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Resistir com letras de chumbo e muita luta na clandestinidade

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O que foi crescer na clandestinidade durante a ditadura em Portugal? Gonçalo Ramos Rodrigues mergulhou nessa luta ainda criança e, aos 14 anos era, com a irmã, o principal “compositor” das páginas que saíam da tipografia clandestina dos pais. Aos 24 anos, foi obrigado a exilar-se em Paris, onde angariava fundos para ajudar as famílias dos presos políticos em Portugal, mas continuava a sentir a vigilância da PIDE. Gonçalo continua em França, tem 82 anos e contou-nos a sua história.

Gonçalo Ramos Rodrigues em Levallois-Perret, França, a 7 de Janeiro de 2024.
Gonçalo Ramos Rodrigues em Levallois-Perret, França, a 7 de Janeiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos Gonçalo Ramos Rodrigues.

O que foi viver na clandestinidade durante a ditadura em Portugal? Como se lutava pelo sonho da liberdade perante um regime repressivo em que “até as paredes tinham ouvidos”? Gonçalo Ramos Rodrigues foi resistente antifascista ainda antes de saber que já o era. Também foi e é militante do Partido Comunista Português. Os pais eram do PCP desde os anos 40 e desde criança Gonçalo interiorizou comportamentos para fintar a polícia política porque "os bufos que estavam por todo o lado".

Esta militância começa muito cedo, começa mesmo antes de eu saber que militava porque os meus pais eram membros do Partido Comunista Português desde os anos 40 e em 1950 ou 51 foram para a clandestinidade e levaram consigo os quatro filhos. Eu, nessa altura, tinha nove anos. E, é claro, já aí, era obrigado a ter um certo comportamento porque a polícia política estava por todo o lado e, portanto, mesmo jovem, era obrigado a dizer mentiras, ou melhor, a esconder verdades.

Aos nove anos, Gonçalo acaba por deixar a escola e por pedir aos pais para aprender um ofício: começou por ser aguadeiro, ou seja, transportava um barril de água – quase tão grande como ele - para dar de beber aos trabalhadores que alcatroavam uma estrada da Moita para Palmela. Depois, endireitou pregos e coseu solas numa sapataria, mas foi, aos 14 anos, que se tornou, ao lado da irmã de nove anos, o compositor das páginas que saíam da tipografia clandestina que tinham os pais.

“A actividade mais política começa quando os meus pais assumiram a gestão de uma quinta, onde passou a funcionar uma tipografia clandestina (…) Aí já estávamos na clandestinidade total, conta. Lá imprimiram muita coisa, desde alguns números do jornal Avante, mas também folhetos e outros jornais como A Terra, Corticeiro, O Camponês, entre outros documentos. 

Já tinha 14 anos e a minha irmã mais nova tinha nove. Os dois, mesmo crianças, éramos os principais, digamos, compositores. Chamava-se compor os textos com as letras de chumbo que depois eram inseridas no prelo para impressão (…) Era eu quem sabia melhor o português de todos os da casa porque o meu pai quase não sabia ler, a minha mãe só aprendeu a escrever na prisão de Caxias, quando esteve seis anos presa, e a minha irmã ainda menos sabia. Quem corrigia os textos, as gralhas, tudo o que havia, era o Gonçalo.

Gonçalo sempre escapou às malhas da polícia política e nem ele nem os irmãos moravam com os pais quando estes foram denunciados e presos em 1963. O pai foi para a cadeia do forte de Peniche e a mãe para a prisão de Caxias. Condenados a dois anos e meio de prisão, só saíram em liberdade em 1969 sem que os filhos, na clandestinidade, pudessem ter informações sobre eles.

Como era a regra na clandestinidade, os irmãos também não podiam saber uns dos outros para não haver qualquer risco, em caso de detenção. A irmã mais nova, Veríssima Rodrigues, tinha ido para a Rádio Portugal Livre, outra arma na luta contra o fascismo, e o irmão tinha montado a sua própria tipografia.

Todos os cuidados eram poucos para não cair nas mãos da PIDE e para não pôr em perigo a própria família e os camaradas do partido. Quando questionado sobre quais as estratégias que usavam, Gonçalo recorda, emocionado, o reencontro fortuito com o irmão, no Porto, depois de terem estado anos sem se verem. E isso aconteceu duas vezes. Da primeira vez, só deram um abraço. Da segunda, o irmão vinha acompanhado da família e de todo o equipamento domingueiro de pesca que indiciava que ele morava por ali. Consequência: por cautela, o partido mandou imediatamente mudar as instalações da tipografia clandestina que o irmão tinha nessa altura.

