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Efervescência feminista no Médio Oriente: Le Monde Diplomatique

Médio Oriente – Artigo de Le Monde DiplomatiquePara uma libertação das tutelas religiosa, colonial, governamental e ocidentalEm Maio, a bióloga Rayyanah Barnawi tornou-se a primeira saudita a efectuar uma missão espacial. Por muito notável que seja, este acontecimento não é representativo da condição feminina no Magrebe, no Maxerreque e no Golfo.

A saudita Rayyanah Barnawi (à esquerda) acompanhada do seu compatriota  Ali al-Qarni (à direita), acompanhados (no centro) por Peggy Whitson et John Shoffnerles a 20 de Maio de 2023.
A saudita Rayyanah Barnawi (à esquerda) acompanhada do seu compatriota Ali al-Qarni (à direita), acompanhados (no centro) por Peggy Whitson et John Shoffnerles a 20 de Maio de 2023. via REUTERS - SAUDI PRESS AGENCY
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Para alcançarem a igualdade entre os sexos, as mulheres destas regiões nada têm a esperar de um feminismo de Estado que legitima os poderes instalados, porque só o combate pela democracia e o secularismo é emancipador.

A vaga de manifestações no Irão desencadeada pela morte da estudante Mahsa Amini em Setembro de 2022 mostra o quanto a questão da emancipação das mulheres se tornou hoje central no Médio Oriente.

Para examinar a questão com todo o rigor, é melhor não nos apoiarmos nas posições do Ocidente, que tem muitas vezes tendência para explorar ou caricaturar o tema das desigualdades entre sexos na região, e que se arroga o poder de libertar ou de rejeitar essa outra «Outro» que é a mulher oriental.

É também conveniente não nos limitarmos à escolha entre duas opções identicamente enviesadas: a de atacar as raízes pretensamente profundas da opressão das mulheres no Médio Oriente ou a de apresentar estas últimas como vítimas do colonialismo, em primeiro lugar, e da aspiração reaccionária à autenticidade cultural, por outro.

Apreender a luta das mulheres nesta parte do mundo requer um ponto de apoio mais sólido. Trata-se de questionar os termos ideológicos e políticos em que o objecto social do género foi construído, tanto para o Ocidente como para os próprios povos do Médio Oriente.

Só assim podemos esclarecer as heranças embaraçosas do passado, bem como as possibilidades de desafiar o patriarcado e fazer ouvir vozes até aqui marginalizadas.

Dos muitos danos causados pelo colonialismo europeu na região, poucos tiveram um impacto tão duradouro como o sistema de normas misóginas decretadas contra as mulheres.

No contexto da época, nenhuma sociedade, fosse ela colonizadora ou colonizada, era exemplar em matéria de igualdade entre os sexos.

O poder do patriarcado provém do seu carácter quase universal. Contudo, os conceitos de género e de privilégio masculino no Médio Oriente diferiam muito claramente das hierarquias e instituições em vigor na Europa, que remodelaram a região a partir do século XIX.

Uma diferença fundamental diz respeito às normas informais, por oposição aos códigos de leis. A vida social no Médio Oriente era certamente enquadrada por textos e pareceres dos juristas islâmicos, mas também proporcionava às mulheres uma latitude em vários domínios, entre os quais a gestão das finanças, as deliberações jurídicas e as assinaturas de contratos.

A vários títulos, o sistema de géneros inscrito na charia, por exemplo quanto ao papel das mulheres na família e no casal, denotava esta flexibilidade. Tinha a marca das concepções religiosas e também a das necessidades pragmáticas da sociedade.

O colonialismo europeu transformou este sistema de duas formas. Por um lado, fixou as prescrições da charia, até então sujeitas a interpretações, bastante díspares consoante as comunidades, num código uniforme de leis intangíveis. A fronteira rígida estabelecida entre as mulheres e os homens não mahram, isto é, sem laços de família com elas, ilustra bem esta evolução: o que outrora era uma linha de conduta mais ou menos maleável e conotada religiosamente, doravante constituía uma obrigação legal imposta sob constrangimento.

Por outro lado, o colonialismo em seguida gravou estas regras num conjunto de códigos civis e penais impostos às sociedades locais à força de tribunais, ordens militares e decisões de autoridades públicas.

Os impasses do despotismo esclarecido

Sob o efeito da dominação europeia, a antiga mistura pluralista de normas religiosas informais transformou-se, portanto, num arsenal de imperativos que não admitiam qualquer excepção. Isso reflectia as perspectivas das potências coloniais sobre o islão e sobre os muçulmanos, considerados como atrasados e recalcitrantes à civilização, do que decorria que as mulheres viviam necessariamente na opressão e tinham de ser salvadas.

