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Argélia

60 anos da independência da Argélia em clima de desilusão da população

A Argélia celebra hoje os 60 anos da sua independência. Meses depois do fim efectivo, no dia 18 de Março de 1962, dos 7 anos de conflito entre a Argélia e a França com um balanço de vários milhares de mortos de ambos os lados, a Argélia proclamou a sua independência no dia 5 de Julho de 1962, colocando um termo definitivo aos 132 anos de colonização desse país que outrora era considerado pela França como uma "extensão" do seu próprio território, "apenas" atravessado pelo Mar Mediterrâneo.

Jovens argelinos nas ruas de Argel no dia 6 de Julho de 1962, logo após a proclamação da independência do seu país.
Jovens argelinos nas ruas de Argel no dia 6 de Julho de 1962, logo após a proclamação da independência do seu país. © AFP
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O 60° aniversário da independência da Argélia foi celebrado esta terça-feira pelas autoridades do país com pompa e circunstância, com um desfile militar e uma homenagem aos combatentes da libertação no Santuário dos Mártires em Argel.

Um momento de comunhão da população com a sua memória, um momento que não oculta contudo as dificuldades e a História recente do país. Em plena crise económica, com uma taxa de desemprego galopante, uma juventude sem perspectivas e uma descrença acentuada da população em relação ao poder político, o contexto vivenciado actualmente na Argélia é difícil, observa o jornalista e especialista de relações internacionais Rui Neumann.

"Ao fim e ao cabo existem sentimentos antagónicos. Os argelinos são um povo extremamente nacionalista, muito agarrado à sua História, muito agarrado às conquistas que conseguiu durante o período da guerra da independência e pós-independência. Mas é uma realidade também que há uma grande decepção, mesmo uma grande desilusão porque aqueles que lutaram pela independência principalmente o FLN (Frente de Libertação Nacional), como é evidente acabaram por ser aqueles que nunca deixaram o poder e hoje assistimos a uma Argélia com um poder civil, o Presidente Tebboune, mas por outro lado, sempre na esfera das elites militares" refere o jornalista.

"Não podemos esquecer também que nestes 60 anos de independência, houve páginas negras na História da Argélia, principalmente nos chamados 'anos de chumbo' (durante a década de 90) em que a Argélia viveu um período de guerra civil, outros definindo-o como a guerra contra o terrorismo em que o GIA (Grupo Islâmico Armado) e a FIS (Frente Islâmica de Salvação) instauraram um clima de guerra permanente em que se chocavam precisamente os militares que teoricamente defendiam uma suposta democracia e, por outro lado, a FIS que queria estabelecer na Argélia um regime islâmico", recorda Rui Neumann referindo que "a Argélia, após esse período de guerra civil, com a amnistia imposta pelo antigo Presidente Abdelaziz Bouteflika, cedeu a boa parte das exigências dos islamistas, tornando-se num país particularmente religioso", o que "fez nascer ao fim e ao cabo uma juventude não-religiosa que entrou em contraste precisamente com essa camada da população que entretanto se radicalizou na sua religião".

Ao aludir a um período político mais recente da História da Argélia, o 'Hirak', a revolta popular que levou à saída de cena do Presidente Bouteflika em 2019, Rui Neumann considera que isto acabou por resultar também e sobretudo numa desconfiança e incompreensão ainda maior entre a sociedade e o poder político do país, apesar de recentes gestos do poder político para tentar restabelecer um diálogo.

"Existe um grande divórcio entre o poder político e a sociedade argelina em que o 'Hirak' é um movimento que poderíamos considerar espontâneo, que parte particularmente da sociedade civil, parte depois de sectores profissionais, das camadas estudantis, cada um tendo manifestado à sua maneira. A presidência de Tebboune que seria exactamente para renovar a elite política argelina, ao fim e ao cabo não a renovou. Foi substituída", comenta o especialista em relações internacionais referindo por outro lado que "a Argélia sempre foi muito dominada por clãs políticos, como era o clã de Abdelaziz Bouteflika e hoje quase que poderíamos considerar que há o clã de Tebboune. O 'Hirak' conseguiu abalar as estruturas políticas tradicionais argelinas mas não conseguiu alterá-las. Tanto que a vitória de Tebboune é uma vitória irrisória porque a grande maioria dos argelinos se absteve de ir votar. Ou seja, não foram introduzidas reformas estruturais no aparelho de Estado e no seu próprio funcionamento. Não foi retirado poder aos militares que acabam por ser quem orienta o poder político. Portanto, o 'Hirak' não conseguiu os seus objectivos."

Neste quadro interno complexo da Argélia, as relações que tem mantido ao longo destes 60 anos com a França, também são difíceis, feita de tabus e de mágoas ainda por sarar. Apesar de iniciativas de ambos os lados, nomeadamente com a divulgação no ano passado em França de um relatório do historiador Benjamin Stora sobre a memória da colonização e da guerra da Argélia, uma guerra que apenas foi oficialmente reconhecida como tal pelos franceses em 1999, continuam por explorar, enunciar e explicar muitos acontecimentos ligados a esse período, sublinha o jornalista Rui Neumann.

"Existe uma relação íntima entre a Argélia e a França. No entanto existem posições muito marcadas relativamente à herança do período colonial, também muito marcadas devido às memórias da guerra da independência. Isto de ambos os lados porque ambas as partes, seja da França, seja da Argélia, foram cometidos grandes crimes. Recordo que no momento em que a Argélia celebrava a sua independência, no dia 5 de Julho de 1962, foi efectuado um massacre contra os 'pieds-noirs' (antigos colonos) de Oran. Os nacionalistas argelinos fizeram a caça aos ocidentais e fala-se que houve entre duzentos a setecentos mortos. Um dos tabus nas relações franco-argelinas", nota Rui Neumann.

"São sempre relações muito tensas", observa ainda o jornalista sublinhando que "a Argélia cada vez mais aumenta a barra dos pedidos de desculpa da França pelo período colonial e pela guerra de independência. A França, por seu turno, também exige condições à Argélia para se equilibrar e apagar as manchas negras desse passado pelo reconhecimento recíproco. Obviamente isto tem consequências políticas, tem consequências também económicas, tem consequências nas relações comerciais, mas neste turbilhão de más relações, são sempre dois países que estão intimamente ligados", conclui o analista.

Refira-se que no âmbito da celebração dos 60 anos da independência da Argélia, o Presidente francês dirigiu uma carta ao seu homólogo argelino na qual apela a "um reforço dos elos já fortes" entre os dois países e reitera "o seu empenho em dar continuidade ao trabalho de reconhecimento da verdade e da reconciliação das memórias dos povos da Argélia e da França". Isto acontece alguns dias depois de ambos os Presidentes terem no passado dia 18 de Junho expressado a vontade de "aprofundar" os laços entre os dois países.

Paralelamente, também no âmbito dos 60 anos da independência do país, mas no plano interno, o Presidente argelino anunciou nesta segunda-feira a sua intenção de preparar uma "lei especial" em virtude da qual as pessoas detidas durante o 'Hirak' poderão beneficiar de uma amnistia.

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