É que, para viver na clandestinidade, era fundamental seguir determinadas regras e saber o menos possível da vida da família e dos camaradas porque a PIDE estava sempre à espreita e a tortura à espera nas prisões do regime.

A ideia é que a pessoa pode não resistir aos interrogatórios e às torturas e pode falar. Portanto, quando menos ela souber, melhor.

Outro exemplo, anos antes, quando nasceu o sobrinho, foi quando Gonçalo foi incumbido de inventar uma morada numa rua da Amadora para o registo civil, visto que os pais do bebé viviam na clandestinidade.

Gonçalo acabou por estar, também, numa vida clandestina e longe da família. Ficou em Portugal até aos 24 anos e nessa altura exilou-se em França, onde teve notícias dos pais quando estava a descascar batatas numa festa do jornal comunista L’Humanité, em 1966. À sua frente, outro português, também a descascar batatas para o almoço. Ambos eram do PCP e da mesma freguesia algarvia. O camarada prometeu-lhe notícias dos pais e, no dia seguinte, chegou a informação que Gonçalo temia: o pai estava preso em Peniche e a mãe em Caxias há três anos. Foram “três anos sem nenhuma carta, nem qualquer sinal”.

Os pais tinham sido denunciados por uma pessoa que estava a viver em casa deles e que quando foi presa “contou tudo”. “Esteve na origem da prisão de muitos camaradas da direcção do partido, foi uma tragédia muito grande na organização e, claro, denunciou também a casa onde vivia e os meus pais que lá viviam. A polícia foi lá, a PIDE, e levou o meu pai e a minha mãe em 1963”, acrescenta Gonçalo. Condenados a dois anos e meio de cadeia, acabaram por só sair em 1969 porque as “medidas de segurança” adicionais eram condicionadas à arbitrariedade do regime.

Em Paris, Gonçalo formou um grupo de língua portuguesa da CGT para ajudar os trabalhadores portugueses e que permitia participar nas manifestações do 1° de Maio e contra a guerra no Vietname, por exemplo. Mas a sua actividade principal era angariar fundos para a comissão de auxílio aos presos políticos em Portugal. Um dia, com um grupo de camaradas, às portas de um estádio, estava a distribuir panfletos contra a guerra colonial e andavam também com mealheiros para recolher dons para os presos políticos. A polícia não autorizou e foram levados para a esquadra nos “paniers à salade” [saladeiras] - como eram conhecidas as carrinhas da polícia francesa na altura. Uma outra vez, também fizeram outra viagem até à esquadra por andarem numa feira perto de Bastilha a distribuírem manifestos em português da CGT.

A sua actividade militante não passou despercebida e Gonçalo questionou-se se estaria mesmo no que tinha idealizado como “o país da liberdade”. Foi várias vezes interrogado por funcionários da então DST, Direcção de Segurança Territorial – equivalente aos serviços de informações – e desde o primeiro interrogatório percebeu que estavam bem a par do seu percurso de opositor político ao regime português. Gonçalo diz mesmo que desconfia que houve pontes entre este serviço francês e a PIDE. Certo é que, ao contrário da maioria dos emigrantes portugueses, passou nove anos a ter de renovar o título de residência temporária de três em três meses e não conseguiu a tão desejada “carte de séjour” [“autorização de residência”].

Eu não sei se todas as autoridades [francesas]. Se calhar não, mas a DST penso que sim, penso que tinham relações muito estreitas com a PIDE em Portugal.

O tempo foi passando, Gonçalo viveu o Maio de 68, o mês em que deveria casar com Maria do Céu no Quartier Latin, mas as manifestações e as greves adiaram a boda duas vezes. E foi alguns anos depois, no rádio do primeiro automóvel, um Renault, que chegou a notícia do 25 de Abril. Ainda que a vontade fosse muita de regressar, o partido mandou-o ficar uns tempos em Paris para assegurar a continuação da organização na eventualidade de um volte-face em Portugal. 

Gonçalo Ramos Rodrigues acabaria por regressar no início de 1975 para o que chama “assegurar a Revolução” e ainda ficou seis anos, mas depois voltou para França. E foi em Levallois-Perret, 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, que nos recebeu para partilhar a sua história, a de um militante antifascista que, sempre na sombra, dedicou a sua vida a uma causa: a liberdade.

Com tudo isto, aos 82 anos, este militante antifascista diz que teve “sempre uma militância de base” e que não é pessoa “habituada a fazer longas frases e bonitos discursos”. Contrapomos que nem só de discursos reza a história e que as acções de pessoas anónimas tiveram muito peso colectivo na luta contra a ditadura. “É verdade”, admite. “De muitas destas pessoas a história não fala e dedicaram todas as suas vidas à mesma causa: a causa da Liberdade, a causa dos direitos do povo e dos trabalhadores”.

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