A vontade imperialista de «civilizar» os muçulmanos conduziu, no entanto, ao efeito contrário, submetendo as sociedades locais a um poder autoritário, à violência em uniforme e à exploração económica. As mulheres foram também as vítimas desta vontade. Foram menos libertadas do que absorvidas num novo aparelho legal que exprimia a visão europeia da hierarquia dos géneros.

Nada ilustra melhor a remodelagem das tradições locais sob o efeito da estatização colonial do que a questão dos direitos e das identidades das pessoas homossexuais. Em muitas sociedades muçulmanas, as concepções do género e da sexualidade admitiam de maneira tácita uma certa ambiguidade das relações e das práticas sexuais proibidas nos textos sagrados.

Ora, os critérios de classificação fixados pelo legislador ocidental traçaram uma linha de demarcação rigorosa entre «hétero» e «homo». A sexualidade foi codificada de forma a criminalizar toda e qualquer prática equiparada a um desvio. A consequência disto foi extirpar as relações homossexuais do seu terreno tradicional, inscrevendo-as à força em categorias estranhas à cultura médio-oriental.

Seguiu-se uma série de paradoxos na maneira de conceber o feminismo e os direitos das mulheres no mundo ocidental. Os administradores coloniais castigaram as populações muçulmanas pela sua opressão das mulheres, enquanto nos seus próprios países estas não tinham direito de voto nem acesso às carreiras políticas.

Além disso, no domínio das transacções económicas, as mulheres europeias dispunham de uma autonomia muito inferior à das suas irmãs no Médio Oriente, que podiam participar em celebrações de contratos e contribuir para obras de caridade ou académicas através da instituição do waqf, a dotação de bens islâmica.

Da mesma forma, o movimento de emancipação feminina desenvolveu-se no Ocidente em meados do século XX, num contexto em que a homossexualidade continuava a ser criminalizada e em que a heterossexualidade constituía a norma inultrapassável.

Quando o mundo ocidental se empenha no reconhecimento das pessoas LGBTQIA +, no início da década iniciada no ano 2000, não anulou a regra dos «dois pesos, duas medidas»: culpando as sociedades muçulmanas pela sua condenação das práticas não heterossexuais, ao mesmo tempo que esquecia a sua própria conduta passada neste domínio.

Do ponto de vista do Ocidente, o objectivo da igualdade dos sexos nas sociedades muçulmanas só podia ser atingido implantando ali as suas ideias.

Esta maneira de ver resultava da hegemonia que exercera durante tanto tempo sobre as normas nos quatro cantos do planeta. Mas a injunção a um feminismo de estilo europeu nunca obteve resultados convincentes. É certo que encorajou a educação e a mobilização das mulheres burguesas urbanas, mas fê-lo alimentando e promovendo estereótipos culturais que ignoram as identidades locais. Implantado através da construção de um Estado na sequência de uma guerra, como no Iraque e no Afeganistão, ou por governos nacionais que usam meios tecnocratas, tais esforços alimentaram uma reacção autóctone que associa a emancipação feminina ao imperialismo ocidental.

Este mecanismo reproduziu-se ao longo de toda a história moderna. Em primeiro lugar, na sua forma mais brutal, consistiu, para os governos coloniais, em promulgar leis repressivas em nome da igualdade dos sexos. Na Ásia Central, por exemplo, a União Soviética procedeu à retirada forçada do véu islâmico a partir da década de 1930. A França fez o mesmo na Argélia em 1958. Esta política definiu como alvo as elites tradicionais e as autoridades religiosas, mas teve sobretudo como efeito alimentar a confusão entre progresso e colonialismo.

Em segundo lugar, a mesma lógica estava em acção dentro dos próprios regimes autoritários, por inspiração ou sob a dependência directa dos seus aliados do Norte. Esta versão local do «despotismo esclarecido» visava libertar «a» mulher muçulmana sem libertar os cidadãos. Ela insere a questão dos direitos das mulheres na armadura de um poder autocrático que procura utilizar o conservadorismo secular como arma contra a oposição religiosa, de maneira a alargar a base social do regime.

O xá do Irão, o antigo rei do Afeganistão Zaher Chah (1933-1973), o ex-presidente tunisino Zine El-Abidine Ben Ali (1987-2011) e o actual príncipe herdeiro saudita Mohammed Ben Salman recorreram, todos eles, a esta estratégia. De cada vez, o que está em causa é aceitar direitos limitados para as mulheres para melhor obstaculizar qualquer exigência de democratização. O facto de lhes terem atribuído alguns lugares ministeriais, de reconhecerem os seus direitos à educação (...)

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