tradicionalmente votavam pelo partido, com um fundo religioso mais forte, uma prática religiosa mais forte, até que ponto nestas eleições é que ainda vão seguir o governo, ou até que ponto é que não vão fazer. Obviamente nessas populações que sofreram com o terramoto, temos realmente uma população mais carenciada. Mas até que ponto é que a falta de socorros, a desorganização que os afectou, vai pesar na balança eleitoral, eu não sei. Dou um exemplo, através de toda a Turquia, houve também milhares e milhares de voluntários, de pessoas de todas as camadas sociais, de todas as idades, dos dois sexos, que largaram o trabalho, largaram o que estavam a fazer e foram todos, foram para as zonas afectadas pelo sismo, para ajudar. Inclusivamente pessoas do meio urbano. Ficaram lá tempos diferentes, mas contactaram com a realidade e a realidade era -e é- horrível. Não é o que se lê nos jornais, o que eles próprios viram. Não se sabe se terá algum efeito ou não do ponto de vista do voto.

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